Edmundo Manuel Garcia Machado d’ Oliveira: o patrono do órfeão
V. Edmundo Manuel Garcia Machado d’ Oliveira: a música na alma e a história no pensamento
Minha avó Deodata e a mãe dele, vizinhas de Santo André, tratavam-se por primas. Não era que fossem primas, isto devia-se ao facto, diz-me minha tia Natália, de minha avó ser afilhada da avó dele. Meu pai e meus tios tratavam-no por primo. Só há pouco soube que não éramos primos verdadeiros. Senti pena. Mas, no meu íntimo, e à moda antiga, será sempre meu primo.
‘Lá, vai haver festa!’ Ouviu-o dizer distintamente a esposa pouco antes de expirar a onze de Agosto de 1982. Estava em Almada, bem longe da sua querida terra de berço. Dali a nada seria o Santíssimo Salvador do Mundo na Ribeirinha e o quinze de Agosto nas Caldeiras. Este ‘lá, vai haver festa!’, reflecte toda a sua mágoa. Não teve coragem de regressar em vida às suas terras amadas: a Ribeira Grande, que o viu nascer, e Angra do Heroísmo, que o viu crescer. Os tempos eram cruelmente outros. Em 1948, quando os seus agora quatro companheiros de rua estavam a chegar à terra ou aproximavam-se do auge das suas carreiras, ele era ainda seminarista. Completaria o Curso Teológico em 1952 com a classificação de dezasseis valores.
O Homem inteiro: o Sacerdote e o Músico
Numa curta existência de cinquenta e três anos, a sua vida iria conhecer muito: iria dar voltas, reviravoltas e cambalhotas de todo o feitio. Entretanto, havia entrado para o Seminário no mês de Setembro do ano de 1941. Como tantos outros antes o haviam feito e depois o haveriam de fazer, decidira-se pelo sacerdócio por influência do padrinho, Prior Evaristo Carreiro Gouveia. O irmão Albano, mais novo um ano, foi também para o Seminário diocesano de Angra.
Completaria treze anos no primeiro dia de Outubro. Nascera no ano de 1928 na freguesia de Nossa Senhora da Estrela. Apesar de uma nota biográfica dar a rua de Santa Luzia como sendo a do nascimento de Edmundo, perfilam-se duas outras candidatas: a rua de João d´Horta e rua de Santo André. Explico. O Rol Quaresmal do ano de 1928, um ano antes de Edmundo nascer, sem indicar número de polícia, mostra os pais a residirem na rua de João d’Horta. Não será certamente na casa n.º 34, pois aí, hoje residência paroquial, sabe-se por outras pesquisas, moraria D. Júlia Botelho. Por seu turno, o Rol Quaresmal do ano seguinte, 1929, ainda sem número de polícia, fogo número 459 da rua de Santo André, menciona Manuel d’Oliveira Machado, lojista, Maria Otília Frias de Melo Garcia, doméstica e Edmundo, filho do casal.
Portanto, havendo Edmundo nascido entre a quaresma de 1928 e a de 1929, residindo os pais na de 1928 na rua de João d´Horta e na de 1929, na de Santo André, não é de excluir que tenha nascido na casa sem número do Largo de Santo André que faz canto com as ruas da Praça e Conde Jácome Correia, ou ter nascido em uma casa da rua de João d’Horta.
Onde exactamente na rua de João d’Horta? Os pais, segundo testemunhos coevos, moraram na casa da esquina da rua de João d´Horta (n.º 74) com uma das travessas de Santa Luzia. Será daí que vem a confusão com a rua de Santa Luzia?
Com quem e onde fez os primeiros estudos?
Segundo alguns, entre os quais o Padre Edmundo Pacheco, Edmundo teria sido aluno do tio, o professor Laurino de Melo Garcia. Este professor era pai do barítono Laurino Garcia. Teria sido na escola da rua da Praça, onde hoje funciona os Bombeiros Voluntários. [Em 2009: Arquivo da Presidência]
Porém, a confirmação desta tese levanta um problema: quando Edmundo atinge a idade escolar já existia a Escola Central. Ainda assim, não é de excluir que tenha sido aluno do tio, pois, ainda na década de quarenta, D. Luísa Tavares, filha do Dr. Jorge, apesar de há muito haver escola, estudou não na Escola Central mas na casa da professora D. Amélia ‘Chibante.’ Sua vizinha.
Razão do nome?
O pai de Edmundo, amigo chegado do pai do padre Edmundo Manuel Pacheco, prometeu ao amigo dar ao seu primeiro filho o nome de Edmundo Manuel. Mariano Pacheco já dera esse nome ao seu próprio filho. Dera-o por admirar um famoso personagem de Alexandre Dumas. Diz-nos o Padre Edmundo Manuel Pacheco.
