Gabriel Marcel em F. Lelotte, S. J. (1966): http://www.filosofia.ufc.br/argumentos/pdfs/edicao_4/15.pdf

Bibliografia

(2 tomos ... LELOTTE, F. Convertidos do século XX. [Convertis du XXme. siècle.] Trad. Hoche Luiz Pulchério. 2ª ed. Rio de Janeiro: AGIR, 1966. 264p. ... do Reader's Digest ...

http://simplesdicas.com/TEXTOS/Bibliografia.htm

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POR UMA TEORIA EFEMÉRICA DA POÉTICA DA DOR E DO AMOR

19 fev. 2012 ... Editorial. 23 de set.2004., p. 02. LELOTTE, F. Convertidos do século XX. Rio de

Janeiro, Agir, 1966. LEMINSKI, Paulo. Distraídos venceremos.

www.recantodasletras.com.br/teorialiteraria/3508799 - - Páginas semelhantes

A O Mistério da Encarnação em Gabriel Marcel

de Janeiro: Civilização Brasileira. 1968. LELOTTE, F. (Org). Convertidos do

século XX. Rio de Janeiro: Agir, 1966. MONDIN, B. Curso de filosofia. 3. 3. ed.

São ...

www.filosofia.ufc.br/argumentos/pdfs/edicao_4/15.pdf -

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O Mistério da Encarnação em

Gabriel Marcel

José André de Azevedo

∗

∗

Mestrando em Filosofia Moderna e Contemporânea pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE, Toledo-Pr).

RESUMO

Partindo de um contexto de crítica ao cientificismo e racionalismo modernos, apresentando-se com

um pensamento assistemático, itinerante e questionador, Gabriel Marcel afirma que a filosofia possui

uma arché: a existência, ponto de partida e de referência do labor philosophicus. A partir da questão

Quem eu sou? chega-se à percepção da existência (encarnação), o que nos leva, necessariamente, a

uma questão ontológica (mistério do ser) e isso, por sua vez, segundo Marcel, nos remete à questão do

transcendente (existência e transcendência). A encarnação, segundo Marcel, é o dado central da metafísica, pois é a mediação entre o eu e o mundo e os outros, é a consciência de mim no meu corpo e, por

isso, perpassada de uma intensa comunhão ontológica (participação). A existência encarnada, assim,

exige, de imediato, a questão do ser, o que leva Marcel a distinguir, na relação ontológica, mistério e

problema. Na vivência do mistério, o ser humano possui algumas exigências: recolhimento, engajamento,

fidelidade, esperança e amor. A vivência do mistério do ser, perpassada pela comunhão entre o meu

eu e os outros, leva à afirmação de um Tu Absoluto: a transcendência. Assim, o mistério da encarnação

instaura, na tradição filosófica, uma nova ordem de questionamento do homem e do mundo.

Palavras-chave: Gabriel Marcel; Encarnação; Carnalidade; Mistério.

ABSTRACT

Since the context of a critique of modern scientism and rationalism, presenting with an unsystematic

thinking, questioning and wandering, Gabriel Marcel says that philosophy has an arche: the existence of

starting point and reference labor philosophicus. From the question Who am I? comes to the perception

of life (incarnation), which leads us necessarily to an ontological question (mystery of being) and this,

in turn, according to Marcel, reminds us of the transcendent issue (the existence and transcendence).

The Incarnation, according to Marcel, is the central finding of metaphysics, it is the mediation between

self and world and others, is the consciousness of myself in my body and, therefore, crossed an intense

ontological communion (participation). The embodied existence thus requires, first, the question of being, which leads Marcel to distinguish in relation ontological mystery and problem. In the experience of

mystery, the human being has some requirements: collection, engagement, fidelity, hope and love. The

experience of the mystery of being pervaded by the communion between my self and others, leads to

the assertion of a Absolute: transcendence. Thus, the mystery of the Incarnation, therefore, establishes,

in the philosophical tradition, a new order of questioning the man and the world.

