POR QUE ReLer OS CLÁSSICOS NO CONTEMPORÂNEO?

POR QUE ReLer OS CLÁSSICOS NO CONTEMPORÂNEO?

À memória de uma parente querida,

de uma princesa,

da minha prima-irmã

Kátia Marques Peres,

que foi levada deste mundo

no momento em que eu encerrava

estas linhas.

Sílvio Medeiros

Campinas, 20 de janeiro de 2003.

“...tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,

De vos ouvir demasiadamente de perto,

E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso

De expressão de todas as minhas sensações,

Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas! (...)

E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes elétricas

Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,

E pedaços de Alexandre Magno do século talvez cinqüenta,

Átomos que hão de ir ter febre para o cérebro de Ésquilo do século cem,

Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,

Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,

Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma...”

[FERNANDO PESSOA. Poemas de Álvaro de Campos: Orpheu I, Ode Triunfal]

A aurora do nosso presente anuncia a ruptura com a tradição representada pelo Iluminismo e pela Revolução Francesa. O Esclarecimento ou Iluminismo foi o principal movimento do pensamento moderno. Uma época esclarecida é aquela em que os homens atingem a maioridade pela capacidade de pensarem com autonomia (Kant, 1992). No entanto, aqui indagamos: o mundo moderno ou o mundo do progresso, ou ainda, o mundo da emancipação da humanidade deu certo?

Pelas precedentes, o objetivo deste breve estudo anuncia-se no horizonte da modernidade. Iniciamos, portanto, enfrentando o problema crucial de uma caracterização do fenômeno contraditório da modernidade. Logo a princípio, entendemos tratar-se de um conceito ambíguo, polissêmico e gerador de equívocos. Entretanto, tais considerações não invalidam a possibilidade de tentarmos nos aproximar de uma definição, ainda que provisória e lacunar. Assim, numa primeira aproximação, caso nos refiramos à nossa modernidade (ao contemporâneo), ela bem se define enquanto um mundo sempre sujeito ao fluxo, em que nada é durável; um mundo em que “tudo que é sólido desmancha no ar”, para ficarmos com a definição de Marsahll Berman (1988), criada com base no vocabulário marxiano, que preenche as páginas do “Manifesto do Partido Comunista”, de Karl Marx. Nesse sentido, é próprio da nossa modernidade – regida pelo signo da novidade (o consumo, a moda, a publicidade etc.) – expulsar continuamente o antigo; nesse caso, ela se define pelo distanciamento que toma em relação ao passado, ou melhor, pela vontade obsessiva de aprofundar a dicotomia entre o velho e o novo ou entre o antigo e o moderno. É precisamente neste ponto que o eixo central do nosso questionamento se instala, ou melhor, procura entender o nosso tempo lendo os clássicos. Mormente, “por que ler os clássicos em vez de concentrar-se em leituras que nos façam entender mais a fundo o nosso tempo?” Uma das repostas que o escritor Ítalo Calvino (1993) remeteu a tal questão repousa no sentido de que cada sociedade está edificada sobre um poema (e, nesse caso, os modelos não nos faltam quanto a este dado; para fixarmos alguns exemplos, citemos, como por exemplo: a “Ilíada” e a “Odisséia”, ambas do aedo grego Homero, as quais edificaram a antiga civilização grega. A “Eneida”, do poeta mantuano Virgílio, edificou o Império Romano. “Os Lusíadas”, de Camões, edificou a civilização marítima portuguesa. “Dom Quixote”, de Cervantes, a cultura espanhola... E a nós, brasileiros, qual o poema afinal que nos edifica? “Macunaíma”, de Mário de Andrade?!...

Em face disto, pensamos tratar-se de uma resposta típica de um historiador que se permite ir além das limitações impostas por certos cânones de historiografias tradicionais, na medida em que este historiador não exclui a visão literária do seu horizonte histórico. Como bem observa o historiador Paul Veyne (1984) “... em nossos dias, os raros estudiosos que, como Pound [Ezra Pound, poeta e crítico literário norte-americano] se interessam por um Propércio, fazem-no por razões que são as do nosso século e não pelas da poética antiga”, com a finalidade de ir mais longe na beleza e na realidade. Nesse caso, aqui conferimos legitimidade ao olhar interdisciplinar do historiador-materialista benjaminiano (1) que concebe a história literária como um momento da história geral ou como uma disciplina histórica. Desse modo, é do interior da configuração de uma historiografia, que autoriza o auxílio da imaginação literária, a fim de ampliar a busca da realidade histórica, que devemos lançar as perguntas do nosso tempo aos textos clássicos. Com quais finalidades?:

a) Na tentativa de recuperarmos ou reavaliar os elementos perdidos ou reprimidos na transmissão, de geração a geração, dos conteúdos (tradição) da cultura ocidental; perdas estas causadas, em grande medida, pela progressiva e violenta recusa do passado que se constata desde o porvir da modernidade - cujo marco histórico encontra-se, a princípio, nos movimentos revolucionários que varreram o território francês, culminando com a queda da Bastilha, em 1789.

b) Para entender o nosso tempo e, além disso, para desafiar os discursos predominantes no contemporâneo, construídos com base no culto ritualístico do futuro e na fragmentação da existência humana, características, aliás, fundamentais do mundo hodierno. Nesse caso, pensamos que somente a forma poética possui a propriedade de liberar a linguagem, redescobrindo, com isso, a figura do mundo na dispersão dos fragmentos.