O prometido como devido foi cumprido, e, caso curioso, mas não raro, Edmundo Manuel Pacheco, seu colega mais adiantado nos estudos no Seminário, e Edmundo Manuel Garcia Machado d’Oliveira, acabariam sendo amigos para toda a vida. E, caso não igualmente raro, tal como sempre, Edmundo Manuel Pacheco, grande prosélito sportinguista, não resistiu à tentação de converter o seu homónimo Edmundo Manuel Oliveira àquele credo. Muito moderado, registe-se. Confirmado por outro sportinguista crónico, o barbeiro de ambos, mestre Lino, conhecido por Garrancho, com tenda de porta aberta na rua El-Rei D. Carlos I. E cinéfilo. Frequentavam assiduamente o Teatro Ribeiragrandense e não perdiam as estreias em Ponta Delgada. Era um homem que, segundo o amigo, gostava de conversar e de desconversar não dispensando em férias a frequência dos dois cafés locais. Amante da anedota e da boa cerveja. Perdia-se durante horas a ouvir música e a devorar livros de História. Outra paixão assolapada, porventura, tão forte como a da música, mas, menos conhecida, se calhar esquecida.
De férias na terra, como era sua obrigação, ia dar uma mão ao padrinho, o Prior Evaristo Carreiro Gouveia.
A música: o despertar da vocação
Numa terra de bons músicos, criado no seio de uma família de músicos distintos, em terras do maestro Manuel Raposo Marques, a vocação musical ter-lhe-á brotado tão naturalmente como o bracel brotava das rochas das suas Poças. Ainda por cima, era primo do barítono Laurino Garcia. Dois irmãos mais novos viriam a ser músicos: Emanuel e Aurélio.
Muitos são os que ainda se recordam de ouvir o pai e o avô tocar guitarra: o avô, o Sr. Machado ‘Velho,’ o pai, o Sr. Machado ‘Novo’, como os vizinhos os distinguiam um do outro. Era no quarto voltado para a rua da casa do Largo de Santo André. A rua abeirava-se da porta, rendida aos acordes e ao som plangente dos instrumentos. O pai era um guitarrista fino, dizem-me, ao ponto de fazer parelha mais o Sr. José de Araújo Cabral, outro instrumentista de fino recorte, e outros, nas récitas promovidas pelo Sr. Prior. O Sr. Machado, como era conhecido, ‘teve uma tenda de bater sachos’ na rua do Açougue, hoje demolida, rua que descia para a Cova do Milho, para, mais tarde quando se ajardinou aquele espaço, a transferir para o fim da rua de João d’Horta (n.º91). Mas era também lojista.
O ambiente musical da terra era rico. Ao tempo em que Edmundo se criou, a actividade das bandas filarmónicas dos Cães e dos Gatos mobilizava mais gente que o futebol do Águia e do Ideal. As gentes da Matriz alinhavam pelos Cães e pelo Ideal, as da Conceição, pelos Gatos e pelo Águia. Eram como cães e gatos, mas o nome oficial era o de Triunfo, para os Cães, e Progresso, para os Gatos.
As bandas disputavam-se encarniçadamente na Cascata nas festas do Verão. Davam as boas vindas a quem chegava à terra e despediam-se de quem partia, exultavam as gentes em momentos de alegria e partilhavam os de tristeza. Depois eram os coros das igrejas, cada qual tirava parte pelo seu, as récitas do Prior Evaristo Carreiro Gouveia no Passal, a música no recém-inaugurado Teatro Ribeiragrandense. O jovem Edmundo por certo terá tido conhecimento e terá mesmo participado.
No primeiro dia do ano novo de 1935, a Tuna Académica de Coimbra deu um espectáculo na Ribeira Grande. Os membros da tuna foram ‘(...) aguardados pelas autoridades locais, pela filarmónica Triunfo e muito povo.’
‘O estudante do mesmo Liceu, Sr. Francisco Justino Machado’, proferiu algumas palavras sobre o Maestro Raposo Marques, tais como ‘E a Vós, povo da Ribeira Grande eu peço que homenageeis com uma vibrante salva de palmas, o talento, o valor e o prestigio, do distinto, regente da Tuna e do Orfeão da Universidade de Coimbra, nosso ilustre conterraneo, dr. Raposo Marques, a cujos porfiados esforços devemos a honra desta visita (…)’ .
