Histórias sinceras da fronteira

Cota 220

“Atenção senhores desapropriados que

ainda moram na área do reservatório.

No final deste ano as águas do Rio Paraná

vão começar a subir para formar o Lago de Itaipu.

Em duas semanas, uma vasta região

será coberta pelas águas.

Às vezes, por morar um pouco distante do rio,

é difícil acreditar que as águas cheguem até suas casas.

Mas estejam certo de que se as suas terras foram

desapropriadas por Itaipu é porque elas estão dentro

dos limites do reservatório. E é para impedir que o senhor

e sua família fiquem ilhados em sua casa que voltamos

a informar que as águas do Rio Paraná vão subir mesmo.”

Em janeiro de 1982 a Itaipu esparramou pela região onde seria formado o reservatório da hidrelétrica um panfleto conclamando os moradores remanescentes a desocuparem a área.

Naqueles dias que antecederam ao represamento do Rio Paraná ainda havia gente desmanchando casas e galpões em toda a vastidão do perímetro demarcado pelos técnicos da empresa binacional. Em 13 de outubro de 1982 as comportas do canal de desvio foram fechadas e começou a ser formado o reservatório da usina. Às 10 horas de 27 de outubro as águas chegaram às comportas do vertedouro atingindo a cota 220.

Ao relembrar esses fatos decidi resgatar algumas histórias acontecidas naquela ocasião e especificamente contar alguns fatos ocorridos em Alvorada do Iguaçu e Itacorá, duas cidades que desapareceram sob as águas do imenso lago de 1.350 km2. Porém, na medida que ia escrevendo surgia dentro de cada caso um novo caso que por sua vez gerava um caso novo e assim sucessivamente. Ao mencionar, por exemplo, a hoje submersa estrada Foz/Guaíra eu me lembrei das preparações do MR8 para a guerrilha rural; ao contar o caso das cabeças cortadas na fazenda dos Mesquitas, citei no texto a Ponte Queimada sobre o Rio São Francisco e em conseqüência relembrei alguns fatos acontecidos durante a passagem da Coluna Prestes pela região de Santa Helena. Era como se eu estivesse brincando com uma matrioshka; aquela boneca russa que se encaixa uma dentro da outra.

As cidades

submersas

Eram sete horas da manhã do dia 6 de setembro de 1982, quando saí para Alvorada do Iguaçu com a missão de entrevistar para o semanário Nosso Tempo os últimos moradores daquela vila que havia surgido em 1960 para ser uma cidade planejada e estava com seus dias contados. Em breve ela seria coberta de água.

Faltava pouco mais de um mês para o fechamento das comportas do canal de desvio e a região estava deserta. Raramente aparecia alguém ao longo da estrada. A quiçaça tomava conta dos campos antes tomados por lavouras, e das casas e galpões que eram vistos ao longo do caminho só restaram os cepos. Outros madeirames foram levados para as novas propriedades e dos espaços de chão batido, onde antigamente se erguiam as moradias dos colonos, só ficaram suas histórias. Algumas me foram contadas por Alcides Binotto, um carpinteiro que trabalhava nas demolições. Eu o conheci em Alvorada do Iguaçu, ou melhor, no que restou dela, quando desmanchava o que um dia foi a casa comercial de Belmiro Mariani, uma das poucas construções remanescente no vilarejo. Entre velhas vigas de aroeira e caibros de cedro, seu Alcides recordou os dias de movimento, quando os colonos se juntavam na venda para beber cachaça e contar causos. Recordou as reuniões políticas que eram feitas no salão e contou-me em voz baixa que certa ocasião quando o deputado Alencar Furtado visitava a região foi ao Belmiro conversar com o povo. O boliche ficou cheio. Tinha gente pendurada nas janelas e até do lado de dentro do balcão. Alencar era famoso pelos discursos inflamados, em que ele desancava a ditadura. Um deles serviu de pretexto para a cassação de seu mandato de deputado federal. Foi em 1977, quando no simpósio Luta pela Democracia, ele criticou a falta de liberdade no País e denunciou a violenta repressão aos opositores do regime, as prisões arbitrárias e o desaparecimento de cidadãos. “Defendemos a inviolabilidade dos direitos da pessoa humana para que não haja lares em pranto; filhos órfãos de pais vivos – quem sabe mortos talvez... Órfãos do”talvez” e do “quem sabe”.

