Moreira da Silva
ANTÔNIO MOREIRA DA SILVA
(98 anos)
Cantor e Compositor
* Rio de Janeiro, RJ (01/04/1902) +(06/06/2000) - ARIES
Cantor e Compositor
* Rio de Janeiro, RJ (01/04/1902) +(06/06/2000) - ARIES
O cantor e compositor Antônio Moreira da Silva, o Morengueira, criador do samba-de-breque, nasceu no Rio de Janeiro. Há alguma controvérsia sobre a data exata de seu nascimento, mas é ele quem informa:
"Nasci em 1902, num 1º de abril, na rua Santo Henrique, hoje Carlos Vasconcelos, na Tijuca"
(Moreira da Silva - Revista Fatos e Fotos, 11/12/1973)
Filho de Dona Poladina e de Bernardino da Silva Paranhos, um trombonista da banda da Polícia Militar do Rio de Janeiro que morreu vítima de cirrose, o sambista nunca bebeu nem fumou, sempre trabalhou, casou-se em 1928 e permaneceu casado por 56 anos com a mesma mulher, Maria de Lurdes Lopes Moreira, a Mariazinha, a quem conheceu fazendo uma serenata no morro de São Cristóvão.
"Nunca tomei um porre em toda a minha vida", diria pouco tempo antes de morrer."Não bebia e ainda fazia apologia do leite?", escreveu o chargista Adail, quando de sua morte.
Criado nos morros da cidade e formado na zona boêmia do Mangue, Moreira da Silva encarou o batente cedo e com uma assiduidade exemplar. Aos 9 anos foi para a escola. Mas logo deixou o Colégio Barão de Pilares, na Tijuca, e foi à luta para ajudar a família.
"Filho de pobre, quando morre o pai, a coisa fica preta!"
Criança, vendeu doce nas ruas do Rio de Janeiro, entregou marmita e catou papel. Na adolescência, trabalhou numa fábrica de meias, em Botafogo.
"Andava oito quilômetros a pé por dia, com uma comidinha muito fraca, que mal dava para enganar o estômago. Eu estava muito longe da minha mãe, que era cozinheira. Minhas irmãs foram morar na casa de umas tias e eu fiquei sozinho no barraco. Meu almoço era geralmente um bolo de milho e bananada. Depois, água por cima. Inchava o estômago, e eu passei a sofrer do fígado."
(Moreira da Silva à revista Fatos e Fotos com seu jeito galhofeiro)
Levou a vida nesse sufoco até que, aos 19 anos, arrumou um emprego na fábrica de cigarros Souza Cruz, onde começou a trabalhar como ajudante de motorista. Por essa época, já se apresentava em festas de conhecidos e fazia serestas em que cantava modinhas de Hermes Fontes e Cândido das Neves.
"Fiz muitas meninas chorar, dando o meu recado em serestas!"
Uma dessas meninas foi Jandira, a quem engravidou. A moça e a criança morreram no parto. "O mulatinho ficou triste, mas um pouco aliviado. De alguma forma, tirou uma grande responsabilidade das costas", diria mais tarde, para espanto de muitos. Tempos de vacas magérrimas. Chegou a trabalhar numa barraca na festa da Penha em troca de um prato de comida: "Para mim, aquele ensopado de repolho valeu como uma das sete maravilhas do mundo", elogiou o cardápio, comido "de maracanã e remo" (em prato fundo e com a mão).
Em 1923 tirou a carteira de motorista e, antes de virar artista consagrado, foi chofer de táxi e, a partir de 1926, motorista de ambulância, acumulando as funções durante algum tempo para sustentar uma irmã e a mãe.
"Fui pedir emprego na Assistência Municipal e, com meu modo de falar, modéstia à parte, consegui. Fiz um exame superficial e fui aprovado!"
Ficou lá por doze anos. A Revolução de 30 foi encontrá-lo como motorista de Arsênio de Souza Matos, secretário do prefeito Prado Júnior, que fora ao palácio solidarizar-se com o presidente Washington Luís. "Veja você, o terceiro regimento sublevado, era dia de praia e eu lá no Palácio. De vez em quando, um tirinho aqui, outro ali", fabularia Moreira da Silva décadas depois. "Se os revoltosos do Regimento da Urca soltassem mesmo as tais bombas de 400 quilos que ameaçaram jogar naquele dia, eu tinha meu 'revertere ad locum tuum' sem apelação", relembrava.
Como o bom malandro não anda sempre na linha, "que o trem pega", Moreira da Silva também tinha os pés bem fincados na orgia. Durante a juventude frequentou rodas de baralho, botequins e a zona do meretrício. Conviveu com os malandros históricos da Lapa, gente como Brancura, Manoel Carretilha,Waldemar da Babilônia e João Cobra. E com bambas do Estácio, como Marçal,Bide, Baiaco e Ismael Silva. Tornou-se assim figura conhecida da boemia.
