A dor - segundo Schopenhauer

Schopenhauer

A dor

Se quereis a certeza das diferenças entre o prazer e a dor, comparem a impressão do animal que devora outro, com a impressão do devorado.

ScHOPENHAUER

A VIDA É DÔR

Quem deseja, sofre; quem vive, deseja; a vida é dor.

Quanto mais elevado é o espírito do homem, mais sofre.

A vida não é mais do que uma luta pela existência com a certeza de sermos vencidos.

A vida é uma incessante e cruel caçada onde, às vezes como caçadores, outras como caça, disputamos em horrível carnificina os restos da prêsa.

A vida é uma história da dôr, que se resume assim: sem motivo queremos sofrer e lutar sempre, morrer logo, e assim consecutivamente durante séculos dos séculos, até que a Terra se desfaça.

DEUS, CRIADOR

Se é certo que um Deus fez êste mundo, não queria eu ser êsse Deus: as dores do mundo dilacerariam meu coração.

Se imaginássemos um demônio criador, ter-se-ia o direito de lhe censurar, mostrando-lhe a sua obra:

"Como te atreves a perturbar o sagrado repouso do nada, para criares este mundo de angústia e de dôres?"

NOSSO INFERNO

O inferno de nossa vida supera o de Dante no ponto de que cada um de nós é o demônio do seu vizinho. Há também um arquidemônio, a quem os outros obedecem: é o conquistador, que dispõe os homens uns em frente dos outros e lhes grita:

"Vosso destino é sofrer e morrer; portanto, matem-se mutuamente".

E assim procedem os homens.

O MELHOR DOS MUNDOS

Se mostrássemos aos homens as horríveis dôres e os atrozes tormentos a que está constantemente exposta sua existência, tremeriam de espanto; e se ao mais convencido otimista fizéssemos visitar os hospitais, os lazaretos, as salas de tortura dos cirurgiões, as prisões, os campos de batalha, os tribunais de justiça, os sombrios refúgios da miséria, e se por último, o fizéssemos contemplar a tôrre de Ugolino, acabaria por reconhecer de que modo é este "o melhor dos mundos possíveis".

NOSSO MUNDO, MODÊLO DE HORRORES

Se considerarmos a dificuldade que teve Dante em descobrir o céu e suas alegrias, logo se verá que classe de mundo é o nosso. Por quê? Porque o nosso mundo nada apresenta de análogo. E para descrever o Paraíso viu-se o poeta obrigado a dar parte das notícias que lhe deram os seus antepassados, sua Beatriz e vários santos.

Sem dúvida, Dante descobriu muito bem o Inferno. Por quê? Porque achou o assunto e o modêlo na realidade do nosso mundo.

A TRAGICOMÉDIA DE NOSSA VIDA

Vista e examinada minuciosamente de alto e de longe, a vida de cada homem tem o aspecto de uma comédia; em sua total consideração ou em seus aspectos mais dignos de apreço, se apresentará como uma contemplação trágica.

O afã e o trabalho de cada dia, os desejos e receios cotidianos, as desgraças de cada hora, os acasos da sorte sempre disposta a nos enganar são outras tantas cenas da comédia.

As aspirações iludidas, as ilusões desfeitas, os esforços baldados, os êrros que completam nossa vida, as dores que se acumulam até terminar na morte, o último ato, eis a tragédia.

Parece que o destino quis juntar o escárnio ao desespero, e, fazendo de nossa vida uma tragédia, não nos permite conservar a dignidade de uma personagem trágica.

Por isso é que em todos os atos da vida representamos o lamentável papel de cômicos.

DA DÔR AO ABORRECIMENTO

A dor e o aborrecimento são os dois últimos elementos entre os quais oscila a vida do homem.

Os homens exprimiram esta oscilação de modo curiosa; depois de haverem feito do inferno o lugar de todos os tormentos e dôres, que deixaram para o céu? justamente o aborrecimento.

RIO ABAIXO

A vida é um mar cheio de escolhos e turbilhões que o homem evita à fôrça de prudência e cuidados, sem embora desconhecer q ue, à medida que avança sem poder retardar a marcha, corre para o definitivo e inevitável naufrágio, a morte, fim fatal de sua acidentada navegação, é parte ele muito mais perigoso que todos os turbilhões e escolhos de que conseguiu escapar.

