Dignidade inusitada
Há alguns anos, estávamos certa noite, um grupo de amigos e eu, jogando conversa fora num boteco qualquer como pretexto para tomar umas e outras. Isso, mesmo sabendo que tomar umas e outras dispensa pretextos, mas a gente sempre quer dizer que não, para dar um certo charme. A noite estava fraca para atacar companhias femininas e, lá pelas tantas, alguém sacou dos bolsos dois baralhos e propôs um carteado. Já que não havia mulheres para que praticássemos o antigo jogo da sedução, poderíamos nos distrair num jogo de cartas – enquanto falássemos de mulheres, é claro!
Tudo corria dentro de nossa inebriada e costumeira normalidade quando um dos rapazes nos chamou a atenção para o movimento na calçada. Acabara de estacionar um carro e dele saltou, para a curiosidade geral, um sujeito com as pernas atrofiadas que, a duras penas, colocou-se ereto sobre muletas. Não era passageiro, mas sim motorista. Nossos comentários foram passear pela obviedade de ser aquele um veículo adaptado e a curiosidade do grupo voou longe tentando imaginar como seriam alavancas e pedais daquela máquina. De pronto, surgiu o desafio sobre quem teria coragem de pedir para conhecer o carro por dentro.
Não se imagine que fôssemos insensíveis. Não! É que a gente vê tanta coisa na noite, que um dos estímulos dessa glamourosa vida noturna é, justamente, não deixar passar nenhuma oportunidade de ver e conhecer pessoas e situações diferentes. Não obstante tudo isso, de repente, todos ficaram meio sem graça, dada a circunstância constrangedora de ter de encarar o infortúnio de um deficiente físico. Já estávamos quase desistindo da idéia, quando alguém sugeriu que eu, famoso por minha cara-de-pau, com certeza não iria fugir ao desafio. A provocação surtiu efeito e lá fui eu.
O camarada, a essa altura, estava sentado numa das banquetas em frente o balcão do bar, posto que as mesas estavam todas tomadas. Como quem não quer nada, cheguei e pedi para me servirem outra dose de “gin”. Estando ao lado do cidadão, pus um cigarro na boca e perguntei se ele tinha fogo – clássico meio de aproximação quando não se tem meio nenhum. O cara não fumava, mas mesmo assim foi simpático ao dizer não. Puxei assunto sobre tudo, sobre nada ou qualquer coisa e, em cinco minutos, já estávamos ali conversando sobre o problema congênito que ele tinha, o esforço que ele sempre fez para não deixar que isso atrapalhasse sua vida, a luta contra o preconceito e coisas assim. Deixei o papo rolar até conseguir intimidade suficiente para pedir para ver como era o carro por dentro. E ele me mostrou! Não vou contar como era, quem quiser que se dê ao trabalho de pôr a cara a bater como fiz eu.
Claro que o chamei para o nosso jogo. O sujeito era simpático, tinha um papo fácil e agradável e, afinal, aquela banqueta do balcão deveria ser muito descômoda, por menos que ele quisesse deixar transparecer. Ele se enturmou com desenvoltura e, em pouco tempo já estava contando suas próprias e peculiares peripécias porque, a despeito de sua deficiência, também era dado à noite e à boemia. Tudo corria muito bem, até que alguém percebeu que nosso novo amigo estava a esconder cartas de maneira maliciosa. Um outro colega o interpelou dizendo estar espantado porque dele seria a última pessoa de que se suspeitaria algum tipo de trapaça. A resposta do cara me surpreendeu:
- O que vocês pensam? Só tenho um defeito físico que me faz diferente de vocês. Nos outros defeitos sou igualzinho. Exijo respeito!
Ah, quanto se aprende na vida boêmia. Naquela noite, entre gargalhadas, descobrimos que, realmente, o que mantém a dignidade dos que portam alguma deficiência física é sua constante firmeza para provar, o tempo todo, que são tão humanos quanto qualquer um. A pequena desonestidade daquele amigo eventual fez com que passássemos, a partir de então, a ter verdadeiro respeito por pessoas com necessidades especiais.
Afinal, a despeito de seu cotidiano exercício de superação às suas deficiências, nos cabe também superar as barreiras do preconceito e reconhecer que tais pessoas só querem ser tratadas, não como santos ou super-heróis, mas sim, como simples seres humanos como nós. Nada menos, nada mais!