Veio a anistia, Alencar Furtado voltou à Câmara Federal em 1983 e só desapareceu do cenário político paranaense após perder para Álvaro Dias a eleição de governador em 1986.

Alencar estava cassado e com os direitos políticos suspensos quando falou, em 1978, para o povo reunido na venda de Alvorada do Iguaçu. Apesar de estar punido pela ditadura, sem poder votar e ser votado, ele peregrinava pelo Estado fazendo campanha para seu filho Heitor, que foi eleito deputado federal com uma votação extraordinária e morreu em outubro de 1980, vítima de um atentado.

Por causa da reunião em seu estabelecimento, Belmiro Mariani foi fichado como subversivo e passou a receber visitas periódicas dos agentes do serviço de informações do Batalhão de Fronteiras. Desde então sua vida desandou, perdeu o ânimo pelas coisas e descorçoado fechou a sua casa comercial em 1980 indo trabalhar como operário numa fábrica em Cascavel.

Naquela época muitos colonos venderam suas propriedades a preço de banana e foram viver em casa alugada e trabalhar como empregados em outras cidades. Alguns caíram vítimas de estelionatários que percorriam a região soltando boatos e dando golpes. Um desses estelionatários foi o advogado Ubiratan Costa, que dizia ser protegido dos militares do 1º Batalhão de Fronteiras, afilhado do bispo de Cascavel, dom Armando Círio, sobrinho do almirante Luiz Oliveira e do general Isaac Nahan. Com tantos parentescos e proteções, mais um arsenal de astúcias e muita lábia, o advogado enganava com facilidade os habitantes da região. Comprava a propriedade por uma ninharia, com o argumento de que vendendo para ele o colono receberia em poucos meses, enquanto negociando direto com Itaipu o recebimento iria demorar de 10 a 20 anos. Para sustentar sua história o estelionatário citava seus “parentes e protetores” poderosos. Aqueles que caíram em sua conversa acabaram indo parar na rua da amargura, sem eira bem beira.

Itacorá e as

sepulturas submersas

Assim que terminaram minhas entrevistas em Alvorada do Iguaçu parti para Itacorá e Santa Helena. A vila de Itacorá, que ficava a 60 quilômetros de Foz do Iguaçu e às margens do Rio Paraná, foi submersa um mês após ter completado 15 anos de existência. Tudo desapareceu no fundo do imenso lago. As águas do Rio Paraná inundaram a terra como num dilúvio, nivelando com seu lençol prateado casas, galpões, armazéns, lembranças, vivências e convivências.

Talvez tenha sido devido às vivências que seu Bonorino resistiu um monte para sair do sítio apesar dos vários ultimatos dados pela Itaipu. Ele dizia que as águas não iriam chegar até sua propriedade. Eu soube mais tarde pelo Orestes Gasparini, um dos líderes do Movimento Justiça e Terra, que o velho resistia em sair do sítio porque estava convencido de que iria perder a alma caso fosse embora para outro lugar. Corria na região que Bonorino havia enterrado a mulher num capão de mato e tinha medo de não poder cumprir o juramento de ser enterrado ao lado dela. Naquela época havia muitas sepulturas espalhadas pela região. Quando represaram o rio, cemitérios legais e clandestinos também foram submersos pelas águas.

Quem me deu a dica sobre o seu Bonorino em Itacorá e de sua resistência para sair do sítio que seria inundado foi meu velho amigo Gonço, ou melhor, Gonçalino de Assis, que naquela época era soldado da Polícia Militar e servia em Foz do Iguaçu, no 14º BPM. Mais tarde ele foi promovido a cabo e finalmente se aposentou como sargento, depois de comandar os destacamentos de Santa Terezinha de Itaipu e de Itaipulândia.

Eu conheci o soldado Assis em 1980, quando o Brizola veio a Foz para lançar o novo PTB, idealizado um ano antes numa reunião realizada em Lisboa pelos brasileiros exilados na Europa. Apesar do País ainda ser governado pelos militares e as leis discricionárias estarem em vigor, o salão do tradicional Oeste Paraná Clube ficou lotado e muita gente acompanhou os discursos pelas caixas de som instaladas no lado de fora.

