Seriam as leiteiras canecas?
(ou, "Ora (direis) ouvir panelas!")
Tomo muito café e, particularmente, sou aficionado da versão solúvel. Nada mais comezinho para mim, portanto, que estar à beira do fogão a ferver água para preparar dessa negra beberagem.
Numa dessas minhas investidas, procurei embaixo da pia, onde guardo panelas e outros recipientes culinários, algo em que pudesse lançar a água em fervura. Geralmente, me valho de um mesmo e específico utensílio, não porque ele tenha nenhuma característica que o torne melhor perante outros, mas pelo simples hábito de usar os mesmos objetos, respeitando o ritual particular de preparar meu cafezinho. Olha daqui, vasculha dali e nada de encontrar minha vasilha preferida para ferver a água do café.
De repente, como a ânsia por cafeína falasse mais alto que qualquer reverência a ritos sem sentido prático, tomei da primeira coisa que encontrei e, assim, pensei comigo: "Que vá esta caneca, mesmo!" Já estava lhe despejando água para coloca-lá em imolação nas chamas do fogão quando, para minha surpresa, o objeto ganhou vida.
- Como ousas chamar-me de "caneca"! Sou uma "leiteira" e assim gostaria de ser tratada - disse-me a vasilha, para meu espanto.
- Sim, minha cara. Porém, que diferença faz se és caneca ou leiteira? Para mim, o que importa é esquentar água para preparar meu café.
- Tu és insensível! - retrucou a leiteira. Uma caneca é algo genérico de uso incerto e aleatório. Já nós, leiteiras, temos nossa nobre e distinta missão de servir para a fervura do leite. Da forma como ages, subvertes nossa natureza corrompendo nossa láctea nobreza.
- Escuta aqui, minha filha! - redargui em tom enérgico - Agora devo eu ficar me perdendo em elucubrações a respeito da essência das leiteiras, porque são suscetíveis e vaidosas e, assim, não admitem misturar-se com reles canecas? Ora! Tem a santa paciência! - disse-lhe isso, enquanto a colocava sobre o fogo para que a água, enfim, pudesse ser fervida.
- Reflete comigo, oh empedernido usuário! Se, de fato, nossa natureza não merecesse distinção, porque então nos teriam atribuído o título específico de "leiteiras"? Tu desrespeitas a tradição e, ainda, demonstras total desinteresse pelo valor alheio - insistiu a quase chorosa vasilha.
- Que seja, portanto! - disse eu em tom de premeditada indiferença, enquanto já preparava efetivamente a infusão do pó de café com a água que, lentamente, despejava sobre ele - És "leiteira" e não "caneca".
Diante disso a leiteira pareceu confortar-se com minha submissão a seus anseios. A ironia é que, acudida sua vaidade, em nada ela protestou pelo fato de que não se prestara à fervura de leite, mas sim, ao preparo de café.
Leiteiras! Quem pode entendê-las?