Tia Romilda: a mulher que acolheu mais de 100 filhos

Há pessoas que se destacam sendo médicos, cientistas, jogadores de futebol e artistas. Elas conseguem ir além das obrigações e deixam seus nomes gravados na calçada da fama. Tornam-se celebridades e ganham reconhecimento e fortuna por seus feitos.

Poucas pessoas no mundo se destacam simplesmente por serem mães. Uma dessas poucas, que surgem de tempos em tempos, mora em Goianésia e foi batizada como Romilda Rosa Mota. Mas ficou conhecida como Tia Romilda, a mulher que dedicou sua vida a ser mãe dos filhos abandonados por suas mães biológicas. Não recebeu medalhas nem dinheiro. Mudou o destino de muitas vidas e recebeu de cada filho amor, reconhecimento e gratidão. No mundo de Tia Romilda, essas são moedas mais valiosas que fama, riqueza e glamour.

Com 81 anos de idade, Tia Romilda atravessa um momento dramático, lutando pela vida numa UTI da cidade, com complicações no fígado. Dias atrás, recebeu a reportagem do Portal Goiás Total em sua casa, rodeada por filhos e netos, deitada numa cama. Corpo fraco, voz sumida, olhar triste. Mas rodeada de afeto e de dignidade.

MISSÃO DE ACOLHER O PRÓXIMO

Mulher, pobre, negra, de corpo miúda e amor ao próximo gigante, Tia Romilda deu à luz cinco filhos. Até aí é o roteiro comum de uma mãe de sua época. O extraordinário foi ela ter sido mãe de mais de cem filhos. “Perdi a conta, para falar a verdade”, diz ela. A filha biológica Elza garante que passou de cem crianças adotadas ao longo de quatro décadas.

A casa da rua 37, nº 449, Setor Sul, ficou conhecida nos anos 1980, 90 e no começo deste século como Lar da Tia Romilda. Funcionou como um orfanato improvisado e não oficial ao longo dos anos, acolhendo crianças que eram abandonadas por suas famílias. Mas não era um orfanato, era um lar, porque lá as crianças tinham uma mãe.

Os primeiros, Raquel, Samuel, Daniel e Salma chegaram quase ao mesmo tempo, ainda com as cicatrizes do cordão umbilical. Todos com histórias de abandono. Todos encontraram um lar. Mais que isso: encontraram uma mãe que os amava, que fez também o trabalho de pai.

Daniel foi adotado com dois dias de vida. Raquel, com poucos dias de nascida. Samuel, a mãe biológica sumiu e o deixou com uma vizinha – que já tinha oito filhos. Tia Romilda o acolheu.

E assim foram nascendo histórias. Pais que foram comprar cigarros e nunca voltaram. Mães que sumiram no mundo. O que a sociedade não queria, Tia Romilda acolhia. Teve criança que foi salva da morte, com pai prestes a jogá-la numa cisterna, como se lixo fosse. Mas ao invés do fundo do poço, conheceu o céu, traduzido em abraço de mãe, em aconchego de um lar. Ganhou mãe e irmãos. Muitos deles.

A casa da Tia Romilda era como coração de mãe, sempre cabia mais um. Já chegou a ter mais de 30 crianças e adolescentes. Mais de trinta bocas para alimentar. O salário de merendeira em escola não dava para tanto. E Tia Romilda nunca teve dom para pedir. Mas sempre chegavam doações. De todos os lados. Pessoas que viam a sua luta, viam a sua missão e queriam fazer parte de algo grandioso.

EDUCAÇÃO E VALORES FAMILIARES

Tia Romilda não abria mão de duas coisas na educação dos meninos e meninas: escola e igreja. Fazia questão e sacrifícios para que todos pudessem estudar. E todos estudaram. Fazia questão também de transmitir valores e ensinamentos, os levando à Igreja Presbiteriana Central, que sempre frequentou.

Com seu jeito simples e a ajuda dos filhos biológicos, nunca deixou faltar nada para os filhos do coração: pão na mesa, lençol na cama, um teto sobre a cabeça e ensinamentos para a vida. Ensinou o valor do trabalho, de ajudar o próximo em suas tarefas.

ADMIRADA POR SEU SACERDÓCIO

“Quando ia lá e às vezes ajudava a organizar uma festinha de aniversário ou de natal, notava a Tia Romilda com aquela alegria toda, com um sorriso no rosto e as crianças todas comportadas. Isso deixava a gente renovada”, afirma a farmacêutica Rosa Steckelberg, que acompanhou de perto toda essa saga.