Key words: Gabriel Marcel; Incarnation; Carnality; Mystery.Argumentos, Ano 2, N°. 4 - 2010 107

Introdução

Em 2009 comemoramos 120 anos do nascimento do filósofo Gabriel Marcel (1889-1973).

Considerando o fato de que fazer Filosofia é

também travar um profícuo diálogo com a tradição filosófica e seus pensadores, propomos,

apresentar o tema central deste que celebramos

o natalício: o mistério da encarnação; e, esperamos, assim, retomar, na discussão filosófica

atual, o seu estudo.

Gabriel Honoré Marcel nasceu em Paris

aos 07 de dezembro de 1889. Filho único de

um conselheiro de Estado e embaixador em

Estocolmo, ficou órfão de mãe aos quatro anos

(fato que marcará profundamente sua vida e seu

pensamento) e foi educado pelo avô e pela tia,

a qual viria a ser sua madrasta.

Estudou Filosofia e tinha grande afeição

à música, literatura e teatro, o que faria dele

amante da arte musical, eminente crítico literá-

rio, dramaturgo e profundo filósofo. Concluiu

seu curso de Filosofia em 1908, defendendo a

dissertação A Metafísica de Coleridge em suas

Relações com a Filosofia de Schelling.

Em 1919 casou-se com Jacqueline Boegner, sua inteligente colaboradora, cuja morte, em

1947, será para Marcel uma irreparável perda.

Criado pela tia/madrasta, judia convertida ao protestantismo (o que acarretará uma

educação estritamente rigorosa para Marcel),

e tendo um pai agnóstico, Marcel não se preocupou, de início, com problemas religiosos.

Entretanto, a morte da mãe e a experiência na

Primeira Grande Guerra levaram-no a profundos questionamentos sobre a existência e, após

algumas experiências religiosas em doutrinas

modernistas e práticas espirituais, converte-se,

ao catolicismo em 1929.

Após a Segunda Grande Guerra, seu

círculo de amizade se conta entre intelectuais

como: Gilson, Mauriac, Maritain, Claudel. O

tempo de ocupação da Segunda Guerra Mundial e os anos que se seguem representam um

período de maior expansão intelectual, principalmente na França. Neste período multiplica

suas conferências, viajando para Alemanha,

Estados Unidos, Noruega, Canadá, Japão, Espanha, Líbano, etc. Em 1949 ganha o prêmio de

literatura da Academia Francesa. É eleito membro da Academia de Ciências Morais e Políticas.

Muitas outras homenagens são-lhe prestadas:

“Prêmio Goethe” da cidade de Hamburgo em

1956, o Prêmio Nacional de Letras em 1958, o

Prêmio de Osíris em 1963, o Prêmio Erasmo em

1969. Suas obras passam a ter difusão internacional com traduções em diversas línguas.

No dia 08 de outubro de 1973, o filósofo

da concepção humana de Homo Viator realiza

sua “última viagem”, falecendo em Paris.

Pretendemos, então, neste artigo, apresentar o seguinte estado de questão: como

Marcel articula sua visão de mundo e de ser humano perpassando pela questão da existência

encarnada? Como falar de metafísica a partir do

corpo como categoria ontológica numa ordem

de questionamento que é a do mistério?

As questões acima são fundamentais nas

intenções de nosso trabalho, pois elas objetivam

um processo de compreensão e diálogo a partir

dos textos marcelianos na perspectiva temática

do conceito de corpo para além da tradição

filosófica e metafísica.

Porém, antes mesmo de tratarmos a

problematização do nosso tema condutor - o

mistério da encarnação em Gabriel Marcel -,

vale frisar que este trabalho implica, desde já,

um questionamento metodológico importante.

Tratar-se-ia de um esforço homérico e ousadia

gigantesca de nossa parte buscar uma sistematização do pensamento marceliano, visto ser o

próprio Marcel avesso às questões postas em

termos de sistemas, pois, para ele, os sistemas

possuem a tentação de fechar em silogismos a

completude e o mistério da existência. Na obra

de Marcel não nos deparamos com um encadeamento dedutivista, não cruzamos com teses ou

proposições ligadas pela partícula ergo.