DISFARCES DA DÔR

Nossos esfôrços para banir a dor de nossa vida não conseguem outro resultado senão o de fazê-la mudar de forma. Em sua origem tomam o aspecto da necessidade, cuidado, para atender as coisas materiais da vida, e quando, após um trabalho incessante e penoso, conseguimos afastar a horrível máscara da dôr neste determinado aspecto, adquire outros mil disfarces, segundo a idade e as circunstâncias: o instinto sexual, o amor apaixonado, a inveja, o rancor, os ciúmes, a ambição, a avareza, o temor, a enfermidade, etc.

Toma o aspecto triste e desolado do tédio, da sociedade, quando não encontra outro modo de se apresentar. E se com novas armas conseguimos afastá-la novamente, recuperará sua antiga máscara, e a dança recomeça.

CONDENADOS À MORTE

Na primeira mocidade, colocamo-nos perante o destino, como as crianças, que, em frente ao pano de um teatro, impaientes e alegres, esperam as maravilhas que virão surgir em cena. É uma felicidade não podermos saber nada de antemão.

Para quem sabe o que realmente vai se passar, as crianças são inocentes condenados não à morte, mas à vida, e que desconhecem ainda a sua sentença.

TODOS DESTERRADOS

Se não fosse a dôr, poderíamos dizer que a nossa existência no mundo não teria nenhuma razão de ser. É um absurdo pensar que a dôr, que nasce da vida e enche o mundo, seja apenas um acidente, e não o próprio fim. Cada desgraça pessoal apresenta-se com uma exceção, mas, como somos todos desgraçados, a desgraça geral é a regra.

VIVEMOS COMBATENDO

Na desgraça, pensar em outros que são mais desgraçados, é o nosso maior consôlo: é êste o remédio eficaz ao alcance de todos. Porém, como os carneiros, que saltam no prado, enquanto o carniceiro faz a sua escolha no meio do rebanho, assim, em nossas horas felizes, não sabemos que desastre nos prepara o destino, justamente nesse momento: enfermidade, ruína, loucura, perseguições, etc.

Tudo que defendemos, resiste-nos, tudo tem uma vontade hostil que é preciso vencer. A história nos diz que a vida dos povos é uma sucessão de guerras e revoltas; os anos de paz não passam de curtos entreatos. O mesmo acontece com a vida do homem, em constante luta contra as penas ou o aborrecimento, males abstratos, e contra seus semelhantes. Em tôdas, as partes e ocasiões temos que travar combate com um adversário.

A vida é uma guerra sem quartel, e a morte nos encontra com as armas na mão.

O TEMPO, MAIS UM TORMENTO

A rapidez do tempo, que se conserva atrás de nós como um vigia dos forçados, é mais um tormento da existência, que nos faz viver apressadamente sem sossego e sem deixar-nos respirar.

São poupados semente aquêles que o tempo condenou ao aborrecimento.

NECESSIDADE DA DÔR

Todos nós necessitamos sofrer certo número de preocupações, de penas e misérias, da mesma maneira que um barco tem necessidade de lastro para conservar seu equilíbrio.

Se assim não fosse, se súbito nos libertássemos do peso da dor e das contrariedades,o orgulho do homem o faria em bocados ou pelo menos ele seria levado às maiores irregularidades e até à loucura furiosa, do mesmo modo que o nosso corpo rebentaria se repentinamente deixasse de sentir a pressão atmosférica.

O quinhão de quase todos os homens durante sua vida resume-se em pesares, trabalho e miséria, porém, se tôdas as aspirações humanas se realizassem, como que se preencheria o tempo? O que preencheria sua vida?

Se os homens vivessem no país das fadas, onde nada exigisse esfôrço e onde as perdizes voassem já assadas e recheadas ao alcance da mão, num país, onde cada um pudesse obter a sua amada sem dificuldade alguma, êles morreriam de tédio ou se enforcariam, outros despedaçar-se-iam entre si, causando-se maiores males que os impôstos pela natureza.

E isto demonstra que para nós não há melhor cenário que aquêle que ocupamos, nem melhor existência do que a atual.

Se pensamos (e só é possível ter-se uma idéia aproximada) na dor, nos tormentos de tôdas as espécies que o sol ilumina no seu curso, sentimo-nos propensos a desejar que a sua luz perca o poder criador da vida, como acontece com a Lua, e que a superfície do nosso planêta se faça tão gelada e estéril como a do astro da noite.

A GRANDE MENTIRA DA VIDA

Nossa vida é um episódio que perturba, sem nenhuma utilidade, a serenidade do nada.

