Sentimental mas pragmático

       Sentimental mas pragmático
 


          Ia eu pela calçada, caminhando um trajeto reprisado todos os dias para ir buscar pão e leite na padaria. O trânsito, de repente, se amontoou num breve congestionamento de carros atrás de um ônibus que parara para colher passageiros. Até aí, tudo absolutamente banal!

          Porém, dos alto-falantes de algum daqueles veículos transbordou janela afora para a ambiência da rua a doce voz de Altemar Dutra cantando: “Sentimental eu sou. Eu sou, demais! ...”.  O coletivo partiu e uma carreata involuntária seguiu-lhe o rumo.  Com isso a música também foi embora, abandonando precocemente meus ouvidos que queriam mais. E assim, a banalidade foi expulsa da minha corriqueira busca de provisões para o café da manhã.

          Pegando o caminho de volta, fui pensando que também eu sou sentimental demais. Sempre fui! Passei a vida me oferecendo às lutas que me pareceram justas, mesmo quando não mostravam a menor chance de vitória. Permiti-me seguir sonhos, mesmo os impossíveis. Entreguei-me ao desvario de me apaixonar, mesmo sem ser correspondido.  Dei-me ao luxo de jogar tudo para o alto, de vez em quando, mesmo sabendo que tinha algo a perder. Mas não passei uma vida apenas de inconsequências. Não! Elas só me vieram à mente porque nelas tive prazer.

          Chegando em casa, pus o leite para ferver e os pães para esquentar.  Daí, comecei a notar que, a esta altura de minha existência, já não sobrou muito espaço para o risco e, menos ainda, para o desperdício. Coragem não me falta, só que a maturidade me tornou mais pragmático.  

          Continuo, ainda, abraçando às nobres causas, mas dou preferência para aquelas em que eu possa participar do resultado.  Nunca deixei de sonhar, mas agora corro atrás daquilo que pareça estar ao meu alcance. Amores? Só os viáveis e possíveis, porque não disponho de muito mais tempo para administrar vaidades ou sustentar neuroses alheias. Minha vaidade eu domei e minhas neuroses, se não foram curadas, ao menos se extinguiram pela absoluta falta de respostas.  E não posso mais jogar tudo para o alto, porque meu tudo é pouco e qualquer perda é muito.

         Coloquei o café solúvel no leite quente e adocei a mistura.  Assisti a margarina passada nos pães quentes derretendo instantaneamente. Tudo isso poderia ser só mais um desjejum banal, mas a sensação de cravar os dentes nos pães crocantes, sentindo o doce aroma do café-com-leite, ainda é um prenúncio de gozo para o paladar matinal. 

          Sim! Continuo sentimental! Mas, agora, trago um quê de pragmatismo no coração, porque não quero perder mais nenhuma chance de ser concretamente feliz. Aos mais jovens e aos que não souberam amadurecer deixo o gosto de aventura que há em esperar por aquilo que nunca vem. 

          Ah! E o café da manhã foi uma delícia! Banal, sim, mas com um prazer extremamente eficaz!



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