Aproximadamente a partir de 1953 Foucault conhece a Filosofia de Friedrich Nietzsche e, com esta influência, a genealogia e a arqueologia foucaultianas são chaves para escavação, composição, análise e crítica históricas das possibilidades dos saberes e dos poderes – não meros instrumentos transformadores de “monumentos” do passado em “documentos”.

O projeto epistêmico de Foucault inicia-se com a publicação, em 1961, de Histoire de la Folie à l'Âge Classique (História da Loucura na Idade Clássica) cujo objeto é a doença mental, o Nascimento da Clínica, obra publicada em 1963 e cujo objeto é a doença e Les Mots  et les Choses – Une Archéologie des Sciences Humaines (As Palavras e as Coisas – uma arqueologia das ciências humanas), obra publicada em 1966 e cujo objeto são as epistémês.

L’Archeologie du Savoir (Arqueologia do Saber), obra publicada em 1969 marca em Foucault um “ponto de chegada” e não um “ponto de partida” da arqueologia do saber; a partir dos anos da década de 1970 com aquele “ponto de chegada” o projeto de Foucault prossegue para uma genealogia do poder iniciada com a publicação de Surveiller et Punir (Vigiar e Punir) em 1975 e da Histoire de la Sexualité: I La Volonté de savoir (História da Sexualidade I: A vontade de saber) em 1976, com os subsequentes volumes 2 e 3. O projeto arqueológico, desacoplado de quaisquer tipos de “sujeição antropológica”, descreve a formação de regimes de saber em domínios definidos e num momento histórico determinado; o projeto genealógico, com a noção de relações de poder, analisa a emergência e a invenção dos saberes como dispositivos estratégicos para o exercício daquelas mesmas relações de poder expressas numa “microfísica do poder”.

Ao afastar (sem abandonar) a pesquisa histórica com a chave da arqueologia, Foucault utiliza-se da genealogia de Friedrich Nietzsche: ambos utilizam-se dos termos  herkunft (proveniência) e erfindung (invenção) para fugirem do peso metafísico da Filosofia Ocidental, alicerçada no dogma da origem (Ursprung) e do nascimento (Geburt).

No ano de 1969, Foucault publica o seu conceito de formação discursiva  na tentativa de livrar-se das palavras ciência, ideologia, teoria e domínio de objetividade para a possibilidade definível de “uma regularidade (uma ordem, correlações, posições, funcionamentos, transformações) entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas”. (FOUCAULT, 2012, p.47) Tais objetos, tipos de enunciação, conceitos, escolhas temáticas são uma espécie de tijolos submetidos a determinadas condições (= regras de formação).

Em sentido estrito, formação discursiva constitui “grupos de enunciados, isto é, conjuntos de performances verbais que não estão ligadas entre si, no nível das frases, por laços gramaticais (sintáticos ou semânticos); que não estão ligados entre si, no nível das proposições, por laços lógicos (de coerência formal ou encadeamentos conceituais); que tampouco estão ligados, no nível das formulações, por laços psicológicos (seja a identidade das formas de consciência, a constância das mentalidade, ou a repetição de um projeto); mas que estão ligados no nível dos enunciados.” (FOUCAULT, 2012, p.141)
 
“O que pertence propriamente a uma formação discursiva e o que permite delimitar o grupo de conceitos, embora discordantes, que lhe são específicos, é a maneira pela qual esses diferentes elementos [=regras de formação] estão relacionados uns aos outros”. (FOUCAULT, 2012, p.70) Essas relações estabelecem-se

entre instituições, processos econômicos e sociais, formas de comportamentos, sistemas de normais, técnicas, tipos de classificação, modos de caracterização [; tais relações] não definem a constituição interna do objeto, mas o que lhe permite aparecer, justapor-se a outros objetos, situar-se em relação a eles, definir sua diferença, sua irredutibilidade e, eventualmente, sua heterogeneidade. (FOUCAULT, 2012, p.53)

Tais relações discursivas não estão presentes no objeto de discurso; tais relações discursivas caracterizam o discurso enquanto prática discursiva.

