Por que te foste casar?
Sou Adélia Abreu da Fonseca. Casei, mas não casei a tempo de ter filhos. Casei aqui em Coimbra, lembro-me de que foi em dia de São João e que foi no ano de 1930.
Sei que nunca fui bonita, admito que pareço ‘uma coitadinha’, e foi o meu lado balzaquiano que o atraiu e o meu lado pós-balzaquiano que o afastou. Fui mais a mãe que ficara atrás na ilha.
O meu marido era um adolescente adorável. Só que foi sempre um Peter Pan que se opôs tenazmente a crescer. Sei que, em parte, sou culpada disso.
Rendi-me ao fascínio da sua força. Depois, era jovem. Depois, ainda, eram as viagens, os aplausos, o ombro que me pedia sem pedir. Era estouvado, sabia-o, era sedutor, sabia-o também, mas, acreditei, como qualquer mulher apaixonada acredita, que, depois de casada, o poderia mudar. Enganei-me, como quase todas as mulheres se enganam. O tempo, se o mudou, mudou-o para pior.
Sabias que corre na terra, ele até o confessou a amigos e familiares, que casou contigo apenas porque precisava do teu valimento? Porque falhava o do pai? O apenas, não, não sabia, o resto, sabia e aceitei.
Sabias que, além da sua paixão cega pela música, fraquejava perante o sexo fraco? Sim. Sabes se alguma vez te traiu? Não, não sei.
Sabias, fui elemento do Orfeão, que ‘(…) era sensível ao olhar perturbador das admiradoras que, no fim dos espectáculos, apareciam para nos saudar e conviver com aquele numeroso grupo de homens latinos, morenaços, alegres e comunicativos’? Sabia.
E que, ‘a sua primeira preocupação era mandar (te) para a cama (…)’? Pretextando que ‘tinha(s) que repousar e o ambiente de fumo poder-(te-ia) fazer mal (...)’? Sabia, tanto sabia que saía ‘contrariada de cena (…). Não antes de me certificar, deves estar lembrado, de que um de vós me ‘garanti(sse) e trejura(sse) que tomava conta (dele).’ E acreditavas nisso? Fazia por acreditar.
Sabes como actuava o teu Don Giovanni? Sim, gosto que o contem com graça Conta lá: ‘(...) parecia um pavão de leque aberto, contando coisas em português de que as estrangeiras nada percebiam, mas gostavam de ouvir embasbacadas (...)’. Elas, ‘(...) perante aquela figura de baforina à Tyrone, de óculos de míope e de capa negra, como o Drácula, fazendo tilintar uma profusão de condecorações que lhe enxameavam o peito (...)’.
Porque continuei casada? Em parte, porque deveria ser assim. Em parte, porque nunca acreditei, verdadeiramente, o que diziam dele. Em parte, porque, a ser verdade, não passavam de breves desvarios. Compreensíveis nos homens. Em parte, porque ele me dava vontade de rir. Acreditas?
Penso que fui uma senhora bem disposta e muito alegre, de um humor ácido, como garantes que a sobrinha te disse.
Adélia era natural da freguesia da Sé Nova de Coimbra. Sobreviveu ainda ao marido, Manuel Raposo Marques, com quem foi casada trinta e seis anos.
Mário Moura