Sendo assim, pretendemos não sistematizar um pensamento que foi apresentado de

forma assistemática, mas vesti-lo de uma característica pedagógica e didática que possa

favorecer a compreensão do pensamento de

Gabriel Marcel no tocante à temática proposta

para esta pesquisa: o enigma da encarnação.

O Lugar de Marcel na Tradição

Filosófica

A obra de Marcel é marcada por uma originalidade filosófica sem precedentes. Contemporâneo de Husserl, Heidegger, Merleau-Ponty

e Sartre, Gabriel Marcel antecipa e infunde, já

nas primeiras décadas do pensamento francês 108 Argumentos, Ano 2, N°. 4 - 2010

contemporâneo, um estilo de reflexão própria

que levou à maturidade especulativa inúmeros

temas e questões decisivas que encontraram

lugar de destaque no movimento existencialista

e fenomenológico. O fio condutor que atravessa

toda a sua contribuição teórica é a temática da

encarnação que ele mesmo caracteriza como

o tema central de toda a metafísica. Assim,

partindo da situação fundamental do homem

como uma existência encarnada, isto é, como

ser vinculado carnalmente à realidade concreta, Marcel explora substancialmente a idéia

de uma participação ontológica mais ampla e

profunda entre o humano e o mundo, entre o

eu e o outrem para além do prejuízo clássico da

dicotomia sujeito/objeto.

Esta aposta marceliana se traduz na recusa

onde há um mundo em que o “ter” prevalece sobre o “ser”, uma existência em que a aparência

prevalece sobre a realidade, uma cultura que

instaura o excesso de racionalidade e objetividade. É essa “análise da existência”, conforme

define Zilles (1988, p. 13), que constitui a força

motriz do pensamento marceliano. A exemplo

de outros pensadores de sua geração, Marcel

é um filósofo que reflete a situação humana

num contexto histórico-filosófico extremamente

crucial em que a humanidade assiste uma irreparável crise cultural produzida, sobretudo,

pelo advento da Primeira Grande Guerra, pelos

sistemas totalitários, etc. O ser humano percebese limitado, fragilizado e totalmente destruído

diante da existência e constata que os sistemas

de pensamento essencialistas, entre eles o idealismo, não fornecem uma resposta mais decisiva

diante de tal quadro de crise civilizatória. Como

bem teria observado Emmanuel Mounier, “o

existencialismo se apresenta como uma reação

da filosofia do homem contra o excesso da filosofia das idéias e da filosofia das coisas.” (Apud

ZILLES, 1988, p. 13). Por isso, não é tarefa fácil

determinar o lugar do pensamento marceliano

na tradição filosófica. A ontologia clássica, por

exemplo, particularmente a medieval, pensava

o ser a partir da ótica essencialista; o idealismo

alemão o via como infinito e imutável; já Marcel

procura estabelecer no âmbito do ser o elemento

chave da historicidade e da finitude. Sua filosofia, então, pode ser vista como um pensamento

a caminho, como uma proposta de “filosofia

concreta”, onde o transcendente aparece no

centro de nossas experiências humanas, onde

a descoberta de nossa situação como seres

encarnados nos leva a uma participação no

próprio ser.

A Filosofia do Concreto

Ao partir desse contexto, Marcel passa

a explorar a idéia do homem como projeto ou

como vir-a-ser. O homem deixa de ser uma

essência, um ser definível de maneira exaurível

para mergulhar no coração mesmo da finitude

e do presente como um ser encarnado. Ele se

revela, antes de tudo, como uma experiência

corporal. O corpo, nessa curiosa acepção marceliana, se torna, desde então, uma categoria

ontológica sem precedentes: ele se manifesta

como uma experiência de mistério (eu não

tenho um corpo, mas sou meu corpo), abrindose, portanto, à possibilidade da alteridade e da

transcendência. É sob esta ótica que Marcel

elevará o tema da encarnação como o dado

central da metafísica. O que passa a entrar

em jogo aqui é a interrogação radical sobre a

existência humana, uma existência fragmentada

e desumanizada, onde a técnica baniu toda a

experiência de mistério.

