O feitiço e o feiticeiro

O feitiço e o feiticeiro
 
 
 
          Era o início dos anos setenta e eu tinha entre nove e dez anos. Naquela época, quando o regime militar no Brasil estava em seu auge, eventos e demonstrações explícitas de civismo eram de regra nas escolas públicas. Lembro até hoje de cadeiras sob os pomposos nomes de “Educação Moral e Cívica”, para classes do primário; “Organização Social e Política do Brasil”, para classes do ginásio; e, “Estudos de Problemas Brasileiros”, para classes do colegial. No fundo, tudo aquilo era pura tentativa de doutrinação mesmo.
 
          Dessa forma, onde eu estudava, uma vez por semana, todos os alunos do primário – umas duzentas crianças, mais ou menos – eram perfilados por classes no pátio da escola e havia alguma “comemoração cívica”. Esse evento semanal era o orgulho de nossa diretora, Dona Nadir. Naquelas ocasiões, havia hasteamento da bandeira, canto em coro uníssono do Hino Nacional, alguma professora ou outra fazendo algum discurso hipócrita sobre o quanto este nosso país era o melhor dos mundos e, eventualmente, um aluno era escalado para apresentar alguma coisa previamente preparada e ensaiada.
 
          Eu me lembro que eu era considerado um bom aluno. Afinal, até ali já havia recebido as medalhas de primeiro lugar nos três primeiros anos do primário. Entretanto, levava comigo o estigma de ter uma das piores notas de comportamento. Nunca fui quietinho, apesar de não ter cometido nenhum ato de vandalismo. Digamos que eu era irrequieto. 
 
          Ao iniciar o quarto ano da série primária, minha professora, Dona Marilena – ai! era um “professorããão” – logo na primeira semana de aulas me chamou de lado e me advertiu que, caso se confirmassem as notícias de que eu não parava de jeito nenhum, ela iria me aplicar um castigo singular e diferenciado, para que eu me corrigisse de uma vez.  Não demorou até que ela me flagrasse numa atitude suspeita com uma menina que sentava à minha frente. Juro que eu não tinha malícia, mas o instinto predador é congênito em mim. Dona Marilena, então, viu-se na condição de me aplicar o tal castigo reparador.
 
          No dia seguinte, a professora me trouxe um texto escrito por ela sobre a Revolução Constitucionalista de 1932; algo assim com umas vinte linhas, mais ou menos. Chamou-me reservadamente mais uma vez e anunciou que na manhã seguinte, dia do tal evento semanal, ela iria me pôr na frente de todo mundo para falar aquilo. E acrescentou, com um ar meio sádico: “Quero ver você, que fala tanto, como vai se sair na frente da escola toda”.   O detalhe é que eu não poderia ler; deveria decorar o texto até o dia seguinte. Em sua pretensa sabedoria pedagógica, ela imaginou que me expor em público, sem chance de maiores preparos, seria traumático o suficiente para que eu me emendasse.
 
          Pois bem! Decorei aquelas vinte linhas com relativa facilidade e, ainda ao final daquela aula, passei a exibir-me à professora, declamando o texto em voz alta na fila, enquanto saímos da classe. Esse novo ato de rebeldia custou-me uma advertência por escrito por tumultuar a fila e a saída. E ela, ainda, tratou de manter a idéia original de me apavorar alertando que, lá na frente de toda aquela audiência, provavelmente eu não seria tão valente assim.
 
          Cheguei, no dia seguinte, com excessiva autoconfiança, já que, a essa altura, eu sabia o texto de trás para frente, até. O evento foi seguindo seu curso até o momento onde fui convocado a sair de onde estava perfilado, no meio da multidão de alunos, para postar-me em frente a todos e proclamar o tal discurso evocativo da data comemorativa.
 
          Foi então, quando comecei aquela jornada de algumas dezenas de passos até lá na frente, que comecei a sentir os tais efeitos danosos sobre os quais Dona Marilena me alertara. Veio um frio na barriga, comecei a suar frio e, obviamente, minhas pernas tremiam. A despeito disso, assumi meu lugar de orador e, com voz titubeante e pouco audível, dei início à minha fala: “Vinte três de maio de 1932! Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo...”. Até hoje me lembro do intróito.
 
          O problema é que, naquela ocasião, também só me lembrei do intróito e, quanto ao resto, havia sido tenebrosamente apagado pelo pavor. Disse aquela introdução, quase sussurrando, mais umas duas vezes, enquanto a audiência em peso caía numa sonora gargalhada dado meu evidente tropeço. Dona Marilena saiu de onde estava e, previdente que era, trazia às mãos uma cópia do texto para que, ao menos, eu pudesse lê-lo.
 
          Confesso que ser o objeto de riso de toda a escola não foi tão constrangedor quanto ver aquela mulher vindo me trazer um socorro que, enfim, consagraria seu intento de me punir. Esperei que ela chegasse até mim, colhi o papel de suas mãos e, para espanto de todos, mesmo antes que ela fizesse meia volta, dobrei a folha e, visivelmente indignado, a piquei em vários pedaços. Imbuído daquela indignação sem precedentes, até então, enchi os pulmões, estufei o peito e, novamente, dei início à minha fala, porém, num estrondoso grito que, de tão inusitado, calou a turba que ainda ria-se da situação: “Silêncio!”, gritei eu; e o silêncio se fez. 
 
          Aquilo me fez sentir um tal poder que, de improviso, fui discursando uma fala sobre o mesmo tema, desprezando completamente o texto original. O início era igual: “Vinte três de maio de 1932! Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo...”, só que emendei o que me vinha à mente. Contei que eram quatro estudantes que morreram numa manifestação pública, que protestava pela convocação de uma Assembléia Constituinte durante os primeiros anos da ditadura Vargas. Enalteci a coragem daqueles mártires que deram suas vidas para lutar contra a opressão de um regime autoritário. Devo ter falado durante uns quinze minutos e, em minha cabeça infantil, aquela luta pela democracia mais parecia uma epopéia grega dos mortais contra os deuses. Fui ovacionado de forma retumbante quando terminei. Muito menos pela fala, em si, e, muito mais, por minha atitude desafiadora que, enfim, superou a situação adversa.
 
          Dona Nadir, a diretora da escola, me contemplou com três dias de suspensão porque considerou minha fala subversiva – e naquela época, de fato, era! Dona Marilena, por sua vez, nunca conseguiu que eu me emendasse – mas me concedeu a medalha de primeiro lugar, ao final daquele ano. E eu... 
 
          Bem! Eu me descobri! Ali percebi que não nasci para aceitar arbitrariedades sem sentido, tampouco viver à sombra de idéias prontas e alheias e, principalmente, que na defesa de meus interesses e de minha dignidade eu posso sempre me superar e, isso tudo, independente dos que duvidam ou confiam.