Jorge de Melo Gamboa de Vasconcelos: Um Médico de Homens e do Património (em construção)
Jorge de Melo Gamboa de Vasconcelos: Um Médico de Homens e do Património
Eu e ele
Conheci-o em circunstâncias pouco abonatórias, humilhantes até. Conto o episódio em traços largos: havia de andar pelos meus doze, treze anos, e abrasado por uma febre teimosamente alta, minha mãe pede os bons ofícios do Dr. Jorge. Chega o Dr. Jorge com a sua, para mim, sinistra pasta de couro preto, entra no quarto, ausculta-me, apalpa-me o pulso, observa-me a língua, os olhos, os ouvidos, sempre fora o médico da família, volta-se para a minha mãe e diz calmamente com a sua voz quase imperceptível: ‘Vou dar-lhe uma injecção.’ Sendo as injecções um dos meus dois terrores inconfessos, o outro escuso de o confessar, escorrendo suores frios, de cabeça perdida, pulei da cama, corri como louco pelo corredor fora, abri num ai a porta do balcão e lancei-me, sem um ai, nem mal de espécie alguma, para o quintal. Felizmente, aterrara numa moita de jarros. Desatinada, envergonhada e aflita, sem saber se o filho estaria inteiro ou desfeito aos pedaços, minha mãe corre ao quintal, agarra-me, certifica-se de que não tenho nenhum osso partido, dá-me uns beliscões bem dados, dos que ainda hoje sinto quando o tempo está do lado da Lagoa do Fogo, e leva-me à presença do Dr. Jorge. De seringa em riste, talvez a maior seringa do seu lote, o Dr. Jorge aguarda impassível ao lado da cama deserta. Diz: ‘Não se preocupe, são coisas de criança.’ Levei a dita cuja, e se me passou a dor passadas umas longas horas, ainda não me passou a dor mais forte do vexame.
Vale das Sombras
Pouco antes de dirigir-se ao Vale das Sombras, como descreve poeticamente a Bíblia o local onde vão os vivos quando morrem, trôpego, subiu a custo pela última vez a escadaria do edifício dos Paços do Concelho: enviara ao Presidente um bilhete escrito pelo seu punho com caligrafia bonita, não as garatujas habituais das suas receitas, em que dizia: queria ver o projecto da ampliação do Teatro. Parece que o terá aprovado. Falecidos em 1974 Ezequiel Moreira da Silva e Manuel Barbosa em 1991, a sua opinião fazia lei. Fora um velhote de passo curto mas firme e constante, quase sempre ríspido, às vezes doce, de voz suave mas severa, intransigente, irredutível, avesso à mediocridade. Tinha um jeito desajeitado de demonstrar afecto. Dizem.
Na noite do segundo dia do último semestre de 1995, Jorge exalou o seu último sopro de vida na casa da rua do Frias, n.º 48, em Ponta Delgada. Era a sua segunda residência. Ao fim da manhã do dia seguinte, após o corpo ter estado exposto em câmara ardente na ermida de Santana, levaram-no ao Jazigo da família Raposo do Amaral no Cemitério de São Joaquim. Resistira ainda a um derrame cerebral. Havia-lhe sido diagnosticado, conta D. Luísa Tavares, sua filha, ureia em alto grau, esteve a fazer exames na Clínica do Bom Jesus, aí terá permanecido uns dois dias. Já não reconhecia ninguém, nem sequer sabia onde estava. Desatinava. Impressionante! O fim triste de alguém que fora brilhante. Foi uma dura provação para a filha que a tudo assistiu. Apagou-se. Já há alguns anos não conduzia. Terá dito, no meio do seu doloroso delírio, que desejava regressar à casa da sua meninice. Aí aguardava-o há três anos a esposa Maria Eugénia. Maria Eugénia havia falecido a dezoito de Fevereiro de 1992. O octogenário vira talvez (não há a certeza nem quanto à rua nem quanto à casa exactas) a luz do mundo pela primeira vez na rua do Tornino de Baixo, na freguesia do Apóstolo São Pedro, hoje rua Madre Teresa da Anunciada. Não é de excluir a possibilidade de que tenha nascido no n.º 66, quatro casas abaixo da casa onde nasceu Madre Teresa da Anunciada.
