O homem veio do pinguim?

"A Marcha do Imperador" é um filme comovente porque trata os bichos como gente. Mas além da fantasia, a luta dos pingüins pela sobrevivência é um ótimo lembrete de como funciona a natureza em torno do princípio básico da vida.

Milagre ou acaso, desde que flores e frutos brotaram por aqui, é travada uma luta feroz entre os filhos da natureza por hegemonia e permanência. O que está em jogo na guerra natural não é a harmonia ambiental – é do caos elementar que surge a vida, e do ponto de vista de cada espécie, o que se busca a todo custo é o privilégio da hereditariedade: a imortalidade do DNA, eis o que interessa.

É curioso que o sucesso francês de bilheteria esteja sendo usado pelos criacionistas americanos como bandeira antidarwinista. Nada tão eloqüente, no horizonte evolutivo, quanto a fuga desesperada de seres mal equipados biologicamente para um lugar ermo a fim de procriar (ainda assim, sem escapar dos obstáculos e dos predadores, como podemos ver).

Por este enquadramento, o Paraíso terrestre nunca existiu. E a lei da selva, que não é a do mais forte, mas a do mais apto, não foi revogada com a entrada do homem em cena. Assim como os sofridos pingüins no gelo, também seguimos nossa marcha. Tal qual todo ser vivo.

Apesar das nuanças extraordinárias a demarcar a beleza em detalhes individuais, a marcha da vida parece empreender um esforço fabuloso para preservar informações úteis, desde que virgens compostos de carbono produziram “máquinas” autoreplicantes, alguns bilhões de anos após o que se considera o nascimento do universo. Da Grande Explosão, do todo que era uno, nuvens de gás preencheram o vazio com usinas estelares, de cujos destroços se formaram os planetas.

Essa a história como a conhecemos, embora, amiúde, esqueçamos dela. Se somos tão parecidos com pingüins – se eles, estranhamente, nos recordam a nós mesmos – é porque há uma resposta provisória (sim, insatisfatória) no “milagre helicoidal”, como chama o DNA o cientista-escritor David Grinspoon, que diz o seguinte: “Num certo sentido, só existiu uma única fita de DNA, dividindo-se e multiplicando na Terra há quase 4 bilhões de anos. O DNA nunca morre, só melhora. Os afluentes evolutivos secam e desaparecem, mas a corrente central da vida impelida pelo DNA continua crescendo. (...) Esse milagre helicoidal poderá até sobreviver à sua estrela de nascimento, se partirmos e levá-lo conosco. (...) Somos as naves que o DNA inventou para navegar pelo mundo.”

Para Grinspoon, consultor da Nasa, a evolução do universo até aqui transmite uma mensagem “completa e profunda” de unidade. Conclusão, aliás, comum a muitos que se debruçam sobre a arquitetura e a história cósmicas. Da mesma maneira que a inteligência humana seria parte da evolução da matéria que se torna autoconsciente, “dá uma olhada para trás para ver onde esteve e decide conscientemente como prosseguir”.

Nas voltas que o universo deu e naquelas que o DNA dá sobressaem mais perguntas do que respostas. A diferença entre homens e pingüins, por exemplo, ergue-se bem acima dos respectivos projetos biológicos cumpridos. Pouco ajuda, nesta hora, lembrar que somos ambos – todos – feitos do “mesmo barro”, ou que ao pó estelar de onde viemos um dia regressaremos.

Um dia, não tão distante, foi uma heresia dizer que o homem veio do macaco. Através das lentes da Marcha do Imperador, é tentador comparar o resto do reino animal conosco e pensar que não importa, de fato, se viemos de macacos ou de pingüins. A pergunta agora é outra.

Pouco mais de meio século após sua descoberta, o DNA é a misteriosa chave sem destino que preservamos sem desconfiar o motivo. Ao menos temos uma compensação poética – de ser formados por obra e graça de uma escada espiral perfeita, bela, infinita e eterna, como um Deus que se esconde dentro de nós.

(publicado no Jornal do Commercio/PE, 24.01.06)

Fábio Lucas
Enviado por Fábio Lucas em 06/02/2008
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