Prática discursiva é o “conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa.” (FOUCAULT, 2012, p. 144)

E o que é discurso de onde nasce o conceito de formações discursivas? Discurso é “um conjunto de enunciados, na medida em que se apoiem na mesma formação discursiva. [... É] constituído por um número limitado de enunciados para os quais podemos definir um conjunto de condições de existência.” (FOUCAULT, 2012, p.143)
Enunciados ou produtos da enunciação são “os textos (ou as falas) tais como se apresentam com seu vocabulário, sintaxe, estrutura lógica ou organização retórica.” (FOUCAULT, 2012, p.89-90)
No contexto desses conceitos, a Ordem do Discurso chama a atenção pois por tal ordem formam-se as epistémês – caracterizantes de momentos históricos específicos.

A produção teórica e metodológica dos discursos, inclusive os científicos, traz a assinatura de uma determinada ordem do discurso – tema da aula inaugural de Michel Foucault, no Collège de France, realizada em 2 de dezembro de 1970.

Entre os vários procedimentos de controle e de delimitação dos discursos estão três, investigados por Foucault:
-os procedimentos externos de exclusão (a interdição ou palavra proibida, a separação e a rejeição ou a segregação, a vontade de verdade);
-os procedimentos internos de exclusão, erguidos na categoria de princípios classificatórios, ordenadores e distribuidores de discursos (o princípio do comentário, muito em voga no meio científico e acadêmico sob o estratagema do número de citações e de usos de um discurso por outros; o princípio do autor ou dos discursos agrupados; princípio de limitação ou de organização das disciplinas);
-os procedimentos de distribuição dos discursos.
 
Na revisão sumária sobre os procedimentos de controle e de delimitação dos discursos, utilizar-se-á o texto básico de Foucault, traduzido e publicado no Brasil vinte e cinco anos depois de ter sido publicado em Paris – um sintoma evidente do controle e da delimitação dos discursos no Brasil. (FOUCAULT, 2001) É a história vigiada, estudada por Marc Ferro (1989), a história censurada nos estudos de Martins (1978).

 
A – Procedimentos externos de exclusão
A.1 – Interdição ou palavra proibida
Inúmeras e inventivas são as formas de impor silenciamentos sobre os discursos, tornar enunciados (e conceitos) não pronunciáveis. Pelo menos três tipos interdições foram destacadas por Foucault: o tabu do objeto (não se pode falar sobre isso ou aquilo, ou...); o ritual da circunstância (pode-se falar sobre determinada coisa em determinadas circunstâncias e não em outras); direito privilegiado ou exclusivo do enunciador (somente tal ou qual sujeito pode dizer algo sobre isto ou aquilo).

A interdição no mundo acadêmico e científico e na imprensa moderna e contemporânea dá exemplos sobre tal política de silenciamento: somente este e não aquele profissional, pertencente a tal ou qual classe ou grupo científico, pode falar (ou é convidado a falar) sobre determinado assunto, em determinadas circunstâncias e não em outras, para um público específico e não para todos, vinculado a essa e não àquela instituição; professores universitários, em geral orientadores de graduandos e pós-graduandos, são agentes e instrumentos dessas interdições; conselhos editoriais de revistas científicas e de editoras funcionam, de igual modo, como agentes e instrumentos de interdições, recusando ou aceitando a publicação de certos artigos e livros e não de outros, escritos por alguns e não por outros autores.
 
Não se pode nessa política de silenciamentos os trabalhos no Brasil de Eni Puccinelli Orlandi em torno de discursos, silêncios e silenciamentos, conquanto as concepções de Orlandi estão mais próximas de Michel Pêcheux (1938-1983) do que de Michel Foucault.

 
A.2 – Separação, segregação ou rejeição de discursos
Em geral, separar, segregar discursos acontece por tornar alguns discursos marginais, sem direito à publicidade, não oficiais; por isso, tais discursos são rejeitados, esquecidos, não recomendados. Até as dicotomias e dualismos ocidentais, os apelidos metodológicos (por exemplo, pesquisa qualitativa, quantitativa, quanti-qualitativa), os conceitos separadores entre ciências e disciplinas (sob a legenda de linguagem técnica ou científica) são procedimentos de interdição, separando e segregando enunciados.
 