Findo o espectáculo, Raposo Marques dirigiu-se a casa de seus pais onde era aguardado por muitas pessoas amigas que lhe fizeram uma carinhosa manifestação. Vem de novo em 1936. A vinda do Orfeão Académico de Coimbra à terra natal do maestro efectuou-se na Primavera de 1936. Em Abril o paquete Lima transportou os orfeonistas até Ponta Delgada. Eram esperados por uma enorme multidão, constituída por agremiações desportivas, bandas de músicas, como Triunfo e Voz do Progresso da Ribeira Grande, escolas primárias, escola do Magistério Primário e Academia, Bombeiros, Asilo de Infância Desvalida e muitas outras entidades.
Na sessão de boas vindas no Palácio do Governo Civil, Manuel Raposo Marques proferiu um discurso de fino recorte literário. Depois de se referir à hospitalidade da sua terra, afirmou que o Orfeão era a Voz da Pátria que vem a S. Miguel desfolhar as suas canções, fazer reviver na alma de muitos dos seus filhos a recordação doce e poética da velha cidade universitária. No fim da sessão de boas vindas, os estudantes dirigiram-se ao cemitério de S. Joaquim a prestar homenagem a Antero de Quental. Lá, depuseram na sepultura do poeta uma palma de bronze.
Como não podia deixar de ser, uns dias mais tarde, o Orfeão Académico de Coimbra realizou um espectáculo no teatro da Ribeira Grande. Eram esperados por uma enorme multidão, pelas autoridades, magistrados, figuras de representação e as filarmónicas locais. Após a chegada, organizou-se um cortejo em direcção ao teatro, tendo o Presidente da Comissão Administrativa dirigido algumas palavras ao maestro Raposo Marques: ‘Hoje temos o prazer de saudar como regente do notável Orfeon de Coimbra um açoreano, um filho desta vila que tanto a honra, - o Dr. Raposo Marques, que soube conquistar na lusa Atenas o prestigio que o seu talento de artista merece e o qual o governo da Nação reconheceu, (...) . Após o que, Ezequiel Moreira da Silva, sempre oportuno e inspirado, tomou a palavra para dizer: ‘Dr. Raposo Marques, não era, talvez, necessário que eu falasse agora; nesta casa, o próprio silêncio te fala. (...).’ .
Nesta viagem de 1936, Manuel Raposo Marques fez-se acompanhar pela esposa, D. Adélia Abreu da Fonseca Raposo Marques.
Quatro anos mais tarde, de visita a seu pai, deu alguns espectáculos para fins de beneficência. Manuel Raposo Marques organizou então um orfeão misto. Constitui-se, assim, um grupo de sessenta e cinco pessoas de ambos os sexos . Orfeão que actuou no teatro da Ribeira Grande e no Coliseu Avenida, apresentando várias músicas da autoria do próprio Raposo Marques, tais como Luar (canção popular), O toque das Ave Marias e O Vira e Malhão (canção popular).
Se refiro tudo isso de outra pessoa ou de outras pessoas, é para sublinhar que Edmundo não deve ter ficado imune a todo este ambiente, seria impossível, presume-se. Mais tarde, ele próprio organizaria na Ribeira Grande grupos corais: o da Conceição, onde despontava a sua amiga D. Germana Rodrigues, e dava uma mão ao da Matriz, regido pelo ex-seminarista Lucindo Taveira. Ele próprio faria o mesmo no Seminário. Manteria para o resto da vida contacto epistolar com o Padre Edmundo e Dona Germana Rodrigues.
Quem foi ele? Família
‘Era um homem modesto, simples, não se dava ares a nada, e, no entanto, era um homem que sabia muito, um homem de muito valor. Era assim. E era assim família dele.’
Disse dele o seu procurador e cunhado do irmão.
Edmundo foi o primeiro dos sete filhos de Manuel Machado d’Oliveira e de Maria Otília de Frias Melo Garcia. Além de Edmundo Manuel, o casal Machado criou outros seis filhos: Albano Manuel (nasceu a vinte e dois de Novembro de 1930, já falecido, chegou a Vigário Geral de Oakland, na Califórnia); Aurélia Maria dos Anjos (nasceu a sete de Março de 1932, Matriz, actualmente na Califórnia); Décio (nasceu a treze de Dezembro de 1934, dentista reformado na Califórnia); Aurélio Eugénio (nasceu a vinte e nove de Março de 1940, a residir na Califórnia, um cantor exímio); Tibério José (nasceu a vinte e sete de Março de 1942, hoje na Califórnia) e Emanuel (nasceu a oito de Junho de 1945, Médico Psiquiatra na Califórnia e consumado pianista). Todos nasceram na freguesia Matriz de Nossa Senhora da Estrela.
