Violência doméstica
A violência doméstica é uma violência silenciosa e invisível. Não está restrita a classe econômica. Violência doméstica acontece nos países pobres e nos países ricos. O quadro da violência doméstica é o seguinte: na intimidade do lar, escondido dos olhos do resto da sociedade, o forte abusa do mais fraco. Há uma perversão aí. É a nível psicológico. Quando a violência é exercida contra uma criança a situação é ainda pior. Uma criança não tem elementos cognitivos suficientes para enfrentar o abuso, é coagida a calar-se, sofre ameaças. Em alguns casos, quando a própria criança chega a denunciar a violência doméstica sofrida, a escola, os vizinhos, os parentes, ao invés de protegê-la evitam denunciar o agressor legalmente com medo de represálias, temem expor a vida íntima da família.
A sociedade, na verdade, sempre abusou do mais fraco. E a extremidade do mais fraco é a criança. É a criança que é obrigada a esmolar, a se prostituir. Isso tem início dentro de casa, mas os pais, os adultos, nunca são responsabilizados. Fala-se do menino de rua, da prostituição infantil, mas ninguém fala dos pais do menino de rua, dos pais da menina prostituída. Dento do lar, você não achará estatística que levante quantos adultos foram punidos por abusarem de crianças. Quando o serviço social chega a intervir, quase sempre é a criança que é retirada de seu convívio familiar para ficar em um abrigo, temporariamente ou por tempo indeterminado. A lei prevê que é o agressor quem deve ser retirado do convívio familiar, mas isso quase nunca acontece. Prefere-se salvaguardar a reputação do adulto do que o desenvolvimento da criança.
Apesar de vivermos em uma sociedade mais politizada, mais esclarecida, mais letrada, mais policiada, ainda reservamos para a vida doméstica a tradição medieval da libertinagem do mais forte sobre o mais fraco. Por isso a violência doméstica persiste. É cultural.
No Brasil dos tempos coloniais, sem qualquer direito a julgamento, o senhor de engenho podia enforcar em uma árvore sua própria esposa apenas por ter suspeitado de sua fidelidade. A vida doméstica não deveria ser levada para a esfera pública, era uma questão a ser resolvida internamente, em todas suas conseqüências. Dentro de sua casa, o senhor achava-se no direito de fazer o que quisesse. Ninguém ousava protestar contra o senhor, para não constranger sua honra. O senhor se julgava acima da lei e seus protegidos, seus apadrinhados também estavam livres para cometer seus abusos e se safar.
Hoje, aqueles que têm dinheiro, pretendem uma reputação, zelam por sua honra burguesa, suas carreiras, seus diplomas, seus nomes, e seus advogados. Quando são eles que cometem suas violências domésticas não admitem serem julgados por ninguém, e procuram eximir de sua culpa por meios os que encontrarem pela frente, ainda que seja pela via do dinheiro do papai mais rico e seus advogados bem treinados e bem pagos. Ninguém pensará em defender o agredido, mas sim a si mesmos.
Nunca podemos esquecer as origens de uma sociedade. Seu presente é a sombra de seu passado. A sociedade brasileira nasceu de um sistema opressor, de senhores e escravos, de relações paternalistas de senhores que se achavam acima da lei, e de seus filhos que se achavam filhos dos donos da lei. No cotidiano doméstico a violência ocorria de forma silenciosa, ninguém conhecido se atrevia a intervir em favor do oprimido, do agredido, do mais fraco. Ninguém pensava no mais fraco. Os tempos mudam, mas alguns comportamentos culturais resistem à modernidade, principalmente aqueles que mais se distanciam dos olhos da lei, da vigilância da sociedade, e o cotidiano doméstico é o maior deles.