Por isso, aos olhos de Marcel, a tarefa do

filósofo deve visar absolutamente uma “filosofia

do concreto”, no sentido de que o ato de filosofar

deve ser o ato de “pensar em”, o que sugere

uma relação com um “tu”. A filosofia nada mais

é do que a tensão permanente entre o eu e as

profundidades do ser no qual somos. Garaudy

nos apresenta uma longa descrição desse empreendimento:

Para chegar ao ser verdadeiro, Gabriel

Marcel elaborou uma teoria dos graus

do conhecimento. Poder-se-ia compará-

la à de Platão ou à de Spinoza, mas é

parente mais próxima da de Maine de

Biran. Com efeito, em sua busca de um

pensamento existencial, e não formal,

Gabriel Marcel foi levado a elaborar o

que poderia chamar-se de uma epistemologia personalista. Ressalta-se de início

a ambigüidade da noção de fato. O fato

não pode ser nem simplesmente dado,

nem inteiramente produzido. Acha-se

para lá da oposição corrente entre atividade e passividade. A verdade inclui a

obrigação de ser reconhecida, mas este

reconhecimento é um ato sem o qual Argumentos, Ano 2, N°. 4 - 2010 109

verdade e realidade se confundiriam. Só

há verdade em relação a um sujeito. O

conhecimento é uma reflexão que se situa

entre dois imediatos: o imediato primitivo

da criança que se acha espontaneamente

apegada à vida, imediato este que se

destrói pela reflexão, e o imediato que

se acha para lá do pensamento, que

supera a reflexão: a fé. Entre esses dois

imediatos, Gabriel Marcel distingue duas

espécies de reflexão: a reflexão primá-

ria, que abstrai e que empobrece, e a

reflexão segunda, que é recuperadora.

A experiência imediata é a de uma permuta existencial entre o objeto e o sujeito.

Reconhecemos aí um tema que MerleauPonty desenvolveu em sua concepção do

pré-perceptivo e do pré-reflexivo. Em seu

esforço pela posse técnica do mundo,

o pensamento abstrai essa experiência:

a partir da consciência espontânea, a

reflexão primária se elabora segundo as

categorias do ver e do ter. Por analogia,

com o fenômeno da visão, observado em

outrem, a percepção aparece como um

fenômeno que comporta a emissão de um

sinal, a recepção deste sinal por um outro

corpo, e a interpretação deste sinal por

outro pensamento. Tudo se exprime aqui

em termos de exterioridade. Ademais, o

objeto percebido é visado por um desejo

ou uma ação, define-se em termos de

posse, de ter, distingue-se daquele que o

retém ou aspira a retê-lo e é radicalmente

independente dele. A reflexão primária só

deixa subsistir relações entre coisas, relações impessoais e relações estranhas à

existência viva e vivida do homem. O objeto e o sujeito acham-se dissociados. O

pensamento está separado da realidade.

A objetividade que procede dessa dupla

ruptura nada mais tem em comum com a

existência. É sua caricatura depauperada.

Dá-me, como um espetáculo, um mundo

de onde me acho excluído como sujeito

atuante. A reflexão segunda é antes de

tudo negação e recusa desse mundo

empobrecido que não é o ser. É negação

de uma negação, é uma reconquista,

uma recuperação da unidade perdida.

