Um estranho amor.

Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia, Não há nada mais simples.

Tem só duas datas - a da minha nascença e a da minha morte.

Entre uma e outra todos os dias são meus.

 

         Ele nasceu sob o signo de gêmeos, mas isso não explica a complexidade de sua personalidade e a necessidade que teve durante toda a sua vida de se duplicar em vários. Nem explica a aridez de sua vida sentimental. Nascido em 1888, só em 1920 acontece sua única paixão: Ophélia  Queiroz, a Ophelinha, como a chamava, e sabemos disso pela correspondência amorosa trocada entre os dois. Tinha na ocasião 32 anos, ela 19 ou 20. Conheceu-a em um escritório comercial que frequentava por ser amigo do dono.Ele era um representante comercial free lancer, porque não gostava muito de trabalhar.Sua obra literária era sua obsessão.Ela ia em busca de emprego. Isso aconteceu em fevereiro. Ela percebeu de cara, o interesse dele.Mulheres costumam perceber isso, mesmo as de pouca idade. Em março ele escreve-lhe a primeira carta, uma resposta. É a oficialização do namoro,já que a cortejava desde que a vira. Um dia, encontrando-se com ela no local de trabalho, na hora da saída, , sem dizer palavra,   agarrou-a pela cintura e a beijou loucamente, com paixão.Como um louco. Foi ela quem disse. Mas ele  confirmou.. Vejam o ridículo poema que escreveu:

Fiquei louco, fiquei tonto,

Meus beijos foram sem conto,

Apertei-a contra mim,

Enlacei-a nos meus braços,

Embriaguei-me de abraços,

Fiquei louco e foi assim.

 

Dá-me beijos, dá-me tantos

Que enleado em teus encantos,

Preso nos abraços teus,

Eu não sinta a própria vida

Nem minha alma, ave perdida

No azul-amor dos teus céus.

 

Boquinha dos meus amores,

Lindinha como as flores,

Minha boneca que tem

Bracinhos para enlaçar-me

E tantos beijos p’ra dar-me

Quantos eu lhe dou também.

 

Botão de rosa menina,

Carinhosa, pequenina,

Corpinho de tentação,

Vem morar na minha vida,

Dá em ti terna guarida

Ao meu pobre coração.

 

Não descanso, não projecto,

Nada certo e sempre inquieto

Quando te não vejo, amor,

Por te beijar e não beijo,

Por não me encher o desejo

Mesmo o meu beijo maior.

 

Ai que ternura, que fogo,

Se estou perto d’ela é logo

Uma névoa em meu olhar,

Uma nuvem em minha alma,

Perdida de toda a calma,

E eu sem a poder achar.

 

      Foi um período em que pôde constatar que era capaz de amar alguém, sair de si mesmo. Terno, carinhoso e ciumento , enchia-a de presentes. Chamava-a de bebê,Bebezinho, por causa da diferença de idades. Mas foi um período curto.Em outubro fica tão ruim da cabeça, que lhe passa pela mesma a idéia de internar-se. No final de novembro, com uma carta pra lá de esquisita, põe fim ao que seria a primeira fase do namoro. Era  a última carta desse período que Álvaro Campos chamou de ridículas.( Todas as cartas de amor são /ridículas/não seriam cartas de amor/ se não fossem /ridículas) Inclusive, algumas vezes, mandava o Álvaro se encontrar com Ophélia, o que a deixava bastante confusa. Álvaro não aprovava o romance.Apesar dessas doidices foi um período de simplicidade e ternura e parece que o amor dele era sincero, Mas vai lá se saber a causa, ele não acreditava nela.( “Seu amor por mim, é tão grande quanto esta árvore”- “Mas que árvore, não estou vendo árvore nenhuma” “Por isso mesmo”, concluiu ele). O fim do romance, segundo ele, era ditado pelo reconhecimento de que era necessário que seguisse determinadas leis de misteriosos mestres. Sua vida seria isso, o cumprimento dessas leis, o ocultismo em que acreditava vencendo o amor, ou o medo do amor assumido ocupando todos os espaços de seu coração.Tinha até pensado em se casarem, a correspondência do período revela esse desejo, implicitamente.No entanto ele preferiu voltar a sua solidão, povoada fantasmas.
            O círculo de amizade dele era muito pequeno. Preferia criar seus próprios amigos e vivia com eles sem nunca saber realmente qual era o seu próprio eu. Criou-os desde menino.Alvaro de Campos, Alberto Caieiro, Ricardo Reis, Bernardo Soares. Os seus heterônimos. Todos tinham uma biografia completa, com dados, datas  de nascimento e morte. Menos Ricardo Reis, da qual se desconhece a data em que morreu. Ophélia também criou-lhe um heterônomo: Ferdinand Personne. Personne/ninguém. Para designar quem era tantos e nunca soube quem realmente era.

  .Em setembro de 1929, Fernando Pessoa, pois é dele que estamos falando, o Fernandinho da Ophelinha, oferece a Carlos Queiroz, seu amigo e sobrinho de Ophélia, uma foto sua bebendo vinho no Abel. O sobrinho mostra a tia a tal foto e ela acha graça. Pede uma cópia e a recebe com a seguinte dedicatória: Fernando Pessoa em fragante delitro. É isso mesmo, delitro, não é erro de meus dedos cansados. O amor entre os dois entra novamente em ebulição. A primeira carta dessa nova fase, também é uma resposta. Ophélia, espertinha, agradecera a foto com uma carta. Mas foi uma fase diferente. Na correspondência, ele se mostrava agressivo, alucinatório,revelando toda a sua perturbação mental. Ophélia deixa algums cartas sem resposta, mas em março de 1931, ela se decide: escreve a última carta, pondo fim ao breve romance.Em 1935  ele morre. Bloqueio intestinal. Uma causa muito pouca poética. Tinha 47 anos. Três anos depois ela se casa com outro e viveu até 1991. Foi assim que aconteceu a história desse grande e estranho amor,mas que por ser tão estranho não se concretizou e por isso não se acabou.

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