De outra parte, como se define a modernidade na tradição mais recente do pensamento filosófico ocidental?

Percorrendo a extensa literatura filosófica voltada para o referido tema, constatamos que qualquer tentativa de apreendê-la em definitivo sempre se revelou tarefa sedutora, porém enganadora, pois, como já assinalamos anteriormente, as tentativas levadas a cabo para se conceituar esta “sereia industrial” tendem geralmente a desmancharem-se em ambigüidades e polissemias, como por exemplo: a modernidade já foi relacionada com os avanços da ciência, da técnica e até mesmo com a sucessão dos processos revolucionários; daí podermos até mesmo falar em modernidades, dado à maneira plural dessa fase histórica, sobretudo do mundo ocidental, se nos apresentar. É freqüente a corrente de pensamento marxista defini-la pela abstração, isto é, pelo princípio econômico; trata-se, na verdade, de uma tendência teórica reducionista, pois, definindo a modernidade pelo primado do econômico, é comum identificar a modernidade diretamente com o capitalismo.

Contudo, de certos pontos de vista, a história pode ignorar a linha reta, cronológica, o “continuum”, pois, uma vez calcados na linha teórica da historiografia benjaminiana, a idéia de progresso histórico linear, legitimadora da idéia de progresso na história, mais do que a pretensa realização da razão na história (Hegel, 1995), apresenta-se, nas palavras de Walter Benjamin, como a força geradora da infernalidade do presente, isto é, da modernidade; ou também como algo destruidor da própria razão, na constatação de Adorno e Horkheimer (1986). São por tais motivos, aliás, que o Esclarecimento veio a revelar-se totalitário: esta é a tese frankfurtiana que interpreta a modernidade enquanto acúmulo de esperanças frustradas. Nesse caso, o conceito de Iluminismo é pensado como negatividade. Na obra “Dialética do Esclarecimento”, Adorno e Horkheimer identificam na “Odisséia”, de Homero, os germens da cultura contemporânea por meio de uma análise que interpenetra Mito e Esclarecimento. Contudo, persistindo na questão encetada no presente texto, perguntamos: O Iluminismo deu certo? A tecnologia é obra divina ou obra demoníaca? O mundo contemporâneo, como afinal se nos apresenta? Massificação, padronização, informatização, saturação, paisagens urbanas das metrópoles modernas superpovoadas e cheias de máquinas, de ruínas, e o humano, com efeito, se estandartiza. Trata-se, na verdade, de um processo que leva a perda do essencial nas pessoas e nas coisas. Em toda a superfície do planeta surgem poderosos movimentos de aceleração e de excesso. O desenvolvimento sem precedentes - na história da humanidade - da tecnologia nos dá a nítida impressão de que o tempo ou a história na nossa modernidade se acelera (Augé, 1997). Por meio do alheamento e da ausência de releitura ou de reinterpretação ou de atualização do quadro de valores (sobretudo direitos e deveres) gerado pela nossa tradição cultural - tecido no interior de um longo desenrolar histórico -, o indivíduo contemporâneo, na nossa modernidade, transita mergulhado em meio a uma sociedade da produção em série e do consumo de massas.

Com bem enfatiza Hannah Arendt (1979), desde o advento da ciência moderna ou da supremacia do Eu, que tudo pode conhecer (“Penso, logo existo!” /Descartes), a noção de teoria deixou de significar um sistema de verdades, tornando, desse modo, a teoria científica em hipótese de trabalho. Assim, o agir instrumental passou a exercer forte hegemonia sobre o conjunto da sociedade moderna (Weber, 1982), abalando, definitivamente, os alicerces que asseguravam os comportamentos baseados em normas não instrumentais. Tal tipo de racionalização a estabelecer que a razão instrumental tudo pode (sem limites e reservas!) foi a responsável pela dissolução da “paidéia ocidental”. O desregrado culto da razão instrumental, desafortunadamente, tornou-se o único meio perfeito de pensar (Adorno e Horkheimer, 1986).