Afirma uma transcendência em relação a

esse mundo objetivo. Procura encontrar a

presença do ser, entrar em participação

com ele. Recupera o que havia de concerto na experiência imediata e que a

reflexão deixara cair. A reflexão primária

exercia-se no mundo dos problemas, que

é o da objetividade; a reflexão segunda

exerce-se no do mistério. Gabriel Marcel

assinala veementemente a diferença: “Um

problema é algo com que me deparo, que

encontro todo inteiro diante de mim, mas

que não posso por isso mesmo abarcar e

reduzir, enquanto que o mistério é algo

em que eu próprio estou comprometido

e que, por conseguinte, só é pensável

como uma esfera em que a distinção

entre o em-mim e o ante-mim perde sua

significação e seu valor inicial”. Quando

se trata do mistério, não tenho mais o recuo do espectador, acho-me em causa e

a questão acerca do que é o ser não mais

se separa da questão acerca do que sou.

(GARAUDY, 1968, pp. 144-145)

Pode-se dizer, em certo sentido, que Marcel faz uma espécie de análise fenomenológica

numa perspectiva intimamente ontológica. Ele

não visa um pensamento pensado, mas um

pensamento pensante numa situação concreta,

que se constitui numa progressão ascendente.

Não admite que o filósofo se enclausure num

conjunto de fórmulas racionalmente concatenadas, pois

O método do filósofo existencialista

cristão, chamado vagamente de “fenomenológico” não se parece com o de

outros filósofos existencialistas. Marcel

é o filósofo mais concreto, mais ligado

ao exame de experiências vividas e

cujo sentido vem a ser por ele extraído

através de um processo de tentativas, de

descrições, de análises, de aproximação

de temas correlatos, segundo um ritmo

que não pode senão parecer ligado à

irrupção que o filósofo vê o seu próprio

método, nem a sua filosofia é uma filosofia

da intuição. No que o pensamento de

Marcel tem de afirmativo, não se vê como

deixar de observar que procede, não por

encadeamento lógico, por dedução, mas

através de descrições, seguidas de fórmulas categóricas, dramáticas, parecendo

saltar das experiências humanas para

as conclusões, sem qualquer seqüência

reconhecível. (DOMINGUES in CINTRA,

1972, p. 62).

É sob este contexto maior que buscamos

apontar na obra filosófica de Marcel o estatuto 110 Argumentos, Ano 2, N°. 4 - 2010

decisivo pelo qual o mistério da encarnação se

torna o fio condutor de uma reflexão que se

pretende original, propositiva e, portanto, radical em seus fundamentos últimos.

A Encarnação: Dado Central da

Metafísica

Ao construir sua filosofia, Marcel partirá

da questão da corporalidade, ou seja, a meditação sobre o que, “impropriamente”, julga ele,

chama-se “o problema da alma e do corpo”.

Marcel não afirmará que “eu tenho um corpo”,

mas que “eu sou um corpo”. Isso também o materialismo teria considerado, porém, num âmbito

de abordagem não suficientemente radical, na

medida em que o materialismo confunde o “meu

corpo para mim” com o “meu corpo para os

outros e entre os outros”, “o meu corpo-sujeito”

com “meu corpo-objeto”, produzindo, portanto,

um dualismo intransponível entre a consciência

e o próprio corpo. Assim, Marcel utilizar-se-á da

expressão ser encarnado. O ser encarnado é a

condição de acesso ao real e referência central

da reflexão metafísica. A concepção de corpo

como ser encarnado nos faz sair do idealismo

e “cair” no mundo da presença, da ecceidade

da existência, como bem volta a comentar longamente Garaudy:

Um dos maiores delitos da reflexão

primária é ter estabelecido entre meu

corpo e eu uma exterioridade abstrata:

ora, sublinha Gabriel Marcel, “pareceme impossível conceber como um ego

desmaterializado poderia ainda ter a

pretensão ou o cuidado de possuir”,

ainda que fosse de possuir um corpo.

