AS CARTAS DE HERMES FONTES: ANGÚSTIA E TERNURA
Ana Medina, experiente pesquisadora, autora de Ponte do Imperador, oferece à intelectualidade sergipana a intimidade das cartas de Hermes Fontes. A obra de Medina requer várias leituras. Por vários motivos. Principalmente por ser uma idéia felicíssima.
Cada parte do livro merece especial atenção pela riqueza de informações e pela intensidade com que a escritora lança o olhar sobre a angústia e a ternura de Hermes Fontes, pelos passos firmes e seguros na trilha do “menino prodígio de Boquim”.
O espelho de su’alma reflete a afirmação poética de Hermes: “E a vida se resume nestas cartas fraternais”. Palavras claras, bem colocadas. Traduzem, não só a angústia, mas um misto de ternura, certeza e síntese de sua própria existência, destino. Um destino de rês desgarrada, de solitário acompanhado, de triste, de feio, de inseguro, de complexado questionador de sua produção. De alguém que constatou: Na verdade, eu sou as cartas que escrevo para os meus. Tudo é ilusão. Nada adiantou. A verdade da minha história é o conteúdo dessas cartas.
A dor cósmica, entretanto, entranhou-se no teor das missivas. Assim como se dissesse: – Ei, Hermes, estou aqui para ironizar, tripudiar, mostrar sua sina, sua sombra, seu ego dividido.
Hermes quis fazer da Dor um poema para a sua Alice-no-país-das-maravilhas. Ela, a princesa de todos os contos e de todos os cantos. Ele, o príncipe encantado, não-beijado. Fez da genialidade uma beleza, um tesouro recusado pela amada.
Quem sabe, se olhava no espelho e ouvia a resposta antes de formular a pergunta: Você é um sapinho. O encanto não se desfará. Quem sabe esperou tanto tempo sobre a pedra, à beira da lagoa. Até torrar a paciência.
O missivista se justificava. Explicava. Enganava-se. Desculpava-se. Protelava.
Ó martírio, poeta! Mãe, ó útero protetor das verdades freudianas. Mãe válida por todos os parentes. O pai era o “velhinho”, o “velhote”, o “santo”. Garcez, o “brasão”, o “leão”. O que diriam os analistas do comportamento humano sobre tais batismos? Eis Hermes, rasgado em dois pedaços: angústia e ternura.
A angústia sugestiva, o cão que ladra, avisa e morde: “Ainda resta a morte, o divino remédio”. Recorreu ao paliativo de fraca fé que não elevou, nem transfigurou. “A si mesmo se mentia”, avolumava a angústia arborizando o próprio caminho com ciprestes, planejando a morte numa data de nascer. Organizou, de forma vilã, um heroísmo às avessas. O herói subiu a escada para a forca, marcou meticulosamente dia e hora para ser “pó, feito esplendor”. Não sem antes lavar as mágoas, as marcas, na Fonte da Mata.
O vate buscou recuperar o elo familiar, reaproximar-se. Os parentes se esvaíam, figuras distanciadas dos olhos, do coração angustiado.
Um morto acenava, fascinava, convidava o homem desesperado. Hermes Fontes defendeu a atitude do suicida, ternamente. Postou-se ao lado do morto entre seis longos círios. Enfrentou a turba apedrejadora. Eram covardes os que ignoravam o “heroísmo” de um suicida em seu dulcíssimo suposto “descanso”.
Ó Hermes, por que tanta pressa de chegar ao fim?
Ana colheu nas fotos, no Rio de Janeiro, nos ares de Boquim, na feira, nas praças, nas avenidas, na igreja, no clube, na Fonte da Mata, os miolos estourados do “desertor” da vida, como preferiu chamá-lo a Fon-Fon. Ana não descansou a caneta até encontrar Hermes Fontes, no seu caixãozinho, sob a chuva, entre amigos, em uma tarde de sábado carioca.
Ana enfeixou com ternura a angústia de Hermes num livro que, principalmente, democratiza a poesia guardada em fileiras de estantes nas bibliotecas.
Aju, 20 de agosto de 2006
*Este texto foi publicado no Jornal Gazeta News, de 10 a 16 de setembro de 2006, na coluna No compasso da Arte, coordenada pelo jornalista e escritor Cleiber Vieira.