ReLer VIRGÍLIO
No ensaio “O que é um clássico?” [1944], T.S.Eliot — poeta e ensaísta norte-americano — descreve Virgílio [71 a 19 a.C.] como o clássico de toda a Europa. Isto não quer dizer que Eliot o considere o maior poeta europeu, mas que Virgílio — autor da “Eneida”, das “Geórgicas” e das “Bucólicas” — ocupa o papel central dentro do cânone da literatura européia por mais tempo que qualquer outro escritor. A significação de Virgílio estende-se para além de sua influência sobre os outros escritores. Com efeito, seu épico, a “Eneida”, produz significações que vão além da literatura, pois sua influência não se restringiu somente ao universo pré-cristão; ela se estendeu soberanamente, produzindo, certamente, o melhor fruto da Idade Média: Dante Alighieri [1265-1321] — poeta do cristianismo e tido, também, como o pai da poesia italiana —, que lê e venera Virgílio nas páginas da sua “A Divina Comédia”, comparando-o a um profeta e chamando-o de “duca, signore, maestro”, isto é, guia, dono, mestre. Seguem outras palavras de Dante atribuídas a Virgílio: “Na verdade, és meu mestre e meu autor, ao teu exemplo devo, deslumbrado, o belo estilo que é meu só valor.”
A singularidade da poética virgiliana nasceu da leitura que poeta latino fizera dos antigos poetas gregos. A “Eneida” surge cerca de mil anos depois da “Ilíada” e da “Odisséia”, ambos épicos do aedo (poeta-cantor) grego Homero. Na qualidade de leitor e de continuísta de uma tradição, Virgílio - o novo Homero latino - é considerado como o vates (profeta-poeta) por excelência da Latinidade.
A trama inicial da épica virgiliana começa no ponto em que se encerra o poema homérico “Ilíada”. O herói central virgiliano é o troiano Enéias: herói piedoso, filho de Anquises e da deusa Vênus — a representante da beleza e do amor na mitologia romana. O poema de Virgílio começa com os últimos acontecimentos da queda de Tróia. Nesse sentido, podemos dizer que a “Eneida” é o poema que canta a épica fundação de Roma — consolidada mediante a união de Enéias com Lavínia, filha do rei Latino. A genialidade de Virgílio está no vínculo que ele criou entre a descendência do herói troiano Enéias e a linhagem dos Césares, uma dinastia muito antiga oriunda da distante Alba Longa — cidade mais antiga que Roma — fundada por Iulo, filho do herói Enéias.
A “Eneida” foi primeiro composta em prosa. Lentamente Virgílio a converteu em poemas. Os seis primeiros cantos do poema recordam o enredo da “Odisséia” homérica, e os seis últimos cantos recordam o enredo da “Ilíada”. Virgílio concluiu a obra no ano 19 a.C. — último ano de vida do poeta. Quis, então, o poeta, levar a termo uma rigorosa revisão do texto, pois o considerava inacabado. Assim, resolveu visitar algumas regiões da Grécia e do Oriente, pelas quais, segundo lendas mitológicas, teria transitado o herói troiano Enéias a caminho do novo lar — a Itália —, após a fuga de sua Tróia destruída e incendiada pelos gregos. Virgílio visava, com a viagem, recolher dados para finalizar a “Eneida”. Entretanto, o poeta latino, durante a sua odisséia particular, teve a saúde afetada ao contrair uma grave moléstia; moribundo, chegou a Brindisi, na Itália meridional. Sentindo que a morte se aproximava, Virgílio pediu aos amigos Vário e Tuca que queimassem os originais da “Eneida”. Neste ponto, aproveitamos para fazer uma menção ao extraordinário romance-poema “A morte de Virgílio” [1958] do austríaco Hermann Broch. Neste trabalho poético-criativo, Broch evoca e descreve os últimos momentos de Virgílio mediante uma encantadora lírica vazada por uma melancólica prosa narrativa, construída a partir do pungente conflito interior do poeta latino consigo mesmo em seu leito de morte. Colhamos um significativo trecho desse romance-sinfonia (é preciso acentuar que nas páginas de “A morte de Virgílio” palpita de forma intensa, bela e dolorosamente, a inquietação filosófica acerca do sentido da morte):
“... [Virgílio] queria sair em seguida ao ar livre, a qualquer lugar onde ardesse uma fogueira, queria transportar ali a carga dos rolos do manuscrito; (...) em algum lugar, na noite estrelada, as palavras do poema teriam de converter-se em cinzas; o sol não deveria ver a “Eneida”. Esta era sua missão (...) Queimar a ‘Eneida’! ...”
Além dos cuidados dos amigos do poeta latino, que se opunham à destruição do poema, o imperador romano Augusto proibiu a consumação de tal ato. Virgílio deixou de existir no dia 20 de setembro do ano 19 a.C; morreu antes de ter concluído a “Eneida”, que ele tentou destruir.
A “Eneida” é um poema de paz e de conciliação. Narra a nobre missão do herói Enéias, cuja finalidade era fundar Roma. A “Eneida” é uma visão poética da história romana, além de uma visão acurada da era augustiana do Império Romano. Como acentua o historiador Pierre Grimal [1972], com os cantos virgilianos, a epopéia sai das brumas da lenda para penetrar na realidade política. Até então, sonhava-se com Roma. A partir de Virgílio é preciso construí-la. Com a “Eneida”, o destino de Roma está justificado. Ademais, como recorda a filósofa alemã Hannah Arendt [Entre o Passado e o Futuro, 1979]:
“A fundação de Roma — ‘tanta molis erat Romanam condere gentem’ (‘tão grande foi o esforço e a labuta para fundar o povo romano’), como Virgílio resume o tema constante da ‘Eneida’, que todo o sofrimento e vaguear atinge o seu final e objetivo ‘dum conderet urbem’ (‘que ele pode fundar a cidade’) — ...”
... em contraste acentuado com a concepção de “polis” dos gregos (“onde quer que estejais sereis sempre uma ‘polis’”) . Isto nos mostra como os romanos estavam enraizados ao solo do Lácio, ou melhor, à localidade específica dessa única cidade: Roma. Nesse caso, ler a “Eneida” é constatar que é do solo italiano que a palavra Pátria deriva seu pleno significado.
PROF. DR. SÍLVIO MEDEIROS
primavera de 2005