Pelo contrário, meu corpo é modelo não

figurado, mas sentido, ao qual se refere

toda posse. “Sou meu corpo” e todas

as coisas que tenho ou que desejo ter,

experimento-as como prolongamentos de

meu corpo. Não existe entre meu corpo

e mim uma relação instrumental: meu

corpo não é uma de minhas ferramentas,

entre outras. Quando tenho essa ilusão,

é que raciocino por analogia a partir do

corpo dos outros, que posso, com efeito,

ver e manipular como um objeto. É eu

mesmo, é o corpo-sujeito, meu ponto de

inserção no mundo. Identifica-se com o

fato de que estou situado no mundo. Meu

corpo – não o corpo abstrato estudado

pelo biólogo, mas o corpo de minha

experiência vivida – é o mediador entre

mim e o mundo. Entre mim e tudo o que

existe há uma relação do mesmo tipo

daquela que me faz um com meu corpo.

Por meu corpo, estou em simpatia com as

coisas. É minha encarnação como ser em

situação no mundo. “O ser encarnado,

referência central da reflexão filosófica”,

escreve Gabriel Marcel. E acrescenta:

“A essência do homem é de ser em situação”. As duas fórmulas entrelaçam-se e

completam-se. Significam que tudo o que

existe, no mundo ou na história, acha-se

situado em relação a meu corpo, ao final

de uma série de mediações que podem

ser numerosíssimas; tudo isso se encontra

na minha órbita existencial e implica, seja

em que grau for, na minha presença, na

minha existência. Reciprocamente, só

posso existir situado, hic et nunc, inserido

num lugar bem definido do mundo, o de

meu corpo. Para lá da reflexão primária,

que me excluía das coisas, reconheço minha aderência carnal ao mundo, os laços

nupciais entre o mundo e eu. A noção de

existência ganha precisão ao mesmo tempo que a noção de encarnação, central

na obra de Gabriel Marcel. Por ela se

define toda existência. A sensação, como

dado sofrido por um corpo-objeto, é uma

abstração. A relação entre o mundo e

mim, entre meu corpo-sujeito e o ser no

qual se banha, é ao mesmo tempo dom e

obra; é participação. Não sou espectador

do mundo, mas participante. (GARAUDY,

1968, p. 145-146).

O que Marcel pretende é compreender

a realidade e a existência a partir do dado da

encarnação. Nessa direção poderíamos traçar

um breve, mas decisivo esquema dessa temática

central, tal qual encontramos na obra de Marcel:

a partir do questionamento central da existência

(Quem sou eu?) chega-se à sua idéia original

e pétrea: sou existência encarnada (Encarna-

ção). Essa existência encarnada, feita carne e

corpo, participa do mistério do ser (Ontologia)

e encontra maneira de vivenciar o ser (Participação). Na vivência ontológica encarnada do

ser – por meio da participação, que se revela

em posturas de recolhimento, fidelidade, amor,

fé, compromisso, engajamento e esperança –

percebemos o outro não como coisa, objeto ou Argumentos, Ano 2, N°. 4 - 2010 111

um ente em terceira pessoa (ele), mas como um

outro em segunda pessoa (tu); na percepção de

que o outro é a possibilidade de auto-revelação,

chega-se, necessariamente, à questão do Totalmente Outro, do transcendente (Existência e

Transcendência).

Este sugestivo esquema que ora delineamos apenas visa referendar a real dimensão

que a temática da encarnação ocupa na obra

filosófica marceliana, isto é, sua decisiva originalidade. É uma ordem de questionamento que

nasce de uma explícita oposição ao cientificismo

e o racionalismo redutivo, buscando, sobretudo,

um nível de interrogação filosófica itinerante

num mergulho ao coração da transcendência.