Estas são algumas das perspectivas teóricas comprometidas em analisar aquilo que é mais característico e crítico no quadro da nossa modernidade, e que ainda a define num outro aspecto, isto é, mediante a luta que se verifica entre história e modernidade, em que a modernidade busca suspender a história continuamente. É nesse ponto que os textos do passado (os clássicos) devem comparecer para nos oferecer novas perspectivas. Como ressalta o poeta e crítico literário Octávio Paz (1996), “desenvolvimento, progresso, modernidade (...) Entre todas as maneiras de ler os grandes livros do passado há uma que prefiro: a que busca, neles, não o que somos, mas justamente aquilo que nega o que somos”.

De outra parte, tendo como fio condutor a dupla concepção de Walter Benjamin concernente à modernidade, em primeiro lugar, ela se revela hostil ao homem, pois, consoante a reflexão benjaminiana, a modernidade realizada pelo capitalismo, cuja técnica que lhe é adscrita, é instrumento de opressão, visto que deixa intactos os mitos modernos, não os questionando, como por exemplo: os mitos modernos do progresso, da ciência, do consumismo etc., esvaziando, dessa maneira, os potenciais utópicos da tradição, além de impedir o caminho para a emancipação humana, na medida em que contempla a vida inteira da humanidade como um processo de realização infinito, e não como um simples processo do mero devir.

Em segundo lugar, do ponto de vista do filósofo Benjamin, a tradição é totalidade, mas é, também, uma incessante destotalização da história triunfante. Nesse sentido, a tradição deve ser entendida, também, como uma força desconstrutiva no seio das ideologias hegemônicas das historiografias. Assim, a obra poética serve, sobretudo, para construir uma temporalidade que supere o real ou que supere a história, concebida como idéia de progresso e regulada pela razão triunfante. Trata-se do imaginário poético a promover a síntese entre o sonho e a vigília por meio da obra poética, apresentando-nos uma outra dimensão no interior do “sempre igual” ou da nossa modernidade.

Para Benjamin, a tarefa do historiador é libertar o passado de sua forma presente, desfigurado, mediante um ato do conhecimento, recolhendo no fluxo dos fenômenos aquilo que é fragmento, para libertar o objeto singular do fluxo e transformá-lo em mônada, salvando, assim, o objeto que, de outra forma, se perderia. Semelhante deve ser o nosso posicionamento diante das obras literárias, pois, nesse caso, assumimos, em grande medida, aquilo que Benjamin (na qualidade de crítico literário, foi estudioso das poéticas de Goethe, Proust, Brecht e outros) entendeu como a autêntica tarefa do crítico literário, isto é, aceitar a obra como fragmento, para fazer cintilar o seu conteúdo de verdade. Não sem razão, o materialista histórico (o historiador), na concepção de Benjamin, deve contemplar os bens culturais com distanciamento, pois, no processo de transmissão da cultura (tradição) as obras arrastadas no cortejo triunfal dos vencedores tendem a transformarem-se em documentos de barbárie (2). Nesse sentido, para poder ler os clássicos no contemporâneo, é preciso definir de onde eles estão sendo lidos, caso contrário, consoante Benjamin, tanto o livro quanto o leitor correm perigo.

NOTAS

1.Cf. BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de história”, in Obras Escolhidas I. Tradução Sérgio P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985, pp.222-234.

2.Referimo-nos à tese 7 do texto “Sobre o conceito de história”, de Walter Benjamin.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADORNO, Theodor, HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução Guido A. de Almeida. 2 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.

AUGÉ, Marc. Por uma antropologia dos mundos contemporâneos. Tradução Clarisse Meireles, Nereide Duarte. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.

ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Tradução Mauro W.B. de Almeida. 2 ed. São Paulo: Perspectiva, 1979.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução Sérgio P. Rouanet. In “Obras Escolhidas I”, v.1, São Paulo: Brasiliense, 1985.

BERMAN. Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Tradução Carlos F. Moisés, Ana M.L.Ioriatti. São Paulo: Cia. das Letras, 1988.

CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. Tradução Nilson Moulin. São Paulo: Cia. das Letras, 1993.

HEGEL, G.W.F. A razão na história: introdução à filosofia da história universal. Tradução Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1995.

KANT, Immanuel. A religião nos limites da simples razão. Tradução Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1992.

PAZ, Octávio. Signos em rotação. 3 ed. Tradução Sebastião U. Leite. São Paulo: Editora Perspectiva, 1996.

PESSOA, Fernando. Poemas de Álvaro de Campos. v. II. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda,1990.

VEYNE, Paul. Acreditavam os gregos em seus mitos: ensaio sobre a imaginação constituinte. Tradução Horácio González, Milton M. Nascimento. São Paulo: Brasiliense, 1984.

WEBER, Max. Ensaios de sociologia. 5 ed. Tradução Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1982.

PROF. DR. SÍLVIO MEDEIROS

Doutor em História e Filosofia da Educação pela UNICAMP.

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