Mesmo aquêle que não considera a existência como uma carga, à medida que passam os anos tem a consciência clara do que a vida é, em todos os seus aspectos, uma imensa mistificação, para não dizer uma formidável zombaria.

O ESPECTADOR SE ABORRECE

O homem que sobrevive a duas ou três gerações pode ser comparado ao espectador de um circo, que assiste às mesmas farsas duas ou três vêzes seguidas. Como a farsa estava calculada para uma única representação sua repetição não causa efeito no ânimo do espectador, o qual se aborrece por estarem dissipadas a ilusão e a novidade.

UMA BELA EXPRESSÃO

A vida é uma carga enfadonha e aborrecida, uma tarefa que devemos desempenhar com tanto trabalho, que involuntariamente pensamos no descanso: e neste sentido a palavra defunctus é uma bela expressão.

VITIMAS E ALGOZES

Povoado por almas torturadas e por diabos que torturam, o mundo é um imenso inferno.

A FILOSOFIA NÃO É O CATECISMO

Ainda ouvirei dizer que a minha filosofia entristece tudo, isto porque digo a verdade àqueles que só gostariam que eu lhes dissesse: "Deus, Nosso Senhor fez tudo muito bem".

Ide à igreja, e deixai os filósofos em paz, ou, pelo menos, não lhes exijam que ajustem as suas doutrinas ao vosso catecismo. Recorrei aos filosofastros e encomendai-lhes teorias ao vosso gosto. Não há nada que dê mais prazer ou que seja mais fácil do que perturbar o otimismo dos que ensinam filosofia.

A DÔR DE VIVER

Se o ato da geração fosse somente obra de razão e reflexão, em vez de ser uma necessidade ou uma voluptuosidade, subsistiria a espécie humana? Não sentiríamos piedade pela geração futura, para lhe poupar a dor de viver, ou, ao menos, não hesitaríamos em impor-lhe a sangue frio tão pesada carga?

INVEJA E COMPAIXÃO

Não há uma só pessoa que seja verdadeiriniente digna de inveja; e quantas são dignas de compaixão.

PRANTO, DÔR E ABORRECIMENTO

Nossa razão se obscurece ao considerarmos que as inúmeras estrêlas fixas, que brilham no céu, não têm outro fim senão o de iluminar mundos onde reinam o pranto, a dôr, e onde, no melhor dos casos, só vinga o aborrecimento; pelo menos a julgar pela amostra que conhecemos.

O MUNDO, LUGAR DE EXPIAÇÃO

Brama criou o mundo por uma espécie de pecado ou desvário, e permanece nêle para expiar sua falta.

- Muito bem! - Segundo o budismo, uma perturbação inexplicável criou o mundo, produzindo-se depois um longo repouso na beatitude serena, chamada Nirvana, que será conquistada pela penitência. Perfeitamente.

Para os gregos o mundo e os deuses eram a obra de uma necessidade insondável, explicação admissivel, porque nos satisfaz provisoriamente.

Ormuzd combate com Ariman: isto podemos admitir.

Mas um Deus como esse Jeová, que animi causa, por seu belprazer, criou êste mundo de lágrimas e dôres, e que ainda se alegra e se aplaude de o haver criado, achando-o bom, isso já é demasiado forte. Sob êste ponto de vista, podemos considerar a doutrina dos judeus como a última entre tôdas as que professam os povos civilizados, sobretudo, sendo que tomemos em consideração de ser ela a única que não possui qualquer vestígio de imortalidade.

Ainda que a teoria de Leibnitz fosse verdadeira, embora se admitisse que entre os mundos possíveis este é o melhor, essa demonstração não nos daria nenhuma teodicéia, porque o Criador não se limitou a criar o mundo, mas também a possibilidade de sua criação: por isso deveria ter criado um mundo melhor.

A dor que enche o mundo protesta irada contra a hipótese de uma obra perfeita devida a um sêr infinitamente bom e sábio, e também todo poderoso. E, por outra parte, é bem evidente a notória imperfeição, a burlesca caricatura que éo homem, obra acabada da criação. Não é possível explicar essa dissonância. Quando consideramos o mundo como obra de nossa própria culpa, e, portanto, como alguma coisa que não pode ser melhor, as dôres e miséria da humanidade são provas em apoio desta tese.