Como vimos, a existência é o ponto de

partida e o ponto de referência da filosofia de

Gabriel Marcel. Em oposição ao pensamento

racionalista-idealista, objetivante e abstrato,

antes que uma razão, somos existência, real

e concreta, inserida no mundo. Em outras palavras: a existência é, necessariamente, uma

existência encarnada. Sendo um ser encarnado,

nossa condição de ser existente nos é revelada

de modo imediato e inconfundível como encarnação, isto é, enquanto a consciência mais

gratuita de mim no meu corpo. Tomemos, então,

as palavras do próprio Marcel:

A encarnação – dado central da Metafísica. A encarnação, situação de um ser

que aparece a si ligado a um corpo. Um

dado não transparente a si mesmo: oposição ao cogito. Deste corpo não posso

dizer que é meu corpo, nem que não é,

nem que é para mim (objeto). A oposição

entre sujeito e objeto é transcendida. Mas,

ao contrário, se parto desta oposição tratada como fundamental, não haverá mais

truque lógico para reunir esta experiência; inevitavelmente terá passado ou foi

recusada, o que é a mesma coisa. Não se

deve objetar que esta experiência apresenta um caráter contingente; na verdade

toda a investigação metafísica requer um

ponto de partida deste gênero. Só pode

partir de uma situação que reflete sobre

si mesma seu poder compreender-se.

Examinar se a encarnação é um fato;

não me parece que o seja. É um dado a

partir do qual um fato é possível (o que

não é verdade a partir do cogito). É uma

situação fundamental que, a rigor, não

pode ser dominada, rotulada e analisada.

É precisamente esta impossibilidade que

eu afirmo quando declaro, confusamente,

que sou meu corpo, ou seja, que não posso conceber como um termo distinto do

meu corpo, que se mostra numa relação

determinável. Como já disse, no momento

em que o corpo é tratado como objeto da

ciência, eu me exilo no infinito. (MARCEL,

2003, p. 13-14).

A encarnação – dado central metafísico –

é, pois, a mediação entre o eu e o mundo e os

outros. As coisas no mundo não são, em primeiro

lugar, objetos do espírito, mas como que prolongamentos do corpo. A presença orgânico-psí-

quica do corpo é o centro de referência de toda

órbita existencial ou, numa analogia, o campo

magnético em que gravitam todas as coisas. Isso

implica que não somos autônomos, não estamos

limitados a nós mesmos, num eterno solipsismo,

mas, sim, somos permeáveis às demais coisas.

Viver é estar aberto a uma realidade com a qual

entramos em uma espécie de comunhão. Enfim:

a encarnação é a participação no mistério, o que

se dá em três níveis: o homem como ser encarnado, as relações intersubjetivas e a abertura

do homem ao transcendente.

Ser e Ter

Entretanto, o mistério da encarnação pode

converter-se em uma existência inautêntica se

vier a situar no nível do ter. Marcel analisa essa

situação em profundidade na sua obra Ser e Ter.

Na categoria do ter, a existência é “devorada”

pelos objetos, o ter conduz ao desespero e à

falta de sentido. O ter é aquilo que é objetivável,

exponível a outros, é a exteriorização do ser, o

seu fazer-se espetáculo; ele é o “coisificar-se”

do ser, o seu vir para fora, o seu epifanizar-se,

fragmentar-se, mumificar-se. O ter, acentuando

a si mesmo, anula o ser; mas, tornando-se instrumento, subirá ao plano do ser. Assim, é preciso,

nos tempos atuais, redimensionar a existência,

tornando-a disponível ao ser.

O Outro na Ótica Marceliana

E como fica a questão da intersubjetividade no pensamento de Marcel? Quem é o outro?

Como participamos do mistério da outridade?

A existência dos outros também nos é dada na 112 Argumentos, Ano 2, N°. 4 - 2010

experiência existencial da encarnação. A primeira coisa que aparece nesta experiência é a

oposição radical entre a existência do outro e

qualquer coisa que nos é dada como objeto. O

objeto é o despersonalizado, o desubjetivado,

o que é independente do que somos. Pelo contrário, o outro pessoal, o tu, constitui-se como

um complemento de nossa personalidade, um

prolongamento de nossas situações subjetivas,

como aquele com quem temos relações de intersubjetividade e comunicação. O outro nos é

dado, pois, como uma presença inobjetivável,

o que se traduz numa autêntica comunhão ontológica. O “existir” (esse) é ao mesmo tempo

coexistir (co-esse), tanto no plano da existência

sensível, como, sobretudo, no plano do ser

pessoal. O caráter único e inefável do eu se

fundamenta na co-presença.