Brizolista da velha cepa, Gonço trabalhou comigo na organização do ato público. Naquela época ele me apresentou a alguns colegas de farda e eu tentei ganhá-los para a causa da democratização do País e do socialismo. Um desses foi um tenente que me causou uma baita decepção. Também quem mandou eu me iludir com o cara! O meu desapontamento aconteceu em 1983, quando esse PM arrancou um megafone de minhas mãos. Foi durante uma manifestação na porta da prefeitura. Ele pediu o megafone, eu não entreguei, ele puxou e eu segurei firme. Resultado: o megafone quebrou. Quebrou, mas eu não entreguei.

Isso aconteceu numa manhã de dezembro de 1983, quando fizemos uma manifestação contra o aumento de 40% no preço da passagem de ônibus. O povo já não agüentava tanta carestia e de repente o coronel Clóvis Cunha Bueno, prefeito nomeado de Foz do Iguaçu, havia tornado, com um canetaço, os empresários mais ricos e os trabalhadores mais pobres. Por isso a proposta de caminhar até a prefeitura pegou em todos os bairros.

Nove horas da manhã e estávamos lá, concentrados e pedindo a revogação do decreto que autorizava o aumento. Assustado com a multidão que se aproximava do prédio da prefeitura um vigia tentou fechar a pesada porta de ferro. Não conseguiu. A massa entrou na marra no prédio da prefeitura e acampou no gabinete.

Depois dessa refrega fomos atendidos pelo Wilson Batista, que era o ajudante-de-ordem do prefeito. Ele nos comunicou que o coronel Clóvis Cunha Vianna iria abaixar o preço da passagem, o que de fato aconteceu no dia seguinte.

Cabeças cortadas,

ponte queimadaQuando eu cheguei a Santa Helena para entrevistar Plínio Angeli, o ambiente era extremamente tenso. Naquele dia muitas famílias estavam indo embora e o impacto das desapropriações para formação do reservatório de Itaipu atingia toda população. Cerca de 30 por cento da área total de Santa Helena estava para ser inundada e milhares de colonos migravam para outros municípios e até para outros estados.

Encontrei o Plínio na Câmara de Vereadores, onde ele trabalhava. Eu o conheci em 1980, por intermédio de seu irmão José Angeli, jornalista e escritor de mão-cheia que mora em Curitiba, mas tem parentes e amigos espalhados por toda a região Oeste, onde seu pai foi um dos desbravadores. Zé Angeli é, como ele próprio diz, um velho companheiro das peleias travadas contra a ditadura. Plínio era do PCB e militou antes do golpe militar no Rio de Janeiro. Devido a essa militância foi fichado pelos órgãos de repressão do regime e controlado durante anos pelos agentes dos serviços de informações do Exército e da Polícia Federal.

Quando o encontrei ele estava triste com o esvaziamento econômico e populacional de Santa Helena. “Agora só resta escrever a história”, dizia Plínio, enquanto tentava abotoar a camisa que teimava em expor seu imenso barrigão. E histórias Santa Helena tem às pencas; algumas ainda não foram escritas, como a morte por enforcamento de dezenas de camponeses, ocorrida na fazenda dos Mesquitas, localizada na região da Ponte Queimada. Naqueles últimos anos da década de 60 a violência contra os posseiros era de tal monta que os jagunços matavam os pais e seqüestravam as filhas menores para morar com eles, como está registrado nas declarações prestadas à Polícia Federal pelo agricultor Ortêncio Elibrando Monteiro. No depoimento dado à PF, Ortêncio contou que além de seqüestrar as moças, os jagunços dos Mesquitas cortavam as cabeças dos pais e as levavam para as famílias.

A região onde ocorreram esses conflitos pela terra leva o nome de Ponte Queimada, pelo fato de existir ali destroços da ponte que cruzava o Rio São Francisco Falso e que em 1925 foi queimada pelos revolucionários de Luiz Carlos Prestes para impedir a passagem da tropa governista comandada pelo general Cândido Rondon.