Muita gente boa se associou a ela na luta, doando cestas, brinquedos, cadernos e afetos. “Tia Romilda é uma guerreira, nunca reclamou, não pedia nada e construiu um legado que serve de inspiração para todos nós, para sermos pessoas melhores. Suas crianças hoje são pais e mães de famílias, de valor, pessoas do bem. Não há dinheiro que pague isso”, afirmou o empresário Carlos Gomes de Passos, amigo dela de longa data.

O diretor da Faculdade Evangélica de Goianésia (Faceg), José Mateus dos Santos também fez questão de deixar sua homenagem. “Tia Romilda é uma lutadora, de grande coração. Sua história sempre foi dedicada a abraçar e acolher pessoas, dando-lhes cidadania através de um lar”, disse.

QUANDO O ESTADO APARECE

A missão que Tia Romilda fazia, abrindo sua casa e acolhendo crianças – às vezes bebês – que a sociedade jogava fora teve sempre o apoio de muita gente. Não era um trabalho, era um sacerdócio. Ajudava mais pessoas, construía mais futuros que órgãos públicos, com seus funcionários pagos, seus recursos pomposos e sua burocracia sufocante.

Ela fazia, sem ter obrigação, a função que o Estado tinha a obrigação de fazer – e não fazia. E não faz. Mas o Estado cismou de entrar na história. Há uns 15 anos, de acordo com as contas dela, surgiram denúncias de que as crianças acolhidas sofriam maus tratos e coisas do tipo. Ilação que as próprias crianças, hoje pessoas adultas, sempre negaram.

Resultado: num belo dia aparece um carro oficial, com juiz, polícia, cumprindo um ritual de filme de terror. Gritando alto, deu ordem para ir recolhendo os meninos, sob o choro da mãe. Ela não teve direito a voz de protesto. Assustados, os meninos foram levados para a Casa de Passagem, um órgão da prefeitura, para acolher crianças vítimas de maus tratos familiares.

Tia Romilda conta que foi ao Fórum falar com o juiz mas não teve direito a audiência. Não teve sua voz de mulher simples e pobre ouvida. Não lhe foi permitido sequer ver seus filhos na casa de passagem. Ana Lúcia, na época, com 17 anos, revela que foi grande o sofrimento para todos. Ela lembra que a mãe só conseguiu vê-los à distância, por uma fresta.

Foi tratada pela Justiça como uma criminosa. Com seu jeito simples, de pouco estudo e recursos, Tia Romilda não conseguiu legalmente adotar a todos. Não recebeu ajuda da Justiça para fazer do jeito que a lei mandava. Não foi a mãe que colocou os filhos no mundo, mas foi a mãe que os recolheu e aconchegou. Seu crime foi ter dado um lar para quem não teve amparo algum do Estado para ter um lar. Para quem a sociedade abortou.

A explicação foi que os tempos modernos não mais admitiriam ações como a dela, sem chancelas oficiais. Tempos estranhos que reconhecem a força do amor ao próximo como algo a ser sequer tolerado. É um tempo que, definitivamente, não é digno de ter uma pessoa como Tia Romilda.

O pagamento que o Estado lhe deu por sua missão foi recebido com mágoa e aquele tipo de dor que só a mãe que tem seus filhos arrancados sabe sentir. Mudou de Goianésia por um tempo. Foi para Palmas (TO). Um dia voltou. Para a mesma casa. E não teve Justiça no mundo capaz de arrancar de seu lado seus filhos adultos, com seus abraços de afeto e gratidão.

AS CRIANÇAS SE TORNARAM HOMENS E MULHERES DE BEM

Praticamente todos os filhos de Tia Romilda seguiram seu caminho na vida. Casaram, tiveram filhos – os netos dela. Um deles, Elias, é doutor. Não é doutor porque virou advogado ou médico, mas porque cursou um doutorado em biologia. Algo que se conta nos dedos quem tem o título em Goianésia. Samuel virou mecânico de motos. Samuel é músico e já tocou com Gusttavo Lima e Leonardo. Todos trabalham em alguma coisa digna, para orgulho da mãe.

No dia da reportagem, seu quarto estava cheio. Samuel, que hoje mora em Palmas, estava do lado. Assim como Elza, Raquel, Ana Lúcia e alguns netos.

“Faria tudo de novo se pudesse voltar no tempo”, diz ela, com sua voz já fraca. Mas sua voz ecoa forte, como uma força da natureza, como a voz de um desses santos de calendário.

* Reportagem publicada originalmente no Portal Goiás Total, em maio de 2020.

Anderson Alcântara
Enviado por Anderson Alcântara em 25/05/2020
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