Hoje sai de casa cedo. Fiz um café forte e fui pra rua de uma vez. Não quis ficar ali ensebando no sofá como estava fazendo rotineiramente. Mas quando mal tranquei o portão percebi uma pedra, espetar meu pé, dentro do sapato.
Uma pedra no sapato – Passei pela primeira esquina e a rua se abriu em quatro. Higienópolis dá uma impressão esquisita de intelectualidade. Pouca gente na rua. Ao atravessar o semáforo dei de frente com o portão da Makenzie. Os muros altos e ásperos parecem rosnar de forma elegante. São como guardas, protegendo o que existe ali dentro. Meus cabelos estão muito limpos hoje. Ontem dei jeito de lavar com um xampu novo que havia comprado.
Uma pedra no sapato – O incômodo pareceu aumentar. Cheguei ao minhocão. De mochila nas costas e cigarro entre os dedos, curvei sobre o beiral da ponte e fiquei observando o pessoal lá em baixo. Um conhecido passou atrás de mim. Acenei com a cabeça. Recostei apoiando parte do cotovelo no beiral. Uma perna, levemente, dobrada e apenas a ponta do pé no chão. A outra esticada e a sola, inteiramente, cravada no chão. Uma garota lá em baixo empurrou um amigo. Eles estão rindo enquanto, em frente, outros tocam violão.
Uma pedra no sapato – Um vento leve bateu no meu rosto. Olhei para o céu e vi as nuvens se distanciando. A fumaça do cigarro se esvai. Penso em nada. Já não sinto a pedra. Ela deve ter descido até as pontas dos dedos. Dei umas batidinhas com a ponta do pé, a fim de rolar a pedra. Ela sumiu. Atrás de mim a rua está sinalizada. Parece um tipo de maratona. Joguei a bituca no chão e quando pisei senti a pedra espetar o meu pé.
Uma pedra no sapato – Continuei andando sem parar até chegar à Paulista. Um cara veio me oferecer um colar de fibras naturais. Um manto esticado no chão parece um tapete de bugigangas. Quis tocar, mas hesitei. Pensei. Se tocar no objeto esse homem não me deixa sair daqui. Agradeci insistentemente e continuei andando. O relógio lá em cima marca as horas e quinze graus. A sensação é gostosa e ainda muita gente circula por aqui. Vi um cartaz de banda e achei curioso. Parei para ver. Uns rostos esquisitos, muitos brincos e tatuagens. Alguém rasgou onde estava escrito o dia e o local do show.
Uma pedra no sapato – A dor continua. Eu pareço ter me acostumado com ela. Voltei a andar e agora pisava diferente, cuidando para não incomodar a pedra. Pensei. Se eu não a pressionar ela arranja uma forma de ficar ali sem me machucar tanto. Estava em frente ao museu de arte quando de fato comecei a mancar. Tive que parar uma vez. Outra vez. Observo um carro de policia passando com as sirenes ligadas. Do outro lado da rua poucas pessoas.
Uma pedra no sapato – Resolvi descer até o metrô. Apoiando no corrimão desço sempre evitando apertar a pedra que me incomoda. Vou seguindo até a figura estranha desenhada nas paredes. A arte se apresenta a quem observa o metal. Os rostos fitam meu rosto. Sinto uma breve vergonha. De resto, tudo vazio. Aqui em baixo parece sinistro. Muito espaço e quase não se vê nada nas paredes. Sinto uma bolha começar a crescer. Mas ainda assim. Mantenho a pedra dentro do meu sapato.