Durante sua marcha pelo oeste do Paraná, Prestes e seus comandados encontraram uma terra dominada por empresas concessionárias da exploração de erva-mate e madeira de lei. Na região de Guarapuava e Laranjeiras dominava a Companhia Mate Laranjeira, enquanto que no Alto Paraná, na região de Guaira e Porto Mendes, quem explorava a erva-mate era a Companhia Allica.

Nos obrajes, predominava o trabalho escravo e os trabalhadores, suas mulheres e filhos eram tratados com violência. Os mensus, uma derivação do espanhol mensualista, eram a mão-de-obra quase absoluta empregada nos trabalhos de extração de madeira e erva-mate. Constituída basicamente por paraguaios, sua arregimentação era feita pela força e eles deviam obediência irrestrita aos obrajeros e seus capatazes, verdadeiros monarcas, com poder de vida e morte sobre os trabalhadores.

Enquanto as autoridades constituídas atuavam sempre em defesa dos donos dos obrajes, a violência, corriqueira nos acampamentos, não era contestada pelos mensus. Fracos e descalços, eles passavam meses embrenhados no mato. Fugir era impossível. Quem se aventurava ia pra cadeia ou acabava boiando nas águas do rio Paraná.

Os atos de violência mais contundentes ocorriam na hora do acerto de contas. Os mensus estavam sempre devendo para o patrão. Esse endividamento constante e progressivo aumentava o grau de dependência, que já começava na contratação do peão, quando ele recebia um adiantamento, chamado de antecipo. O dinheiro era dado a peonada antes do embarque para os futuros locais de trabalho. As embarcações atrasavam de propósito até cinco dias e durante esse tempo os peões gastavam todo o antecipo com mulheres e bebidas e quando chegavam no obraje estavam devendo para o patrão. O desgraçado do trabalhador nunca mais conseguia pagar o que havia recebido.

O mais temido dos capatazes era o carrasco Santa Cruz, cunhado de Júlio Allica cujo império se estendeu por quase todo o oeste paranaense. Foi ele o responsável pelo maior dos massacres de mensus de que se tem conhecimento. Cansados de serem explorados e dos maus tratos um grupo de trabalhadores dos obrajes de dom Júlio decidiu fugir. Alguns se embrenharam no mato em direção a Campo Mourão e escaparam da patrulha do carrasco Santa Cruz; outros seguiram para Pitanga e não tiveram a mesma sorte. Foram massacrados pelos homens leais ao cunhado do obrajero. O lugar das mortes ficou conhecido como “Las Cruces”.

O império dos concessionários da exploração de erva-mate e de madeira só foi derrocado graças aos revolucionários de 1924. Durante sua marcha pela estrada Foz/Guaíra em direção a Porto Mendes a tropa comandada por Luiz Carlos Prestes atiçou o ânimo da peonada e com ela marcharam os paraguaios, argentinos e brasileiros que viviam nos acampamentos. Os mensus aproveitaram a oportunidade para escapar da escravidão dos obrajes e caminhar junto com os oficiais e soldados da coluna. Durante a fuga os trabalhadores deixaram para trás pontes destruídas, balsas afundadas e o corpo de Santa Cruz, abandonado na região de Quatro Pontes após ter sido degolado por um golpe de facão.

A base da guerrilha

que não aconteceu

Eu conheci a estrada Foz/Guaíra em 1968, durante reconhecimento da área onde deveriam ocorrer as lutas do foco guerrilheiro da Dissidência Comunista, que mais tarde deu origem ao Movimento Revolucionário Oito de Outubro - MR8. Foram quase seis meses de andanças pelas estradas do Oeste, levantando rios, riachos, pontes, pontilhões, áreas de conflitos sociais, postos policiais e outros prédios públicos. Dessas caminhadas pelos caminhos de chão batido da região participaram, eu, Nielse e Bernardino. Eu, estudante de ciências sociais da Universidad0e Federal Fluminense; Nielse Fernandes, operário naval de Niterói, e Bernardino Jorge Velho, ex-sargento do então 1º Batalhão de Fronteiras e quadro rural do Partido Comunista Brasileiro - PCB. Aliás, todos nós éramos oriundos do velho Partidão; rachamos por discordar da linha política imposta pelo Comitê Central – conciliadora no plano interno e reboquista em nível internacional. A direção do PCB seguia ao pé da letra as orientações do Partido Comunista da União Soviética. Nós dissidentes pregávamos a luta armada contra a ditadura e éramos críticos do PCUS e dos seus satélites da Europa Oriental.

