Na sombra, fui sol
Nasci em Castelo Viegas e vim morrer à Foz do Douro. Aos cinquenta e nove anos, quando me resignei com a morte, morri. Mas, morri descansada porque as minhas duas filhas iam ficar a cuidar do pai e do irmão.
No dia a seguir à minha morte, um jornal disse que era ‘(…) adorada pela família (…), a quem havia (…) consagrado ‘(…) o afecto de toda a [minha] vida.’ Certamente por me ter apagado em vida, como se esperava das boas mulheres de então, para que o meu marido e o nosso filho, brilhassem, é que aí se acrescenta que fui uma ‘senhora de modelares virtudes, extremamente bondosa e dum carácter nobilíssimo (…).’ Por ser ou parecer assim, era ‘geralmente estimada por quantos (…) [me] conheciam e apreciavam os primores do coração (…).’
As duas fotografias que tens de mim, dizes tu, representam-me como uma mulher bonita, de rosto oval, mas de olhar distante e triste. Magra de rosto, na primeira, apareço de cara mais composta, na segunda. A primeira, será da minha adolescência, a segunda, talvez de pouco antes da minha morte.
Era uma ilustre filha de uma velha família aristocrática da Beira, descendente de um corifeu do primeiro liberalismo. Aprendi a ser dona de casa. Que era letrada: lia e escrevia, talvez, dizes tu ainda, até falasse uma língua estrangeira ou tocasse algum instrumento musical.
Como foi possível a um plebeu conquistar o coração de uma aristocrata? A tua família esteve a favor ou contra o casamento? O que sei é que, dizes tu, numa época em que o romantismo desarranjara a ancestral ordem entre classes e sexos, eu cedi e ele cedeu. Olhaste-o mais com os olhos dos apetites da alma: irradiava certeza e segurança, era poeta, estudante ou já médico, loiro e de olhos azuis. Ele, homem, olhou-te mais com os olhos dos apetites do corpo: eras bela, triste, distante e insegura, e trazias contigo perfumes e encantos de outros mundos e tempos. Tu deste-lhe o desejo de te oferecer o ombro; ele deu-te o anseio de lhe confiares o colo. Foi assim? Meu caro, se aí no mundo de onde vim era já difícil responder-te, daqui, do mundo para onde vim, crê em mim, apesar de ver melhor aqui do que via aí, mesmo querendo, seria milagre a minha resposta te ser entregue aí.
Aos trinta e um anos, dizes ainda, quando talvez já não pensasse em casar, casei. Em quatro anos mudei quatro vezes de casa e quatro vezes de terra. Para acompanhar o meu marido, troquei o conforto da minha casa de solteira em Coimbra pelo desconforto de três terras serranas do interior até chegar à Foz. Em diferentes terras, tive quatro filhos, três raparigas e um rapaz: aos trinta e quatro fui mãe do primeiro (que conheces) e aos trinta e oito do último. Perdi um filho ainda criança.
Orgulhoso como foi, subiu na vida pelo seu pé: como médico, como administrador hospitalar, como político, até como poeta. Mais do que um nome ilustre, transmudada a força arrebatada da paixão na força deleitosa de um amor suave, feito de estabilidade, respeito e cumplicidade, deste-lhe o regaço seguro do mundo da casa de onde ele se afoitou seguro ao bojo incerto do mundo fora da casa.
Foste sua companheira durante vinte e sete anos. Reconheceu-te, pois, quinze anos após partires, foi a teu lado que quis repousar. Para os íntimos, eras apenas Maria Emília, para os de fora do teu íntimo círculo de intimidade, Dona Maria Emília Monteiro Soares de Albergaria. O teu companheiro de vida e de morte chamava-se José Nunes da Ponte.
Maria Emília: n. 06.01.1850 – Castelo Viegas – Coimbra; f. 1.05.1909 – Foz do Douro - Porto
Mário Moura