Se o mundo é obra de um criador, as dôres voltam-se contra êle dando lugar a cruéis sarcasmos; mas se é obra nossa, a acusação é contra o nosso sêr e a nossa vontade. Isto nos faz pensar que viemos ao mundo já viciados, como os filhos de pais gastos pelos desregramentos, e que se a nossa existência é tão miserável, e tem por desfêcho a morte, é porque assim merecemos, para expiar nossa culpa. Generalizando, nada é mais certo: a culpa do niundo é que causa os sofrimentos, e entendemos esta relação no sentido metafórico, e não no físico e enipírico. Por isso, a história do pecado original reconcilia-me com o Antigo Testamento; para mim é a única verdade metafísica que o livro contém,- expressa em forma alegórica. A nada se assemelha tanto nosso destino como à conseqüência de uma falta, de um desejo culpado.

Para ter orientação na vida, e considerar a vida em seu verdadeiro aspecto, basta habituarmo-nos ao pensamento de que êste mundo é um vale de lágrimas, em lugar de penitência; a penal colony, como a definiram os mais antigos filósofos, e alguns padres da Igreja. (Santo Agostinho, De civit, Dei; o que em tôdas as épocas o confirma o bramanismo, o budismo, Empédocles e Pitágoras. Cicero, em sua "Fragmenta de filosofia" conta, que nas antigas iniciações dos mistérios se ensinava: nos ob aliqua scelera suscepta in vita superiores poenarum luendarum causa natos esse. O verdadeiro cristão considera a vida como a conseqüência de uma falta, de uma culpa, de uma queda. Se nos habituássemos a essa idéia, não pediríamos à vida senão o que ela nos pode dar: receberíamos resignados, como uma lógica, as dôres, os contratempos e desenganos que o mundo nos oferece, pois sabemos que aqui estamos para suportar a pena de viver, a que nos condenaram.

Vanini, que achara mais fácil queimar que refutar, diz: Tot, tantísque homo, re letus miseriis, ut si christianae religioni non repugnarei, dicere auderem: si daemonis dantur, ipsi, in hominum corpora transmigrantes, sceleris poenas luunt. (De admirandi naturac arcanis).

Não é mistér que eu diga o que vale a sociedade de nossos semelhantes; aquêles estão conscientes que mereciam outra melhor, assim como se sabe que não é a menor pena do presidiário a sociedade em que êle se encontra. Um espírito elevado, uma alma delicada, um gênio pode sentir a mesma necessidade de isolamento que um nobre prisioneiro que se encontra na cadeia rodeado de criminosos vulgares.

Se sempre nos lembrássemos de que viemos ao mundo para expiar uma culpa, acolheríamos sem surprêsa e sem indignação as imperfeições de nossos semelhantes, os tormentos que aqui sofremos, cuja miserável constituição intelectual e moral se revela até no rosto.

A certeza de que o mundo e o homem não podem mudar nos encheria de dó pelo próximo. Com efeito, que podemos esperar de tais sêres?

Penso, às vêzes, que a melhor maneira dos homens se cumprimentarem em vez de ser "Cavalheiro, Senhor, Sir", poderiam ser, "companheiro de sofrimentos, soci malorum, my fellow-sufferer"...

Por mais irritante que pareça esta expressão, tem mais fundamento que as usuais, e recorda-nos a paciência, indulgência e amor ao próximo, e, usada por todos, beneficiaria a cada um.

A DÔR É A ÚNICA POSITIVA

Do mesmo modo que o rio corre manso e sereno, enquanto não encontra obstáculos que se oponham à sua marcha, assim corre a vida do homem quando nada se lhe opõe à vontade. Vivemos inconscientes e desatentos: nossa atenção desperta no mesmo instante em que nossa vontade encontra um obstáculo e choca-se contra êle.

Sentimos ato contínuo tudo o que se ergue contra a nossa vontade, tudo o que a contraria ou lhe resiste: ou o que é mesmo, tudo o que nos é penoso e desagradável.

No entanto, não prestamos atenção à saúde geral do nosso corpo, mas percebemos ligeiramente aonde o sapato nos molesta; não pensamos nos negócios e só nos importamos com uma ninharia que nos incomoda. Isto quer dizer que o bem-estar e a felicidade são valores negativos, e só a dôr é positiva.

É um absurdo acreditar o contrário; que o mal é negativo. Êle é positivo, porque se faz sentir.