Eu conheci o Bernardino por intermédio do Fábio Campana, que também havia rachado com o PCB e organizado a Dissidência Comunista no Paraná. A admirável facilidade que o “Bigode Branco” tinha para se comunicar com as pessoas me impressionou desde o nosso primeiro encontro. Graças a ele montamos para a futura guerrilha uma extraordinária rede de apoio, constituída por pequenos proprietários rurais, posseiros, meeiros e peões. Só os mais íntimos o conheciam pelo nome de batismo. Por onde a gente andava todos os chamavam de “Bigode Branco”. Aliás, aquele bigode ralo, metade branco e metade negro era sua marca característica. Bernardino se negava a tingi-lo e só o fez no final de 1969, quando a organização foi desmantelada e ele foi viver clandestino em São Paulo. Nunca foi identificado pela repressão, que nas sessões de tortura queria que disséssemos quem era o homem de bigode branco, conhecido na luta revolucionária pelo nome de guerra de “Santos”.

Eu só vim rever o Bernardino em 1993, quando ele veio a Foz do Iguaçu para visitar seu filho, o advogado Domingo Jorge Velho, e tentar reaver um sítio que dizia ter sido grilado por Silvino Dal Bó.

Nesse encontro recordamos acontecimentos que o passar do tempo e o rigor da clandestinidade haviam apagado de minha memória. Lembramos de nossas andanças pelos caminhos daquela que nos planos da organização seria a área do foco guerrilheiro, como certa ocasião em que nos infiltramos entre os trabalhadores da Fazenda Rami, em Matelândia e ficamos chocados com a exploração a que o dono da propriedade submetia seus empregados. Muitos deles tinham os dedos decepados pelas máquinas, conhecidas como “periquitos”, nas quais eram desfibradas as hastes do rami, uma planta cuja fibra é utilizada na fabricação de tecidos, cordas e barbantes.

A jornada de trabalho era estabelecida em regime de 12 horas por dia e o pagamento era feito por meio de vale-barracão. Os trabalhadores estavam sempre endividados com o dono da fazenda que também era o dono do armazém, onde os produtos eram, duas ou três vezes, mais caros do que na cidade, onde, normalmente não podiam ir. O esquema de fiscalização era rígido e aqueles que eram apanhados em fuga sofriam castigos físicos.

Na noite que passamos no dormitório dos trabalhadores solteiros da Fazenda Rami, falamos de liberdade, socialismo e revolução. Quando fomos embora, antes do dia amanhecer, muitos daqueles peões queriam ingressar na guerrilha. Desconversamos e saímos de fininho. De acordo com as regras para a implantação do foco guerrilheiro ainda não era o momento para aquele tipo de recrutamento.

A Dissidência Comunista do Estado do Rio foi a única das organizações político-militares oriundas do PCB que tentou pôr em pratica a proposta guevarista do foco guerrilheiro. Nós éramos extremamente sectários na defesa da teoria de que um grupo de combatentes enraizados numa área rural, com um mínimo de infraestrutura e combatendo esporadicamente poderia mobilizar o País para a luta contra a ditadura e pelo socialismo.

Foi para pôr em prática esse projeto que eu, Nielse Fernandes, Miltom Gaia Leite, Bernardino Jorge Velho, César Cabral e João Manoel Fernandes ficamos quase um ano internados no Parque Nacional do Iguaçu. Nosso instrutor era o paraguaio Rodolfo Ramirez Villalba, membro da Frente Revolucionária Colorada - FRC e conhecedor das técnicas da guerra de guerrilhas.