Marcel insiste, portanto, que a existência encarnada sugere, de imediato, a própria

questão do ser. A filosofia existencial conduz,

necessariamente, a uma ontologia. Nessa direção, Marcel situa-se na linha de Heidegger

e Jaspers, ou seja, a pergunta sobre o ser está

incluída no mesmo sujeito que questiona sobre

a sua existência; toda filosofia existencial leva,

inexoravelmente, a uma ontologia.

Mistério e Problema

A reflexão sobre o ser é uma necessidade

no momento atual. Para Marcel, o mundo está

quebrado e há conflitos e guerras permanentes.

E o que surpreende o pensador francês é a mentalidade que impera nesse mundo: o mundo é

uma soma fixa de forças, é o mundo da vontade

de potência e nenhum outro. Essa imanência

radical, sem saída, é o aspecto mais impressionante para Marcel. Para ele, esse mundo apresenta três características fundamentais: a) nele o

homem identifica-se com suas funções; b) nele

a técnica torna-se técnica de envilecimento;

c) nele o espírito de abstração cria o terror e o

desespero. Assim comenta Garaudy:

Essa orientação das técnicas conduz ao

desespero: há de início um mundo dos

objetos de onde estou ausente e que me

ignora, um deserto, e depois há a morte,

porque se me defino apenas por minha

função, desde que, pela velhice, a doença ou a morte, deixe de preencher

essa função e torne-me inutilizável, estarei

totalmente aniquilado. (GARAUDY, 1968,

p. 143).

É sob essa medida que Marcel passa a

discutir uma importante distinção entre duas

ordens de temas: problema/mistério. Problema

é algo objetivo, que está aí para ser resolvido,

dissolvido; mistério é algo que envolve, compromete. O problema, pois, é o que está “perante

mim”, objetivável, passível de ser decomposto

por conceitos. Esse é o campo da ciência: um

campo de problemas. O mistério, por outro

lado, significa o que está “em mim”, o que me

faz estar implicado com ele. O mistério transcende a oposição de sujeito e objeto, por isso

não pode ser representado, o que equivaleria

a objetivá-lo. Ele está situado numa zona profunda da realidade, que Marcel chama de

metaproblemático.

Mistério não é simplesmente o insolúvel;

afinal de contas o campo da ciência está cheio de

problemas insolúveis, mas que se espera serem

resolvidos. A zona do mistério é de outra ordem.

O ser como mistério não pode ser mediatizado,

nem comunicado; todavia é muito concreto. A

atitude do espírito frente a ele é muito distinta;

chega-se a ele não pela via lógica, mas por certas experiências, até chegar ao reconhecimento.

A tarefa da metafísica pode ser definida como

uma reflexão dirigida ao mistério. Sendo assim,

o campo do mistério é amplo e abarca todo um

âmbito de realidades recônditas, como, por

exemplo, a questão do mal, relação corpo-alma,

a liberdade, o conhecimento, o amor, etc. Mas

todos esses mistérios são somente aspectos de

um mistério fundamental: o mistério do ser. Para

Marcel, o ser não é um objeto perante nós; nós

mesmos somos ser, participamos no ser, de sorte

que nos incluímos na pergunta que colocamos.

É impossível separar as perguntas O que é o ser?

e Quem sou eu?. A questão do ser comporta,

pois, um envolvimento existencial. E é sob este

horizonte que a experiência da encarnação se

apresenta, antes de tudo, como um mistério.

Considerações Finais

Ao apresentarmos nestas linhas o pensamento central de Marcel – o mistério da encarnação –, deve estar subentendido a antropologia

marceliana: o homem é um “ser encarnado” e Argumentos, Ano 2, N°. 4 - 2010 (P.113)

fonte: http://www.filosofia.ufc.br/argumentos/pdfs/edicao_4/15.pdf

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