A CASA FORTE

A CASA FORTE.

A Casa Forte foi durante trinta e seis anos o nome da bodega de papai. Num tempo onde não havia supermercados, as mercearias dominavam o mercado entre as mais nobres famílias da região. Encontrava-se de tudo: Da manteiga Itacolomy a granel, ao querosene Jacaré, vendido para as mais diversas utilidades: De lustrar o piso de mosaico, a tirar o visgo de jaca das mãos. Nesta época, onde a palavra de um homem tinha mais valor que um cheque assinado, costumava-se comprar fiado tudo que era necessário na dispensa da casa.

Não havia durex ou sacolas plásticas, encontrava-se sobre o balcão de madeira, uma resma de papel grosso e rosado sustentado pelo peso da balança para o vento não levar. Dona Leia, vizinha de rua, professora elegante e bem educada, na boquinha da noite não tardava em levar os pães para alimentar sua família: “seu Gerson, bote 10 pães: dois criolo, dois doce de gelo, um doce de coco, quatro francês e um brote”, no singular mesmo. Era tudo embrulhado numa tira de papel na exata largura do pão, onde eram dispostos de forma piramidal, quatro pães em baixo, três em cima, mais dois, e no topo da pirâmide o pão doce de coco. Com movimento rápido e preciso, o papel era dobrado com o polegar e o indicador para fechar a embalagem, onde se deixava a amostra os bicos dos pães, era quase um origami, algumas vezes tinha que se rasgar o papel, devido à eficiência da dobradura.

Lembro-me bem, eu devia ter mais ou menos uns oito anos, o balcão em forma de “L” tinha três funções: Na parte inferior eram estocadas barras de sabão em pedra, que nesta época mediam mais ou menos uns 50 centímetros, maços de cigarro, e rolos de barbante para embalagens mais robustas. Na parte do meio, havia vidros na frente, onde eram expostos os pães de Zé Roberto, primo de papai, dono de uma padaria lá no Zé Pinheiro. E finalmente a parte superior servia de bancada de atendimento. Era forrada de formica imitando madeira, e abrigava algumas coisas: Uma bomboniere com doze potes de vidro com tampa de alumínio, a balança e uma meia dúzia de grades de ovos. Havia uma pequena fissura em forma de ‘barroca’ na formica que revestia o balcão, que servia de ‘pegadinha’ para divertir os clientes, era quase imperceptível, mas, dava para equilibrar um ovo apoiado na parte mais aguda dentro da barroquinha, era uma espécie de mágica, desafiávamos os fregueses a fazer o mesmo, escondendo o buraquinho com o braço, assim que retirava o ovo, era muito divertido, ninguém conseguia descobrir o truque.

Tinha muitas peculiaridades. Seu Zuzu, araque de polícia que morava na Pororoca, tomava cachaça Casa Grande com manteiga de latão pra tirar gosto; Finado Oziel do Valle, ourives conceituado que morava vizinho ao Hotel Marajó, era comunista convicto, falava com tanta propriedade que até lhe faltava o fôlego; Sr. Montenegro, além do Parkinson, tinha uma força descomunal, não perdia pra ninguém na queda de braço; Álvaro Gaudêncio, mandava ‘Gaúcho” seu fiel motorista, comprar seis carteiras de cigarro Charme pro seu consumo diário. Enfim, era uma verdadeira diversidade de personalidades.

Sobre uma prateleira de madeira empenada cravada na parede, falava alto um rádio valvulado Pioneer, que se precisava ligar às cinco da manhã, quando abria a bodega, para escutar o noticiário da cidade que começava as seis.

Na parte de dentro do balcão, havia três caixotes de madeira: açúcar, arroz e farinha, respectivamente, que eram vendidos fracionados a partir de 500 gramas em sacos de papel. Detalhe, meio quilo de farinha era colocado num saco de um quilo, devido ao grande volume e pouco peso. Do lado dos caixotes, tinha uma banquinha com gaveta onde se guardava o apurado e os ‘vales’ da freguesia anotada no verso das embalagens de março de cigarro. Em cima da banquinha, três talões de jogo do bicho: um rosa, um branco e um amarelo, um pra cada turno; Carteiras de Continental, Clássico, Advance, Arizona e Plaza, separados do plástico que as envolvia, para acondicionar a venda a retalho; Dois ou três “lápis tinta” para anotações, caixas de fósforo novas e usadas e alguns medicamentos: Cibalena, Cibazol e Anador, vendidas por unidade. Mais do lado, uma geladeira de madeira de seis portas com espelhos. O motor ficava em cima, aparente e barulhento, dava um choque da molesta, toda vez que ia abrir sem estar calçado apropriadamente, dávamos um pulinho para abrir o trinco que lembrava o da porta do Fusca, para não levar um choque.

O telefone preto de disco bem pesado, que ainda me lembro do número, 2089, ficava numa parte vazada da parede, onde ficava disponível para dois ambientes, quase toda a vizinhança dava nosso número para contato, já que nessa época telefone era coisa rara. Eu ficava puto, por ter que ir chamar dona Nair para atender telefonema do filho que morava em Manaus. Óleo no peso. O cliente trazia um copo, pesava na balança pra dar o desconto, e vendia-se 200 gramas do produto mais conhecido “Óleo Dondon”. Um tonel de 200 litros, com uma torneira adaptada na parte inferior, retalhava-se o querosene Jacaré, do lado havia um cestão com pacotes de Bombril. Quatro mesas de madeira e dezesseis tamboretes equipavam o salão, que ostentava um lindo piso de mosaico vermelho e cinza. Não fechava pro almoço nem pra janta, encerrava-se as atividade as 21:00 h, depois do jornal nacional. Em algumas vezes, chegavam os filhos de “Dada Targino”, Herbert ou Harrison, fora de hora, batendo na porta do beco lateral, para comprar cerveja no vale do pai.

Dona Nenzinha Cunha Lima, que morava na Solon De Lucena, levava o leite fresco das vaquinhas que criava, e vendia pra vizinhança. Marcus do Chevette, era totalmente do contra, discordava de todo mundo, uma figura. Wilson, filho de seu Saturnino, era apelidado de arrombado dos cavalos pelo próprio pai. Termutes e Dona Marié, eram intrigadas da nossa família, menos nas horas de comprar fiado. Seu José Maria, me chamava de “menina” por causa dos meus lindos cabelos compridos e lisos. Mazo, vizinho beriteiro e sem dinheiro, fazia seu ponto com quatro seriguelas na mão, a espera de outro que pagasse uma cana em troca do tira gosto. Ainda tinha “Caboco”, um velho índio que frequentava as redondezas e frequentemente fazia as refeições lá em casa, ele dizia assim: “Eu como de tudo Dona Marlene, até picado azedo”.

Por fim, sinto-me muito nostálgico contando como funcionava A CASA FORTE e suas peculiaridades, e é também uma forma de homenagear meus pais que ainda gozam de boa saúde, e foram os protagonistas desta saga. Devo dizer também, que depois do surgimento dos grandes supermercados como Bompreço, Serve Bem e outros, caiu-se em desuso a velha mercearia ou bodega, como se chamava na época. Mas ainda procuro as raras “vendinhas” que existem no centro de Campina pra comprar alguma coisa. Nossos filhos, dificilmente entenderão como funcionavam esses comércios sem um computador ou coisa parecida, só na base da confiança e no vale rabiscado num papel de embrulho.

Esta História ocorreu entre os anos 50 e final dos 80.

M. C. Meira. 04/07/2014.

MAERSON MEIRA
Enviado por MAERSON MEIRA em 04/07/2014
Reeditado em 04/07/2014
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