Os primeiros contatos da Dissidência com a FRC, uma espécie de agrupamento de esquerda dentro do Movimento Popular Colorado- Mopoco, foram feitos graças ao César Cabral, que veio em definitivo para Foz do Iguaçu alguns anos antes de nossa chegada à região. Ele estudava economia na Universidad del Nordeste, na Província do Chaco, Argentina, e devido a sua militância de esquerda passou a ser perseguido naquele país. Em Foz, César foi ajudar o pai a tocar um açougue e em pouco tempo fez amizade com o Fábio Campana, que passava uma temporada com a família. O clima político em Curitiba estava carregado e Fábio vinha sendo ameaçado devido as suas atividades no meio estudantil.

Durante meses os dois “exilados” devoraram livros e mais livros e passaram por momentos de inquietações como todos os jovens politizados daquela época.

Quando cheguei em Foz do Iguaçu no outono de 1967 com a missão de entrar em contato com o Fábio, ambos estavam estudando o 18 Brumário de Bonaparte, de Karl Marx e A Revolução Brasileira, de Caio Prado Júnior. Desembarquei na rodoviária velha, que ficava no centro da cidade, carregando uma imensa mala de couro, com manuais de guerrilha, livros de Regis Debray e Che Guevara, mapas da região, um revólver 38, um rifle de ferrolho e alguma munição. Fábio me hospedou num quartinho nos fundos da Padaria Progresso, de Rodolfo Mongelos, que ficava na Avenida Brasil. Começaram então os contatos da Dissidência Comunista com os colorados de esquerda.

Sete anos após esses acontecimentos, Rodolfo Villalba foi preso, quando ingressava em território paraguaio regressando da Argentina, e levado para o Departamento de Investigações da Polícia Política, em Assunção, juntamente com seu irmão Benjamin, foi torturado até a morte.

Daquele período de preparação para os combates que não aconteceram ficou gravada em nossa memória a solidariedade de nossos contatos camponeses. Que tempo meu Deus! Vez ou outra a gente saia do meio do mato para jantar no rancho de seu Pedro Gordo. No meio da noite, equipados de coturnos, mochilas, rifles e fuzis, os candidatos a guerrilheiros atravessavam a BR 277, ali na altura de Tatu Jupy, e eram recebidos com um bufê de galinha caipira, pirão, arroz, feijão e mandioca, que fumegava no fogão à lenha, feito de tijolo e argila.

A solidariedade das famílias camponesas nos estimulava naquelas nossas caminhadas solitárias. Esses apoios vinham de todas as direções e nos momentos de maior aperto eles quebraram nosso galho. Quando caminhávamos, por exemplo, desde Santa Helena em direção à Bela Vista, na BR 277, éramos recebidos pelo Nardo, taxista de Vera Cruz do Oeste e por seus pais, dona Astra Fruet e seu Artur, em cujo paiol passávamos as noites. Era um luxo deitar naquela montanha de arroz ainda sem descascar. Luxo porque na maioria das vezes dormíamos no meio das roças, como em certa ocasião quando fomos fazer uns contatos em Pato Bragado. Na volta para Foz do Iguaçu, um pouco antes de Itacorá, começou a chover às pampas. Paramos no meio de uma plantação de menta e deitamos entre as toras espalhadas pela área recentemente desmatada. Naquela noite, dentro de nossos sacos de dormir, com o fecho ecler puxado até o queixo, pegamos no sono embalados pelo barulho da chuva e pelo suave aroma de hortelã.

A luta dos

desapropriados

Faltavam cinco dias para o fechamento das comportas. Em breve as águas do Paranazão iriam começar a subir e encobrir o que restava das plantações e das ruínas que os colonos iam deixando para trás. A não ser algumas casas nas vilas de Itacorá e Alvorada do Iguaçu, o restante já havia sido desmontado. Quem ficou na região aproveitou o madeiramento das construções. Mas aqueles que foram para longe venderam casas e galpões inteiros para moradores de São Miguel, Santa Terezinha e até de Foz do Iguaçu. O professor José Kuiawa, um dos pioneiros do ensino superior na região oeste, chegou a comprar uma igreja e a adaptou para servir como moradia. A casa, que um dia foi um templo religioso, está até hoje no começo da Avenida General Meira, logo após a Igreja Luterana, em Foz do Iguaçu.