Tôda a felicidade, todo o bem é negativo, e tôda a satisfação também o é, porque suprime um desejo ou termina um pesar. Acrescentamos a isto que, em geral, nunca sentimos uma alegria maior que a que sonhávamos, e que a dôr sempre a excede.

Se quereis certeza das diferenças entre o prazer e a dor, comparem a impressão do animal que devora outro, com a impressão do devorado.

BOLHAS DE SABÃO

O homem só vive no presente, que se converte no passado, e afunda-se na morte. Exceto as conseqüências que podem influir no presente, e que são filhas de sua vontade, ou de seus atos, a sua vida passada já não existe. Devia portanto ser-lhe indiferente que êsse passado fosse de prazeres ou tristezas.

O presente foge-lhes das mãos, transformando-se no passado. O futuro é incerto.

Fisicamente, o andar não é mais do que uma queda evitada a cada instante; da mesma maneira a existência é a morte suspensa, adiada, e a atividade de nosso espírito não é mais que uma luta constante contra o tédio.

É pois fatal que a morte alcance a vitória. Por haver nascido lhe pertencemos, e durante nossa vida não faz senão brincar com a prêsa antes de a devorar.

E assim como quem faz bôlhas de sabão, e apesar da segurança de que acabará por rebentar, se entretém em fazê-la aumentar de volume, assim seguimos o curso de nossa existência, prodigalizando-lhe cuidados e atenções.

A FELICIDADE NÃO PODE VIVER NO PRESENTE

A vida é uma constante mentira, quer nas coisas pequenas como nas grandes. Quando nos faz uma promessa, não a cumpre, a não ser para mostrar-nos que era pouco desejável o nosso desejo. Da mesma maneira nos engana a esperança quando não se realiza o que esperávamos.

E se a vida cumpre o que nos prometeu, é só para nos tornar a tirar.

A beleza do paraíso, que à distância admiramos, desaparece logo que nos deixamos seduzir.

A felicidade está no futuro, ou no passado; o presente é uma pequena nuvem escura que o vento impele sôbre a planície cheia de sol. Diante e atrás dela, tudo é luminoso; só a nuvem é que projeta uma sombra.

A VIDA NA PAZ E NA GUERRA, E SUA FINALIDADE

A vida nunca se apresenta como um mimo que nos é dado gozar, mas sim como uma tarefa que tem de se cumprir à força de trabalho; disto nasce e toma origem uma concorrência sem tréguas, uma luta sem fim, uma miséria geral, uma agitação em que tomam parte tôdas as forças do espírito e do corpo.

Milhões de homens, reunidos em nações, trabalham para o bem público, trabalhando assim cada um em seu próprio interesse, porém, as vítimas deste trabalho morrem aos milhares. Às vêzes, por preconceitos absurdos, outras, por uma política sutil, as nações se aniquilam numa guerra. É preciso que o sangue do povo corra em abundância para expiar a culpa de alguns, ou para realizar os caprichos de outros.

Enquanto reina a paz no mundo, a indústria e o comércio prosperam, as invenções se multiplicam, os navios sulcam os mares, transportando para tôda parte produtos do mundo, as ondas tragam milhares de homens. O tumulto é imenso, enquanto uns se agitam e movem, outros meditam.

Mas qual é a suprema finalidade de tantos esfôrços? Manter, no caso mais favorável, a vida de seres efêmeros em uma miséria suportável, e uma ausência relativa de dor que o tédio aceita constantemente, e ademais a reprodução dêsses sêres, e a renovação de seus esfôrços.

INDEFESA DO HOMEM

De todos os sêres, o homem é o mais necessitado: só tem vontades e desejos, um conjunto de centenas de necessidades. Abandonando a si próprio, vive na terra sem segurança nenhuma a não ser sua miséria. A luta pela vida, cada dia renovada, a necessidade que o constrange, e as imperiosas exigências materiais, preenchem a sua existência.

Ao mesmo tempo, outro instinto o atormenta; o de perpetuar a sua raça.

Ameaçaado por todos os lados pelos perigos que o rodeiam, usa de sua prudência sempre vigilante para poder escapar. Com passo inquieto, lançando em volta olhares angustiosos, segue o seu caminho em luta constante com os casos e com seus inúmeros inimigos. O homem não se sente seguro entre os da sua raça e nem nos mais longínquos desertos.

Qualibus in tenebris vitae, quantisque periclis degitur

hocc'aevi, quodcunque est!

Lucr. 11, 15.