Onde morava exactamente na altura do nascimento? Em que rua? Entre os anos de 1916 e o de 1929, a família de Jorge, de acordo com uma série de recenseamentos eleitorais, morou na rua do Mourato, Tornino, Tornino de Baixo e de Cima. Tudo ruas próximas, Mourato e Tornino, ou contíguas, Tornino de Baixo e de Cima. Por exemplo, o recenseamento de 1916, indica a rua do Mourato, o de 1924, apenas Tornino, o de 1928, o Tornino de Baixo, o de 1929, menciona o Tornino de Cima. No ano em que Jorge nasce, onde morava a família? Não se sabe ao certo. Segundo se diz, terá morado na rua do Mourato. Talvez nos números indicados.
Foi homenageado ainda vivo, por relevantes serviços prestados à comunidade, por sugestão do então Vereador Dr. António Pedro Rebelo Costa, em simultâneo com o Dr. Rui Galvão de Carvalho.
Quem terá sido este Homem?
‘O que nós escrevemos, é o que fica de nós’. Foi o que Jorge escreveu há mais de meio século num cartão guardado pela minha testemunha. Se era assim que ele queria ser lembrado quando morresse, terá conseguido em parte o que desejava. Mas, antes, quem era ele? Vamos ver o seu parentesco.
A professora de instrução primária da Ribeira Seca, Isabel Tavares de Melo Albergaria, natural da freguesia de Nossa Senhora da Conceição, era a progenitora. Corria então o ano de 1907, o calendário marcava o dia onze do mês de Novembro e o relógio apontava as quatro horas da manhã. Fora provida provisoriamente como professora ‘na escola para o sexo feminino da freguezia de S. Pedro, do logar da Ribeira Secca (...)’ ou no ano de 1905 ou em inícios do seguinte. Jorge de Vasconcelos Albergaria, escrevente, natural da freguesia de Nossa Senhora da Anunciação do lugar da Achada, Concelho do Nordeste, era o pai. Haviam dado o nó em Santo António, Concelho de Ponta Delgada.
O pai, dizem-me, era conhecido como o senhor Jorge da Caixa Económica Ribeiragrandense. Nunca antes, porém, de dois de Janeiro de 1909, data oficial do início de actividade daquele estabelecimento bancário da Ribeira Grande. Ainda assim, para aquela data surge como escriturário Armando de Castro Carneiro. Há quem diga que terá sido antes agente da polícia. Outros que terá igualmente desempenhado funções no Lar para rapazes na Ribeira Seca. E há ainda quem diga que isso seria impossível.
(...) É claro que uma biografia mais completa, que não é o caso desta, haverá que investigar estas hipóteses. Ainda assim, o Recenseamento eleitoral, de 1916, de 1924, de 1928 e de 1929, identifica-o como escriturário, morador da na Ribeira Seca.
Além disso, não vamos. Seja como for, no nosso caso, bastará dizer assim: fosse como fosse, era neto paterno de Francisco António Medeiros de Vasconcelos e de Dona Maria Eufrázia Soares Galvão de Albergaria. E materno de José Tavares de Melo e de Dona Jacinta Dias.
Em dia de Nossa Senhora da Conceição, um mês certo após o nascimento, a oito de Dezembro, baptizava-se na igreja do Apóstolo São Pedro. São seus padrinhos, o tio materno e uma prima mais velha. Leonel Tavares de Melo, viúvo, escrivão do Juiz de Direito e Maria Clara Lurdes de Melo, solteira, de ocupação doméstica.
(...)
Jorge terá aprendido o bê-à-bá com a mãe na Ribeira Seca. Uma sua antiga condiscípula contava que a escola ficava situada na esquina da rua do Mourato com a canada de Jacinto Vendeiro (rua do Mourato, n.º 31. Certo e seguro é que terá sido aluno do Instituto Gaspar Frutuoso de Ezequiel Moreira da Silva. Completa os seus estudos liceais em Ponta Delgada, como toda a gente da sua geração e de muitas mais gerações. Nesta cidade terá jogado futebol no Clube União Micaelense. E na sua terra natal, terá sido atleta do ‘Açor Foot-ball Club’. Quem o imaginaria!
Mário Moura