Como conseqüência da repentina valorização da terra no Oeste, muitos dos agricultores desapropriados não conseguiram adquirir novas propriedades na região. O preço oferecido pela Binacional não ultrapassava a metade do valor que era pedido por propriedades idênticas fora da área que seria desapropriada.

A resistência aos preços oferecidos pela Itaipu durou cerca de cinco anos. No começo foram pequenas reuniões nas igrejas católicas e luteranas da região. Após dezenas de tentativas frustradas de negociação, no dia 14 de julho de 1980, cerca de 400 agricultores sitiaram o escritório da Itaipu em Santa Helena, interditando as ruas com caminhões, tratores e outras máquinas agrícolas. Os manifestantes pediam indenização justa para os atingidos pelo plano de desapropriação de terra na área onde seria formado o reservatório.

A imprensa da região foi para Santa Helena e os boletins radiofônicos acabaram atraindo colonos dos arredores. Nas primeiras horas da tarde já eram cerca de 1.500 manifestantes que se deslocaram de Rondon, Itacorá, Missal, Alvorada do Iguaçu e outras localidades. Para garantir alimentação aos acampados várias carretas carregadas com gêneros alimentícios foram estacionadas no local. Um serviço de alto-falante denominado Rádio Justiça e Terra foi instalado em cima de um caminhão e por ele desfilaram oradores e duplas de cantores acompanhadas por sanfona e violão. Em pouco tempo dezenas de barracas de lona tomaram conta da área do acampamento e faixas e cartazes com dizeres alusivos ao movimento foram espalhados nas imediações e colados nos pára-brisas e na parte traseira dos veículos estacionados.

Uma comissão para negociar com a Itaipu foi eleita pelos manifestantes e as reuniões se prolongaram até a diretoria da Itaipu prometer rever posições e abrir um canal de negociação com os colonos. Diante do compromisso assumido os agricultores desmontaram o acampamento e retornaram às suas propriedades.

Passados mais de sete meses e como a empresa binacional não cumpria as promessas feitas nas reuniões de Santa Helena os colonos resolveram fazer uma nova assembléia. Dessa vez foi em Itacorá no dia 16 de março de 1981. Nela os agricultores decidiram marchar em direção a Foz do Iguaçu e acampar em frente do Centro Executivo, na Vila A. No dia seguinte setecentos colonos partiram em carros e caminhões, com equipamentos e mantimentos, dispostos a ficar acampados por semanas ou meses, até que Itaipu atendesse às reivindicações. Ao chegarem próximos ao trevo em que a BR 277 se bifurca em direção à ponte que liga o Brasil ao Paraguai e em direção ao Centro Executivo, os agricultores foram impedidos de prosseguir. Andaram mais dois quilômetros pela Avenida Paraná e antes de chegarem nas proximidades das primeiras casas do conjunto residencial da Vila A foram barrados por 200 homens da PM e da segurança da Itaipu, armados com revólveres, cassetetes e baionetas montadas na ponta de fuzis.

Foi grotesca a cena, os soldados na posição de disparar, tremendo de vergonha ao terem de apontar suas armas para os agricultores desarmados e acompanhados por suas mulheres e filhos. Diante do aparato repressivo os manifestantes decidiram recuar e montaram o acampamento no entroncamento da Avenida Paraná com a BR 277. Graças a organização adquirida na luta reivindicatória foi possível manter por 54 dias o acampamento. No local que ficou conhecido como o “Trevo da Vergonha”, os agricultores organizaram comissões de alimentação, segurança, higiene, imprensa e tal como em Santa Helena a “Rádio Justiça e Terra” foi instalada e transmitiu pelos seus dois alto-falantes mensagens e discursos das lideranças do movimento, de políticos e religiosos. Em 9 de maio de 1981, quase dois meses após terem chegado a Foz do Iguaçu, os colonos desmontaram as barracas e regressaram para suas propriedades com boa parte das reivindicações atendidas pela Itaipu. Às oito horas da manhã rezaram a última missa ecumênica oficiada pelo bispo dom Olívio Fazza e pelo pastor luterano Werner Fuchs

Aluizio Palmar
Enviado por Aluizio Palmar em 22/01/2008
Reeditado em 22/01/2008
Código do texto: T828250