O JUMENTO É NOSSO IRMÃO, IMAGINE SE NÃO FOSSE.

 

 

     Com as motos financiadas em até 72 meses, quase não existem mais jegues no sertão nordestino.

    Depois de 400 anos contribuindo para o desenvolvimento do nordeste, o jegue foi considerado inútil, imprestável, risível e, porque não dizer, constrangedor para o sertanejo desenvolvido, atualizado, com acesso a luz elétrica, água de carro-pipa, gás engarrafado, (abolindo a lenha), antenado na parabólica e montado na sua Yamaha de 100 cilindradas. Hoje ele prefere cavalgar o bolsa familia.
     O Sertanejo, deslumbrado com as facilidades de consumo, relegou ao esquecimento o fiel parceiro e explorado servidor que ja fez parte da família, muitos deles batizados com nomes excêntricos: "Ventania", "Terremoto", "Donzelo", "Seus Caprichos", nomes esquisitos, mas ainda assim nomes. O jumento tinha sua identidade própria.
     Utilizado desde os tempos pré-históricos como animal de carga, os ancestrais selvangens dos asnos foram domesticados por volta de 5.000 a.C.
     O patriarca Abraão atravessou terrenos montanhosos em um jumento quando estava indo para o Monte Moriá. Jesus montou muitas vezes no jumento: no ventre de Maria para ir à Belém, nos braços de Maria durante a fuga para o Egito e quando entrou triunfalmente em Jerusalém.
     Afirmam alguns historiadores que em hebraico a palavra jumento, (" hamor"), vem de uma raiz que evoca a matéria. Por isso, montar num jumento significa  simbolicamente dominar a dependência da matéria. Assim, o jumento, por oposição, simboliza aquele que não procura o poder nem os bens materiais.
     Nas secas no nordeste brasileiro, o jegue foi o protagonista de maior importância para a sobrevivência do sertanejo, carregando água em ancoretas que, presas aos pares nos cabeçotes da cangalha, fizeram do animal, o jegue-pipa dos sertões. Sem essa indispensável fonte de vida transportada em lombo de jegue por trilhas estreitas, caminhos pedregosos, ladeiras íngremes, muitas delas intransitáveis, em viagens ininterruptas de 1 hora, de 5 a 6 vezes ao dia, o sertanejo não resistiria à famigerada seca. Muitos desses animais fatigados, estropiados, ânus chagados pelas rabicholas e dorsos esfolados pelo atrito da cangalha durante  extenuantes caminhadas, morreram de inaninação para saciar seus donos, que disputavam desesperados cada gota do escasso liquido para consumo proprio e da família ou para comércio nos arredores como fonte de renda.
     O asinino não foi apenas um  transpositor de águas na vida do sertanejo, de mútiplas utilidades, arando a terra, carregando feixes de lenhas e mantimentos. Em momentos críticos de saúde, quando desnutrido ou vitimado pela coqueluche ( tosse braba), o sertanejo se valeu do leite da jumenta, conhecido pela divulgação boca a boca como milagroso por suas propriedades medicinais, insispensável na convalescença do receiro. Por seu aporte vitamínico restabeleceu, curou crianças e idosos sertão a dentro. O leite de jumenta salvou vidas na nação nordestina.
     O cearense Padre Antonio Vieira, em sua boa fé religiosa, acreditando na gratidão do homem, buscou estabelecer uma "irmandade" entre o asinino e o bicho-homem, chegando editar o famoso livro  O Jumento é nosso irmão (1964), mostrando as qualidades e a importância do quadrúpede no dia a dia do sertanejo. O resultado foi frustrante, catastrófico! O  jegue, vítima da ingratidão foi jogado no poço do abandono e hoje é cedido por míseros trocados aos frigoríficos para abate e consumo na excêntrica gastronomia asiática.
     O jegue, nosso irmão, que tanto se escravizou para servir ao amo sertanejo, hoje está entregue à própria sorte. Quando da seleção, ele é sumariamente desclassificado, refugado pelo abatedouro, a carne sem serventia, por não atender às exigências do exportador para com a degustação do predador, "come tudo",  o ilustre asiático. O jegue é descartado, esquecido, impiedosamente largado nas margens das rodovias, chagado, faminto, cego, para morrer atropelado ou de inaninação.
     A título de reconhecimento, gratidão e respeito, o sertanejo deveria ter dado ao irmão jumento um recanto para findar seus dias com dignidade, um santuário, uma reserva ecólogica, somente dele, para ser cuidado, reverenciado, eternamente agradecido pelos serviços prestados, uma espécie de "aposentadoria", em razão de estar ultrapassado ou de sua inutilidade pelo desenvolvimento social. Seria o mínimo que o sertanejo poderia fazer por quem tanto se doou sem pedir nada em troca. Não custaria, absolutamente nada ao bolso do sertanejo, hoje em dia bem de vida, com um outro status social, com a moto estacionada, amarrada, na sombra, usufruindo de vários incentivos governamentais, através de inúmeras "bolsas sociais" (bolsa escola, bolsa roça, bolsa sexo..), adotar como animal de estimação o velho parceiro, o grande amigo, o irmão que tanto o serviu quando mais ele precisou.
     O jumento foi ingênuo em acreditar piamente na parceria, lealdade e irmandade do ser humano. O homem, orgulhoso, vaidoso e egoísta por natureza, desconhece a gratidão, ele não precisa de irmãos, não precisa de Deus e muito menos de amigos. Tendo um irmão com essas qualidades do bicho-homem,, nem precisamos de inimigos.

SP 25/03/2018
Autor: Benedito Morais de Carvalho (Benê)