MESQUITA: O HOMEM E O RIO

“Ó Espírito do Oeste, que estejamos preparados para a longa jornada”

Oração Sioux

Os Sioux — índios norte-americanos que formavam uma confederação de tribos nas regiões de planície dos Estados Unidos — não tinham medo da morte e nem sentiam mal-estar quanto aos mortos. Muitas vezes parentes e amigos iam sentar-se no cemitério, como teriam ido sentar-se à lareira do falecido.

Recentemente perdi um amigo regateiro, mas, sempre que eu me aproximar do seu cantinho preferido , às margens do Rio Pardo, vou perceber sua presença. A presença de Zoroastro Mesquita.

Nos últimos tempos, eu podia sentir que, em suas veias, corria um misto de águas do Pardo e cerveja.

Imóvel, encurvado, esfregava as mãos impacientes e, às vezes, as repousava, por rápidos segundos sobre os joelhos.

O olhar, sob o boné, e sobre o rio, só era desviado por um longo gole no copo de cerveja.

Nem a tragada no cigarro interrompia a vigília daquele pescador que vivia momentos de transe, periodicamente rompidos por puxões violentos e repentinos do molinete, num ritual misto de esperança e ânsia de alcançar um grande peixe : o velho e o rio.

Já não vociferava mais como nos velhos tempos, voz de trovão, quando algo ou alguém o aborrecia: deixava correr os últimos dias de vida com a mesma tranqüilidade do rio.

Com a mesma paciência, repousava, aos seus pés, um gato, também à espera, mas do lambari, ou do pedaço de queijo: o bichano parecia esperar por algo mais que, mesmo que viesse, não seria suficiente para afastá-lo daquela beira do Pardo.

No céu muçulmano, existem virgens, vinhos, frutas, perfumes, mas nas esferas superiores, sempre aguardou por nosso caro amigo Zoroastro — nome que ele achava estranho, dado a ele por seus pais, que talvez desconhecessem que , como ele, Zaratustra ( outra denominação de Zoroastro) também amava os animais e a natureza — com certeza, um rio, um rio sempre o esperou nas esferas superiores: penso eu que o céu, para ele, só pode estar sendo um verdadeiro céu se houver por lá uma beira de rio e um copo de cerveja: e basta.

Todos sabemos que as águas calmas e lentas do rio simbolizam o desejo de morte porque as águas mansas funcionam como um convite à morte — para Heráclito , a morte era a própria água. O rio, como escoamento das águas , é símbolo de fertilidade, mas também de morte e renovação.

Por isso creio que Zoroastro não morreu: mergulhou no grande rio em cujas margens viu passar sua própria vida.

ANTÔNIO CARLOS TÓRTORO

Tórtoro
Enviado por Tórtoro em 09/08/2007
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