O Sacerdote culto
A um de Junho de 1953, Edmundo Manuel foi ordenado presbítero. Em Setembro, foi nomeado pároco da Vila da Praia da Vitória. Aí terá por certo encontrado muitos conterrâneos seus que haviam trocado trabalhos mal pagos na Ribeira Grande por trabalhos bem pagos na base das Lajes. Ficaria dois anos na Praia da Vitória. Enquanto aguardava que chegasse a nomeação, ao que me dizem, terá regressado à Matriz. Durante o tempo que frequentou o seminário, aprofundou os seus conhecimentos musicais com o maestro Padre Ávila.
Passa de sacerdote na vila da Praia da Vitória a estudante na cidade de Roma, onde frequenta durante cinco anos com brilhantismo, de 1955 a 1960, ‘o Pontifício Instituto de Música Sacra.’ Aí frequenta ‘(...) a Licenciatura em Canto Gregoriano e em Composição.’ E obtém a classificação de ‘(...) Cum Laude Probatus (...) quase a nota máxima então atribuível.’
Valho-me aqui de uma nota biográfica, sem nome de autor e datada de Abril de 1995. Porém, segundo consegui apurar e o próprio autor confessou, trabalho do antigo aluno e admirador Dr. Manuel Francisco Aguiar. Este texto foi-me enviado pela viúva do Dr. Edmundo Manuel. Continuando a citar a referida Nota Biográfica, ‘regressado, de imediato, à Diocese de Angra, iniciou a actividade docente que o havia de notabilizar, no Seminário, assumindo cumulativamente as mesmas funções no Liceu Nacional de Angra do Heroísmo e na Escola do Magistério da mesma cidade, até 1968 (...) Na Califórnia (onde a família emigrara), como imigrante, viveu o tempo curto, porém bastante, para fazer o Master Degree in Music Education, no College of the Holy Name, em Oakland.’
Obtém ‘a redução ao estado laical’ em 1969.
O Marido de Elsa
Por qualquer motivo, mantendo a sua fé, mas não podendo ser padre e casar, deixa de ser padre e casa-se. Mais tarde, casa-se a civil na 5.ª Repartição do Registo Civil da cidade de Lisboa com a ‘Dr.ª Elsa Brumilde Lemos Mendonça, senhora jorgense também professora, fixando-se então, em Almada. Indo exercer a docência em Canto Coral no Liceu Pedro Nunes, em Lisboa, e, no Liceu Nacional, na cidade de residência, até 1974, profissionalizando-se, nessa altura, no 1.º Grupo do Ensino Preparatório, em que se efectivou, na Escola D. António da Costa, e onde permaneceu, nessa condição, até ao falecimento.’ (mesma fonte)
Concluiu, ‘na Universidade de Lisboa, em 1979, a Licenciatura em História, também com a classificação de dezasseis valores. Em 1980, porém, aquando da criação do Departamento de Ciências Musicais, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, o Dr. Edmundo e Oliveira foi convidado pela respectiva directora, professora jubilada, Doutora Maria Augusta Barbosa para reger a cadeira de Teoria Musical na Idade Média, Renascimento e Barroco, em cuja Instituição faria o doutoramento, tarefa a que se havia proposto, mas que não chegou a iniciar, já que a vida terminou quando devia começar!’ (ainda a mesma fonte)
Isto era assunto que o trazia intranquilo: era católico e não se sentia bem se não casasse pela Igreja. Sempre esperançado em que a Igreja viesse um dia a permitir, a quem o desejasse, como terá sido no seu caso, o matrimónio aos sacerdotes, em averbamento ao Registo de Nascimento, havendo pedindo dispensa, casa-se a vinte e um de Outubro de 1981 pela Igreja. Terá pois pedido a redução ao estado laical. Teve ter sido um dia grande para Edmundo.
De Elsa não teve geração, da música tem toda a geração dos componentes do Orfeão Dr. Edmundo Manuel Garcia Machado d’ Oliveira.
Elsa morreu repentinamente há pouco mais ou menos de três anos. Foi encontrada sentada diante da televisão. Guardou a memória de Edmundo e viveu viúva mais de duas décadas.
Há tempos, num dos canais de televisão nacionais, não me lembro qual, Luís Represas, ex-vocalista do grupo musical Os Trovante afirmou perante as câmaras que Edmundo Machado d’Oliveira tinha sido o seu grande mestre de música.
Poderia ter acrescentado que Manuel Faria, o teclista do grupo, também tinha sido.
Que mais pode um homem em vida desejar em morto?
Mário Moura