A ADMIRÁVEL POETA DE 87 ANOS
Com 87 anos de uma história rica em alegrias e sofrimentos, a aposentada Marcélia Fernandes de Oliveira, morada do bairro Nova Aurora, em Goianésia, é um exemplo de pessoa que veio ao mundo e não perdeu a viagem. Sempre foi protagonista de sua existência, sabendo o momento certo de romper com o que considerava desnecessário e, principalmente, tendo coragem para desvendar novos caminhos.
Entre seus tantos talentos está o de escrever poesias. Guarda em cadernos simples desses de colegiais verdadeiros tesouros literários. “Quando me sinto triste, escrevo para disfarçar, para tirar a cabeça da rotina. Escrevo para esquecer as coisas ruins da vida”, disse, mas sem qualquer mágoa ou rancor.
Marcélia conta que tem o hábito de registrar seus sentimentos em versos desde que era uma mocinha. “Mas nunca pensei em algo maior como publicar um livro ou algo assim. Sempre escrevi mais para mim, para passar o tempo”, explica. Ela admite, no entanto, que ver seus escritos em um livro seria uma grande alegria. “É algo que nem consigo sonhar ainda, mas me deixaria muito contente”.
Nascida em Cavalcante, no Nordeste Goiano, descendente do povo Kalunga, Marcélia sempre foi uma guerreira. Conta que fugia de casa para ir à escola, já que a mãe era contra. Aos 11 anos assistiu a separação dos pais. Foi morar com estranhos para ter a chance de estudar. Não estudou muito. Concluiu apenas a 4ª série do Ensino Fundamental, mesmo assim dividindo as atenções com os trabalhos da roça.
“Minha vida nunca foi um mar de rosas. Sempre foi um campo de batalha”, filosofa. “Daria uma longa novela, cheia de reviravoltas”.
Vida dura
Bem nova, se casou com um homem de quem não gostava, em Cavalcante. O matrimônio durou menos de um ano e deixou duas marcas profundas e eternas em Marcélia: foi esfaqueada pelo marido duas vezes. Saiu de casa e nunca mais voltou. Recuperada, rumou para uma fazenda no município de Jaraguá, onde trabalhou como cozinheira e caseira.
Em outra fazenda, já no município de Itaguaru, cumpriu algo que considera uma missão: alfabetizou os filhos dos trabalhadores. “Montamos uma sala de aula improvisada, uma cabana e reunimos os meninos lá para aprenderem. Mesmo com pouco estudo, eu conseguia transmitir conhecimento básico a eles. Pelo menos os ensinei a ler e a escrever”, gaba-se.
Pouco tempo depois, ensinou também os jovens e adultos. O prefeito vendo seu esforço passou a remunerá-la para a tarefa. “O maior salário que recebi, no entanto, foi ver a satisfação daqueles jovens sabendo ao menos assinar o nome e não passarem vergonha em ‘assinar com o dedo polegar’”, conta.
Marcélia se aventurou ainda a fazer partos. “Fiz um dez partos na minha vida. Na verdade, essas coisas não escolhemos. A necessidade nos qualifica para tal”, explica.
Mãe de sete filhos e viúva do segundo marido, um garimpeiro maranhense, Marcélia viveu duas emoções envolvendo sua prole. A filha mais velha, Cícera, após o casamento, ficou 36 anos incomunicável, distante dos olhos da mãe. Há uns seis anos, ela calcula, se reencontraram. O milagre aconteceu graças a uma neta radialista, que usou a internet para localizar a tia, que mora no Mato Grosso.
A outra emoção não teve um desfecho feliz. Perdeu há alguns anos o filho caçula. “É uma dor que não consigo fazer calar dentro de mim nem disfarçar com palavras”, revela.
Lúcida, gosta de participar de reuniões sobre os problemas do bairro e da cidade, oferecendo sugestões e soluções para os problemas. Outra paixão é o bordado. “Inclusive, eu mesma faço os desenhos dos meus bordados, gosto de exercer a criatividade”, ressalta.
Sem reconhecimento por sua arte, esquecida em gavetas, sem troféus a iluminar duas prateleiras, Marcélia segue rompendo com sua vida simples, com a certeza de quem cumpre uma missão sagrada.
“Meu coração está doente
Minha alma está ferida
Sentindo a separação
De uma pessoa querida
Que foi embora para sempre
Habitar em outra vida”
Escreveu sobre o filho que morreu.