"Convivi muito tempo no meio de malandros, e eles respeitavam minhas batucadas. Eu sempre ia às festas na Praça Onze, onde tinha roda com rasteira, rabo-de-arraia. Era magrinho, novinho, mas entrava na roda e era respeitado!"
Chegou a complementar sua renda com o dinheiro de uma prostituta que se encantou com sua lábia afiada. "Não gostava dela, mas a moça me satisfazia", dizia com sinceridade. Apesar disso, a boemia para ele foi sempre na base da"canja e ovos quentes". O vago-mestre, rei da malandragem, era consciente de seu lero:
"Se me deixar falar, o ladrão não me assalta. Se me deixar falar muito, eu tomo uma grana emprestada", dizia. "O malandro de hoje anda armado de 45, matando motorista de táxi", indignava-se. "Adoro o Rio, mas hoje só saio com um objetivo, por causa da violência".
Um contraste grande com o submundo que conheceu, onde "a arma do malandro era a saliva, o papo, a baba de quiabo". Dizia que "antigamente, você deixava o carro aberto e o máximo que entrava era mosquito. Crime era só passional. Hoje, nas ruas, só tem punguista, ladrãozinho barato", queixava-se. "Tem menino de 16 anos que está emprenhando gente e na hora em que comete um crime diz que é de menor", atacava.
A Carreira
Foi dirigindo táxi que encontrou seu caminho:
"Nessa época, meu principal passageiro era o compositor Ismael Silva. Foi o Ismael quem botou na minha cabeça a idéia de transformar-me em cantor. Graças a ele gravei meu primeiro disco. Nesse tempo eu cantava muito nas horas vagas. Era seresteiro, dava o meu recado."
(Moreira da Silva em entrevista à Revista do Rádio, em 1965)
Sua primeira incursão em disco foi na Odeon, onde gravou dois pontos de macumba de Getúlio Marinho, "Ererê" e "Rei de Umbanda", de 1931.
"O Getúlio me chamou e disse: Moreira, quero usar sua voz para gravar para mim", relembra. Mas gravar música de macumba deixou o mulato cabreiro. "Eu não sou supersticioso, mas me veio um troço assim... Então, sai dessa, malandro, disse para mim mesmo!". Havia motivo para a cisma. "Já vi o sobrenatural", disse, fazendo referência a uma aparição com a qual deparou aos 19 anos, quando chegava em casa, na rua Major Ávila. Uma mulher de preto surgiu à sua frente e desapareceu em seguida.
O primeiro sucesso veio com "Arrasta a Sandália", de Aurélio Gomes e Baiaco (malandro histórico e compositor da Deixa Falar, a primeira escola de samba), em 1932. Em 1934, passou a integrar o cast do "Programa Casé", na Rádio Philips. No ano seguinte, estourou com "Implorar", de Kid Pepe, Germano Augusto e J. Gaspar, pela gravadora Columbia. Moreira da Silva afirmava que a primeira parte desse samba era dele e que J. Gaspar "herdou" seus versos.
Em 1937, César Ladeira o viu cantar no Cassino Atlântico, que ficava no posto 6, em Copacabana, e levou-o para a Rádio Mayrink Veiga. "Todo mundo corria para casa para me ouvir cantar, como hoje corre para ver novela", disse sem modéstia."Quando anunciavam o nome do Moreira numa boate de lona (circo), aquilo enchia". Um ano depois, retornou à Odeon, onde gravou "Acertei no Milhar", de seus amigos Wilson Batista e Geraldo Pereira.
Em 1939, levado pelo cantor português Manuel Monteiro, viajou a Portugal, onde se apresentou no Teatro Politeama. "O navio jogava mais que viciado em corrida de cavalo". Foi um sucesso: "Abafei, com meu passinho de malandro". Agradou tanto que fez uma participação no filme "A Varanda dos Rouxinóis".
A década mudou e ele embarcou numa seqüência de sucessos. Gravou "Amigo Urso", em 1941, "Fui a Paris" (Moreira da Silva e Ribeiro Cunha) e "Dormi no Molhado" (Moreira da Silva), em 1942. No ano seguinte, gravou "Conversa de Camelô" (T. Silva e S. Valença). Em 1950 foi contratado pela Rádio Tupi, do Rio de Janeiro, e lançou seu primeiro LP, pela gravadora Santa Anita. Em 1958 fez um novo retorno à Odeon, onde gravou o segundo LP, "O Último Malandro", em que se destaca o clássico "Na Subida do Morro" (Moreira da Silva e Ribeiro Cunha).