TRABALHAR OU ABORRECER-SE

A necessidade imperiosa do homem é assegurar a existência, e feito isto, já sabe o que fazer. Portanto, depois disso, o homem se esforça para aliviar o pêso da vida, torná-la agradável e menos sensível: "matar o tempo", isto é, fugir ao aborrecimento.

Livres da preocupação de assegurar a existência, e livres seus ombros de todo fardo moral ou material, êles mesmos constituem sua própria carga, e sentem-se felizes porque viveram uma hora desapercebida, embora isto significa que sua vida a qual se esforçam com tanto zêlo para prolongá-la, ficou encurtada pelo mesmo espaço de tempo. O aborrecimento merece tê-lo em conta; êle se reflete na fisionomia.

O aborrecimento é a origem do instinto social, porque faz com que os homens, que pouco se amam, se procurem e se relacionem. O Estado considerado como uma calamidade pública, e por prudência toma medidas para o combater.

O aborrecimento como o seu extremo oposto, a fome, pode impelir o homem aos maiores desvarios; o povo precisa panem et circenses.

Fundado na solidão e na inatividade, o rude sistema penitenciário de Filadélfia faz do aborrecimento um instrumento de suplício tão terrível, que mais de um condenado tem-se suicidado para fugir a êle.

A miséria é sofrimento pungente do povo; o desgôsto é para os favorecidos. Na vida civil, o domingo significa o tédio, e os seis dias, o desgosto.

A FELIC1DADE É UM SONHO

Sentimos a dôr, mas não a ausência da dôr; sentimos a inquietação mas não a ausência; o temor, mas não a tranquilidade. Sentimos o desejo e a aspiração, como sentimos a sêde e a fome; mas, apenas satisfeitos, se acabam, como o bocado que, uma vez engolido, já não existe para o nosso paladar.

Enquanto possuamos os três maiores bens da vida, saúde, mocidade e liberdade, não temos consciência dêles, e só com a perda dêles é que os apreciamos, porque são bens negativos.

Sómente os dias de tristeza é que nos fazem recordar as horas felizes da vida passada.

À medida que os prazeres aumentam, nossa sensibilidade diminui; o hábito já não é um prazer.

As horas passam lentamente quando estamos tristes; correm rapidamente quando são agradáveis; porque a dor é positiva e faz sentir sua presença.

O aborrecimento nos dá a noção do tempo e a distração nos faz esquecer. lsto prova que a nossa existência é mais feliz quando menos a sentimos: de onde se deduz que mais feliz seríamos se nos livrássemos dela.

Uma grande alegria, assim não a julgaríamos se ela não viesse atrás de uma grande dor. Não podemos atingir um estado de alegria serena e duradoura. Esta é a razão porque os poetas são obrigados a rodear seus protagonistas de tristes ou perigosas circunstâncias, para no fim os livrar delas. No drama e na poesia épica, o herói sofre mil torturas: nos romances os heróis lutam pondo em relêvo os tormentos do coração humano.

"A felicidade não passa de um sonho - dizia Voltaire, tão favorecido pelo destino? - a única realidade é a dôr".

E acrescenta: "Há oitenta anos que a experimento e nada faço senão resignar-me e dizer a mim mesmo que as môscas nasceram para serem comidas pelas aranhas, e os homens para serem devorados pelos desgostos".

O ETERNO ESTRIBILHO

Vista exteriormente assombra a insignificância da vida da maioria dos homens, vista interiormente é sinistra e lúgubre. Formada por inúmeras dores e aspirações impossíveis, o homem passa sonhando pela meninice, mocidade, virilidade e velhice, rodeado de idéias banais.

Os homens assemelham-se a relógios que não sabem por-que andam: cada vez que um nôvo ser nasce, dá-se corda no relógio da vida humana para seguir repetindo o eterno e gasto estribilho de uma caixa de música, frase por frase, compasso por compasso, com pequenas variações.

JOGUETES DA NATUREZA

O homem, cada um dos homens, é um sonho a mais, um sonho fugaz criado pela tenaz e constante vontade de viver, imagem efêmera que o espírito infinito da natureza desenha na página do tempo e do espaço; impressa nela alguns instantes logo se desfaz para dar lugar a muitas outras.

O mais triste, o ponto que nos deve fazer pensar profundamente, é que a vontade de viver há de pagar cada uma dessas imagens efêmeras e caprichosas com o preço de dôres profundas e inúmeras, e da morte por longos anos.

