A violência e os filhos do Peti
Uma lógica permeia a nossa época violenta, embora o contradigam a fúria e o medo das potenciais vítimas. O instinto clama “olho por olho” ou reclama, ainda em susto, maior proteção. E a revolta ecoa da mídia ao mundo tanto quanto a atmosfera de pânico toma conta do semblante geral.
Ato contínuo ao repentino assalto, a racionalidade busca em providências concretas a normalização do real. Entre o desespero e o foco da sensatez, procura a solução mais rápida para um problema de lenta gestação – mas não há mágica que desfaça o mal pela raiz.
O Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti) talvez seja um exemplo claro de proposta adequada, porém inócua. O que tem de errado com o Peti? Algo de errado existe. Pois quando o repasse de dinheiro, pelo governo federal, atrasa, as crianças são proibidas pelos pais de freqüentarem a escola. Adolescentes do Peti atendidos pela Casa de Frei Francisco, entidade ligada ao Instituto Dom Helder Câmara, localizada no bairro dos Coelhos, chegaram a ter o fardamento rasgado pelos pais, em represália ao não pagamento.
Como justificar tais atitudes? Como não se indignar – com o governo e com o pai ou a mãe que fazem da educação de seu filho mercadoria? É preciso se posicionar do lado de lá de uma fronteira tão simbólica quanto real. O pouco dinheiro extra faz diferença para as famílias do Peti. A escola, infelizmente, não. O símbolo do futuro que significa a educação não alcança a compreensão de excluídos sem amanhã. Seu tempo é hoje, sempre. A necessidade de um futuro é atropelada pela necessidade do presente.
Ao privilegiar a fragilidade sócio-econômica dos assistidos, no entanto, o discurso intelectual e o discurso oficial muitas vezes tendem a menosprezar as conseqüências do tratamento equivocado das causas que provocam a urgente assistência. Assim, a motivação compensatória em defesa dos excluídos não consegue tapar o sol com a peneira: a exclusão violenta que atravessa a história brasileira e explode em nossos dias não pode ser resolvida com curativos sociais.
A necessidade óbvia de programas na linha do Peti não esgota a questão da violência associada às fraturas da exclusão. Até porque a desigualdade não diz tudo sobre a crueldade, e a marginalidade não limita o universo do crime.
A desigualdade objetiva é agravante de uma condição subjetiva que desagrega e rompe a teia social. A exclusão é reforçada por uma cultura excludente voltada para o indivíduo perdido na multidão – para que este se ache capaz de “vencer” a multidão, e a diferença introjetada seja um bem, não um mal.
Excluir é separar, segregar, isolar. Dividir, reduzir, proibir – no caso dos filhos do Peti, são os próprios pais que os excluem ainda mais. No caminho para apenas um, os outros não têm entrada. O indivíduo excluído – ou que assim se sente – torna-se um indivíduo, ele mesmo, excludente, como os pais dos filhos do Peti. Excluir é concentrar e discriminar. É destacar, julgar e punir. No imaginário da exclusão coabitam o desejo e a condenação; o pecado, a culpa e a redenção; a cobiça e a inveja; o egoísmo e a baixa auto-estima. Está preparada a rota de colisão. De um contra todos a todos contra um é mera questão de tempo e oportunidade.
Na lógica perversa da exclusão, a proteção é uma medida que gera mais exclusão. São as grades, os muros, as trancas, alarmes e todo tipo de blindagem, ante o temor da invasão, da violação da privacidade, ante a ameaça imediata e constante ao desfrute mínimo da liberdade. A vida em alerta, refém ansiosa, está presa também do lado de fora.
Sob este fundo, não é de se admirar que o estado coletivo seja tão propício à violência que arrebenta o cotidiano de pessoas assustadas. Trata-se de um regresso à natureza da pior forma: somos novamente bichos de tocaia, na toca.
Abdicamos da razão em nome da (in)segurança.
(Publicado no Jornal do Commercio/PE, em 07.06.07)