Cantar numa época em que as ondas do rádio eram dominadas por canários como Francisco Alves e Sílvio Caldas, intérpretes sutis como Mário Reis e afetados como Carmen Miranda, - "no tempo em que cantor tinha que esticar a veia do pescoço" - era um desafio gigantesco para Moreira da Silva.
Mas encarnando a imagem dos malandros autênticos, terno de linho branco HJ-S 120, sapato bicolor, de pelica, ou botinha com botões de madrepérola, e chapéu panamá, o marido de Dona Mariazinha convenceu e cavou seu lugar ao sol. Moreira da Silva levou as melodias sincopadas de Geraldo Pereira ao radicalismo do samba-de-breque em clássicos como "Na Subida do Morro". Ele mesmo atribuía pouca importância à sua criação.
"Eu queria mesmo era ser advogado, ter o dom de falar como o Carlos Lacerda".
Dizia que foi por acidente que o breque apareceu, durante um show num cinema do subúrbio carioca do Méier, em 1936.
"Foi por acaso, como quase todas as descobertas dos cientistas. Eu estava cantando um samba fraquinho e decidi interromper e improvisar umas falas só para brincar com a platéia. O Tancredo Silva me deu um samba de quatro linhas 'Jogo Proibido' e eu improvisei em cima: 'Meto a solingen na garganta do otário e ele geme, ai, ai, meu Deus. Não posso mais. Vou me acabar'. Aí nasceu o breque. O público aplaudiu de pé, e eu pensei: é aí que está o petróleo, malandro. Vou meter a sonda."
(Moreira da Silva - Jornal do Brasil, 1972)
Foi o ponto de partida para seus sucessos no gênero que fez o inferno na vida de um violonista conhecido como Frazão, numa história que entrou para o folclore musical brasileiro. Depois de acompanhar Moreira da Silva num show no Teatro Olímpico, o músico virou-se para o cantor e bronqueou: "Foi a primeira vez que acompanhei conversa". Estava criado o "Rap Caboclo", muitas décadas antes do Public Enemy.
"O Luís Barbosa já cantava esse samba fazendo uma espécie de breque corrido", afirmou Moreira da Silva em entrevista à revista Ele & Ela em maio de 1982. Moreira da Silva teria dado o breque geral, falando de improviso sem acompanhamento de instrumentos. Seu segundo samba-de-breque é o pouco conhecido "Fui a São Paulo". Depois veio "Doutor em Futebol", em que mostrava que para ter nome não era preciso ser doutor: "Basta saber controlar o caroço com inteligência".
Moreira Vira Kid Morengueira
Seu último sucesso, já na década de 60, foi o samba "O Rei do Gatilho", de Miguel Gustavo, cuja letra falava de um cowboy que, como o Zorro, tinha por companheiro fiel um índio. Era o Kid Morengueira, que passou a ser o apelido que o acompanhou pelo resto da vida. Miguel Gustavo compôs outros sambas em seqüência à série que falava das aventuras do herói brasileiro: "O Último dos Moicanos", "Os Intocáveis", "Moreira Contra 007" e "O Seqüestro de Ringo".
Foi um renascimento do sambista, que graças à parceria com Miguel Gustavo re conquistou as ondas do rádio, "já agora junto ao público mais sofisticado da Zona Sul do Rio de Janeiro, graças a letras que exploravam situações engraçadas mais próximas do interesse da chamada classe A", fuzilou o crítico José Ramos Tinhorão, com sua opinião de pedra. Mas, coincidência ou não, é nessa época, 1968, que Moreira da Silva se apresenta pela primeira vez numa boate da Zona Sul, a Chez Toi.
Mas os tempos já eram outros. No final dos anos 60 ele se queixava da concorrência dos "cantores cabeludos que estão dando sopa e que cantam até de graça para aparecer nos programas", dizia, ressentido com a televisão. Em entrevista a Ilmar Carvalho, do Correio da Manhã, em 09/04/1970, ele dizia-se feliz com a venda de seus dois últimos álbuns, "Os Sucessos de Moreira da Silva Continuam" (1968) e "Manchete do Dia" (1969), só com sambas inéditos, lançados pelo selo Cantagalo: 30 mil discos.
"Isso porque a gravadora não tem um plano de relações públicas e vendas para o Rio, onde tenho um público bom e fiel", dizia. E explicava seu novo rompimento com a Odeon: "Apareceu gente mais nova, ótimos profissionais, e os mais antigos, como eu, ficaram no come e dorme, sem cobertura da gravadora", resignava-se. "Creio que 'Vôo Espacial' vai fazer o sucesso de 'Amigo Urso'", sonhava o velho malandro, citando uma das faixas do disco "Manchete do Dia".
"O sucesso corre como água de regato. Às vezes pára um pouco, faz aquele remanso, mas a onda vem de novo", diria em depoimento no Museu da Imagem e do Som, em 1967. Mas o sucesso já era coisa do passado.
