NOSSO HOPI HARI DOS ANOS 50
“Recordar é fácil para quem tem memória, esquecer é difícil para quem tem coração”.
Quando nos aproximamos dos sessenta anos, alguns fragmentos importantes do nosso passado começam a ser levados para outras dimensões, juntamente com pessoas que conhecemos e que fizeram parte importante de nossas vidas. Aconteceu comigo nesse início de um dois mil e oito, ano bissexto e agourento: faleceu, após oitenta e sete anos, e uma dezena de filhos e netos, a sra Adelina Bernardo Habenchus.
Durante a última metade da década de cinqüenta, ainda nos meus primeiros anos de vida, a minha diversão e de toda a molecada da rua Olavo Bilac, próximo ao número trezentos, esquina com Florêncio de Abreu, era acordar logo cedo e ir para o longo corredor da casa da Dona Adelina (pernas carregadas de varizes) e do “Seu” Pedro ( rude trabalhador braçal).
Era um espaço encantador, de aproximadamente uns trinta metros de comprimento por dois de largura, que separava o portão da rua, da porta de entrada da casa de uma lavadeira,de um pedreiro, e de seus nove filhos: não cheguei a conviver com os gêmeos Pedro e Paulo que, se não me engano, completaram um time misto de futebol.
Nesse nosso Hopi Hari da década de cinqüenta, os grupos de crianças e jovens se reuniam, de espaço em espaço, de acordo com os interesses de cada faixa etária: os quase dez filhos de Dona Adelina, naquela época, tinham de pouco mais de um ano até dezesseis anos.
Vindos de uma vida rural — lembro-me bem da Bel, do Zezão, do Tuniquim (que sofria sempre com enorme furúnculos) , da Fina, do Carlito — logo que chegaram foram atração à parte para o restante da meninada da rua que passava o dia jogando bolinha-de-gude (na rua ainda sem asfalto) , brincava de pega-pega correndo em torno do quarteirão, jogava pião, jogava pedrinhas (com pedrinhas ou saquinhos de arroz), amarelinha, pulava cordas, pique alto, esconde, estátua,cantigas de roda.
E as brincadeiras continuavam á noite enquanto os adultos da vizinhança se reuniam, cadeiras nas portas das casas, aproveitando para colocar os assuntos em dia até dez, onze horas da noite.
Os doces e sorvetes eram comprados na rua: carrinho da Kibon, quebra-queixo, martelinho, açúcar queimado em forma de galinhos, gatos, cães (todos ocos) : comíamos aquela casquinha doce e avermelhada, lentamente.
Não havia Internet, nem TV, nem jogos eletrônicos: a vida era quase que exclusivamente manual.
Comunicação somente pelos jornais, revistas, correios e pelo rádio.
O gelo da geladeira que não era elétrica, era deixado na porta, em blocos de 1 metro de comprimento, e o verdureiro, o padeiro e o leiteiro passavam todos os dias pela rua poeirenta, passagem , às vezes, até de tropas e boiadas, vindas sei lá de onde.
Personagens famosos não eram os BBBs, eram os bêbados: lembro-me bem do João Louco e do Capilé — e sua cantada, em prosa e versos , ex-esposa, Jesumina.
Enfim , tempo bom, que a nota de falecimento de Dona Adelina me fez retirar do meu cinqüentenário baú de lembranças.
ANTÔNIO CARLOS TÓRTORO
Ex-presidente da Academia Ribeirãopretana de Letras
ancartor@yahoo.com