MEU TIO OCTÁVIO
Toda morte leva-nos a um balanço: um balanço da vida.
Alguns nomes de pessoas que passaram pela nossa vida têm gosto de fel, cores sombrias, cheiro de enxofre.
Tio Octávio não. Tio Octávio, nas minhas lembranças de criança, me traz na boca um gosto de bala de goma, de bombom, traz imagem de álbuns e figurinhas, compradas na esquina da Única. Faz-me relembrar uma certa figurinha carimbada do Pelé, que, de repente, como por milagre, surgiu de um pacotinho já aberto que Tio Octávio me passou às mãos, em uma manhã de domingo: e ele foi logo entrando na agência São Paulo para trocar a página preenchida por uma imensa, fantástica e inesquecível primeira bola de futebol, de verdade, da minha vida. Era de capotão. Tratei dela por longo tempo com grande carinho, passando sebo nas suas costuras a cada partida disputada na rua Olavo Bilac, ainda sem asfalto.
Tio Octávio tem gosto de gelatina, aquela gelatina de morango, bem vermelha, que enchia meus olhos de criança não acostumada com tal guloseima — tendo em vista que meus pais não tinham geladeira elétrica em casa — quando ia com minha Tia Juraci, primeira esposa do meu Tio Octávio, deliciar-me numa mesa farta e delicadamente ornamentada, onde era servido esse manjar dos deuses.
Meu Tio Octávio lembra-me som de risada chacoalhada: ele ria com o corpo todo quando estava feliz. Infelizmente, a lembrança das suas gargalhadas sempre é entrecortada pelo soluço que eu ouvi, numa certa manhã, ainda na cama, no corredor externo de minha casa, quando ele procurou por meus pais, desesperado, ao ser abandonado pela primeira esposa: seus dias de homem solteiro, em que ele morou conosco por alguns dias, foram ótimos para mim: tive um amigão que me levava para lá e para cá, me fez sentir importante, comprou-me, imaginem , uma boina de presente, num dos nossos passeios pelas lojas do centro: eu tinha uns sete anos.
Meu Tio Octávio lembra-me bichos, muitos bichos, os vinte e cinco de um jogo que ele adorava jogar, eterna criança que, para mim, sempre foi e será.
Quando vejo um touro furioso, não quero me lembrar do ataque que ele sofreu , numa rua da cidade, de um boi desgarrado de uma das muitas boiadas que cortavam as ruas poeirentas e vermelhas de Ribeirão. No tempo de jabuticaba, não quero me lembrar da sua infância pobre — criado pelo meu pai, Cláudio, seu irmão mais velho, e pela minha avó, Ida , numa casa ao lado de uma plantação de jabuticabeiras — com problemas de quase paralisia, tratada com massagens de pó de talco. Nas festas do Bom Jesus da Lapa , não quero me lembrar da nova namorada que ele arrumou e com a qual viveu a maior parte de seus anos de vida, minha Tia Terezinha: na época, esse namoro representou para mim a perda de um irmão momentâneo, mais velho, que eu nunca tinha tido.
Finalizo esse texto, na manhã de um dia dedicado nacionalmente à Nossa Senhora Aparecida — cuja imagem foi encontrada num rio, por pescadores — e tendo em minhas mãos um jornal com uma nota de falecimento de alguém cuja vida , para mim, no meu tempo de criança, foi um rio, do qual pude beber um pouco de suas águas: Octávio Tórtoro, 15/3/1929 / 11/10/2005, faleceu em Ribeirão Preto, aos 76 anos de idade. Foi sepultado no cemitério Bom Pastor, saindo o féretro do Velório Novo Mundo.