"O malandro, aquele malandro velho, sucumbiu", pontificava Moreira da Silva sobre a criminalidade daquele início de anos 70, numa frase que soava como uma auto-referência. "Hoje, infelizmente, o que tem é bandido, assassino", diria anos depois.
Mas ele ainda tinha muita lenha para queimar. Em 1970 a EMI-Odeon relançou, pelo selo Imperial, o LP "A Volta do Malandro", que abriu com sua fantástica interpretação de "Gago Apaixonado", de Noel Rosa, compositor a quem sempre foi fiel.
Em 1971, gravou "Moreira da Silva na Academia", alugou um fardão e dirigiu-se para a Academia Brasileira de Letras. Austregésilo de Athaíde, o presidente da casa, não gostou da piada e barrou sua entrada. Sua briga com a Academia Brasileira de Letras prosseguiu até 1984, quando gravou "Clã dos Imortais", do jornalista William Prado, criticando o sistema fechado da entidade, que não aceitava mulheres.
Em 1973, Ivan Cardoso rodou o documentário "Moreira da Silva". No mesmo ano, Moreira da Silva gravou pela CID o disco "Consagração de Moreira da Silva", sem qualquer sucesso. Mas garantia que seu burro estava na sombra: "Hoje não sou rico, mas ganho cinco mil cruzeiros por mês com direito a aumento, tenho direitos autorais, fundo no banco e apartamentos, um na rua do Senado e outro onde mora minha filha".
Já naquela época o mercado para o samba tradicional era São Paulo: "Aqui urubu está voando baixo. Em São Paulo atuo no Canal 7 e na TV Cultura. Até recebi uma medalha de ouro na boate Jogral, onde só se toca samba tradicional", louvou. Mas a porrada vinha embutida: "Só que gravam tapes pra todo o lado e não nos pagam". A televisão, já era a televisão. "Não posso me queixar da vida. Tenho uma rendazinha que dá para enfeitar o babado".
Em 1976, o velho malandro começou uma nova fase. Retornou aos palcos ao lado de Jards Macalé em "É Meu Único Aluno". Apresentaram-se juntos no Projeto Seis e Meia, do Teatro João Caetano. No ano seguinte, inauguraram o Projeto Pixinguinha. Passaram a fazer shows por todos os cantos. Em 1979, participaram de um festival promovido pela extinta TV Tupi, com o samba, única parceria da dupla, "Tira os Óculos e Recolhe o Homem", que foi classificado, o que lhes valeu uma vaia da torcida dos novos artistas, que afinal eram o alvo do concurso. A vaia não o abateu, mas ficou indignado: "É a primeira vez que sou vaiado, pô!". Era fichinha para ele. Seu lugar no panteão dos grandes da música brasileira já estava garantido como o criador do samba-de-breque, um gênero que marcou época. Em 1987, voltaram a fazer show juntos, em comemoração aos dez anos do Projeto Pixinguinha, e voltaram a excursionar.
Ainda em 1979 lançaria pelo selo Jangada (EMI/Odeon) o LP "O Astro", "Talvez o melhor disco da carreira de Moreira", no dizer de Tinhorão. No final do mesmo ano lançou novo disco, "O Jovem Moreira", pela Polygram, em que regrava "Diplomata", de Henrique Gonçalves, composto em 1939 e "Homenagem a Noel", de sua autoria.
Seu próximo álbum só apareceria sete anos mais tarde, pela Top Tape: "Cheguei e Vou Dar Trabalho" (1986), em que inova ao oferecer 18 faixas aos seus fãs, entre elas, surpresa, "A Volta do Boêmio", samba-canção de Adelino Moreira, lançado em 1956, grande sucesso na voz de Nelson Gonçalves e "Último Desejo" (Noel Rosa, 1937), em que relembra seus dotes de seresteiro. Nesse disco dá nova roupagem a outro samba-canção, "As Rosas Não Falam", clássico de Cartola.
Aos 84 anos ele já não era o mesmo cantor que encantou multidões pelas ondas do rádio. "Um tanto forçado nas passagens de nota, é verdade, mas ainda eficiente nos graves", analisaria o crítico Tárik de Souza. Mas ele seguiria em frente.
Em 1989 entrou em estúdio com músicos do naipe de Dino 7 Cordas e Mauro Senise, para gravar o LP "50 Anos de Samba de Breque", pela CID/Fama. Nesse disco regrava mais uma vez "Na Subida Do Morro", "O Rei do Gatilho" e "Acertei no Milhar". E ainda a crônica do sufoco do Rio às voltas com as enchentes em"Cidade Lagoa" (Cícero Nunes e Sebastião Ferreira).