PARECE UM ENTERRO
"Carpe Diem" quer dizer "colha o dia". Colha o dia como se fosse um fruto maduro que amanhã estará podre. A vida não pode ser economizada para amanhã. Acontece sempre no presente.
Rubem Alves
Esperando encontrar no ininterrupto caudal de automóveis uma brecha que me permitisse ir ao trabalho num dos horários de pico do tumultuado, mal educado, agressivo e desordenado trânsito da nossa cidade, resmunguei comigo mesmo : parece um enterro.
Pensei que o comentário silencioso tivesse vindo subconscientemente à minha memória por eu haver lido, no jornal da manhã, que em São Paulo está sendo realizada a FUNEXPO , o maior evento do setor funerário da América Latina. São mais de 60 expositores, cerca de 6 mil visitantes e mais de 4 milhões de reais em negócios : a morte agora é só mais um negócio.
Descobri que existe até uma funerarianet que oferece kit de reconstituição facial, dentre outros fúnebres produtos, e curso de Tanatopraxia — uma técnica que permite que o corpo se conserve preservado por mais tempo, possibilitando um velório tranqüilo — aliado a técnicas como a Necromaquiagem e a Reconstituição Facial, que imprimem uma aparência natural ao corpo. Tudo isso conforta a família e amigos e garante que os mortos já não são tão amedrontadores como antigamente.
Quem, acima dos 50 anos, não se lembra das inúmeras procissões funerárias que, diariamente, cortavam a cidade, rumo ao cemitério da Saudade?
Eram longas séries de carros — quanto mais poderoso o defunto , maior era a quantidade e a exuberância dos automóveis — que vagarosamente percorriam, preferencialmente pelas avenidas, provocando pequenos congestionamentos nas ruas transversais, formados por motoristas que , sem partirem para desrespeitoso buzinaço, viam passar o féretro, benzendo-se com o sinal da cruz, em sinal de respeito ao falecido.
Dentro do carro funerário, seguia o ataúde coberto de coroas de flores enviadas pelos amigos e conhecidos da família que, assim, expressavam seus pesares pelo lamentável passamento.
O desfile funerário partia sempre da casa do morto, onde ele havia sido velado durante toda a noite, em geral, na melhor sala da casa, acompanhado sempre por um grande número de pessoas que, por morarem nas redondezas , não arredavam pé do local , contando os familiares sempre com a boa vontade e atenção de parentes , amigos e vizinhos: não existiam os velórios ao lado dos cemitérios. É importante lembrar que teve até um tempo em que, pela ornamentação da casa, podia-se saber se o morto era casado — pendurava-se na porta da rua uma cortina de pano preto e dourado — , solteiro — idem com as cores lilás e preto — ou criança — idem com panos brancos, azuis ou dourados . Era um tempo, pasmem, em que as viúvas vestiam-se de luto às vezes até por 12 meses e ainda existia sempre aquela amigona da família, a boa cozinheira que fazia a canja pós-velório, para aquecer os estômagos de luto.
Foi-se o tempo em que no Dia de Finados não se podia ouvir música e os bailes eram proibidos.
Hoje, os mortos nem entram mais em casa, ninguém guarda luto algum, Finados não passa de mais um feriado dentre tantos outros, e a ausência dos carros funerários percorrendo a cidade, todos os dias, não nos faz mais lembrar que somos mortais: não temos mais tempo para pensar na morte e refletir sobre ela, porque gastamos parte de nosso precioso tempo em trânsito pela vida, engarrafados por todos os tipos de problemas, e sem perceber o dia do nosso enterro chegar: talvez, por isso, não carpediemos.