Eis porque nos tornamos repentinamente sérios perante um cadáver.

O TEATRO E OS ARTISTAS

O mundo é um vasto campo de batalha onde os sêres sómente devorando-se uns aos outros conseguem conservar e defender a vida; onde todo animal carnívoro é o túmulo vivo de tantos outros; onde o viver significa sofrer longos tormentos; onde a capacidade para a dôr aumenta na proporção da inteligência, e atinge, portanto, no homem o mais elevado grau.

Os otimistas quiseram adaptar o mundo ao seu sistema, e apresentá-lo a priori como o melhor dos mundos possíveis. O absurdo é evidente.

Dizem-me para abrir os olhos e contemplar a beleza do céu iluminado pelo sol, as montanhas, os vales, as torrentes, as plantas, os animais, que sei eu! Acaso será o mundo uma lanterna mágica?

A contemplação é bela, confesso, mas aí representar, é coisa completamente diferente.

Após o otimista surge o homem que nos fala das causas finais, e elogia as sábias leis que preservam os astros de se chocarem no seu percurso; que evitam o mar e a terra de se confundirem, e os mantém separados; que faz com que nem o frio nem o calor sejam eternos, e que, pela inclinação da eclítica, não permite a primavera, ser eterna podendo assim amadurecer os frutos, etc. Mas tudo isso não são mais que simples conditiones sine quibus non. Porque se os planêtas devem ter uma existência mais longa, embora seja o período que demora em chegar a êles a luz de uma estrêla longínqua, e se não desaparecem após o nascimento, era preciso que as coisas estivessem mal arquitetadas, para que a base fundamental ameaçasse ruína. Chegamos aos resultados desta obra tão elogiada, e observamos os atores que se movimentam nesta, tão sábia e solidamente construída. Vemos que a dor aparece juntamente com a sensibilidade, e à medida que esta se torna inteligente, a dôr e o desejo caminham par a par, e o primeiro chega a tal desenvolvimento que finalmente, a vida do homem nada mais é que um assunto trágico ou cômico.

A sinceridade de certos homens não lhes permite a união ao côro dos otimistas, e com êles entonar a aleluia.

A VIDA É UM PESADO GRACEJO

Se considerarmos a vida objetivamente, é duvidoso que ela seja preferível ao nada. Atrever-me-ia até a dizer que se a reflexão e a experiência pudessem fazer um acôrdo, elevariam a voz em favor do nada. Se batêssemos nas pedras dos sepulcros e perguntássemos aos mortos se querem ressuscitar, moveriam negativamente a cabeça. É esta a opinião de Sócrates na Apologia de Platão.

O alegre e feliz Voltaire dizia: "Amamos a vida, porém o nada não deixa de ter o seu lado bom". Em outra parte dizia: "Ignoro o que seja a vida eterna, mas esta é um pesado gracejo".

DE ONTEM A HOJE

A juventude é uma infatigável aspiração de felicidade; a velhice, pelo contrário, é dominada por um vago e persistente sentimento de dôr, porque já estamos nos convencendo que a felicidade é uma ilusão, que só o sofrimento é real. Por isso, o homem sensato deseja mais sofrer que gozar.

Em plena juventude, quando eu ouvia bater à porta, saltava de alegria, e pensava: "Bom!Alguma coisa sucede". Mais tarde, experimentado pela vida, o mesmo ruído sobressaltava-me de angústia, e pensava: "Que sucederá, meu Deus?...

A DURA JORNADA

Na velhice ao perder os sonhos da sua juventude todo homem que estudou a história do passado e a da sua época, e recolheu o fruto da sua experiência e da alheia, se não estiver com o espírito perturbado por preconceitos muito arraigados, chegará à conclusão de que êste mundo é o reino do acaso e do êrro, que é governado a seu modo sem compaixão alguma, auxiliados pela maldade e pela loucura, que ao homem empolgam constantemente.

Mil trabalhos e esforços é preciso para impor uma idéia nobre, porque dificilmente encontra uma oportunidade de apresentar-se, enquanto que a vulgaridade artística, os sofismas, a malícia e a astúcia reinam de geração em geração, aqui e alhures sem serem interrompidos.

http://www.geocities.com/Athens/Troy/8413/dor.htm

Isabel Fontes
Enviado por Isabel Fontes em 19/04/2007
Reeditado em 19/04/2007
Código do texto: T456058
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