A.3 – Vontade de verdade
As arbitrárias produções de estratagemas científicos, filosóficos, religiosos com rótulos dicotômicos sobre o que é verdade, sobre o que é falsidade, sobre o que é bem e o que é mal, sobre o que é belo e o que é feio, sobre o que é sagrado e o que é profano: obviamente, os segundos qualificativos são interditados, marginalizados, diante de uma suposta e arbitrária vontade de verdade. A história da filosofia, com a supremacia institucionalizada de tais concepções tidas por verdadeiras e outras tidas por falsas, é um exemplo; a história da igreja católica, desde a sua fundação, é um demonstrativo de etnocídios e de genocídios produzidos em nome daquela vontade de verdade; o advento do estado moderno e os regimes políticos, a denominada história das ciências, historicamente são outros tantos exemplos.
 
B – Procedimentos internos de exclusão
Nos procedimentos internos de controle e de delimitação do discurso a própria pessoa enunciadora, interdita, marginaliza, segrega e rejeita o seu discurso por haver obviamente introjetado os sistemas de exclusão externos.
 
B.1 – O princípio do comentário
O comentário é o princípio de um determinado discurso que é sempre contado, recontado, lembrado, citado, sob determinadas circunstâncias e em determinados contextos: assim aconteceu, por exemplo, com a insistente citação, recontagem, interpretação, reinterpretação e republicação dos enunciados de Sócrates, Platão, Aristóteles a ponto de se tornarem quase os únicos expoentes da filosofia ocidental.

Com o Renascentismo europeu, o saber tornou-se um falar sobre o saber, um referir-se a linguagem à linguagem: é o princípio do comentário pelo qual saber deixa de ser a demonstração para ser a interpretação, ou mais precisamente, a interpretação da interpretação, escrever livros sobre livros. (FOUCAULT, 2000, ps. 53, 55-6)  Uma concepção de ciência, por exemplo, estruturou-se com o princípio do comentário das concepções de Newton, de Galileu, de Descartes, de Comte; a hegemonia de determinados métodos de pesquisa e teorias “científicas” seguem o mesmo princípio.
 
 
B.2 – Princípio do autor
O comentário produz desnivelamentos entre os discursos liga-se ao princípio do autor, ou seja, agrupamento de discursos ligados pela produção arbitrária de unidades, de significações de suposta origem comum, de coerências engendradas. Tal princípio evidencia-se: naquilo que é sempre dito por certos autores, certas ideias, certos textos (e não outros) sempre citados e comentados; naquilo que é dito por determinados grupos de saber em determinadas ocasiões e não em outras; naquilo que é sempre republicado por grupos de saber; naquilo que jamais foi publicado ou republicado; naquilo que é publicado numa língua ou num país e não em outro; naquilo que nunca é dito ou jamais comentado; naquilo que é comentável sob determinados limites. Tais desnivelamentos produzem discursos fundamentais e discursos periféricos.

Desse princípio nasceram os discursos filosóficos, os discursos religiosos, os discursos científicos – muito apreciados pela história de origem das ciências, das filosofias, das religiões.
 
B.3 – Princípio da disciplina
O princípio da disciplina estabelece a produção de discursos, determinando o que está dentro e o que está fora da preestabelecida verdade do discurso de cada uma das disciplinas filosóficas, científicas, religiosas, entre outras tantas. O que não se fundamente nem se desenvolve segundo aquela predeterminada verdade do discurso dessa ou daquela disciplina está fora do discurso.
 
C – Procedimentos de distribuição dos discursos
A distribuição dos discursos funcionam como procedimentos de exclusão pelas regras de acessibilidade às predeterminadas regiões do discurso: revistas, editoras, grupos editoriais e quaisquer outros tipos de mídia, cuja função é garantir a conservação e a produção de discursos que devem circular em espaços fechados, segundo regras estritas e predeterminadas. Tais sociedades ou grupos se dão o direito de estabelecer segredos de discurso, coibir ou divulgar discursos, estabelecer prioridades de divulgação e regimes de exclusividade e de acessibilidade publicitárias.

Ratificando: no que se refere às obras escritas, os textos raros, os textos esgotados e não republicados, os textos não publicados, os textos somente disponíveis sob regras de acessibilidade restritas, obras publicadas e distribuídas sob regras limitantes de exclusividade e de publicidade são alguns dos vários exemplos de exclusão de discursos; o índex católico, vigente até 1966, é outro exemplo típico.
 
 
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REFERÊNCIAS
FOUCAULT, Michel. As Palavras e as coisas. Tradução de Salma Tannus Muchail São Paulo: Martins Fontes, 2000
_________________. A Ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Loyola, 2001
_________________. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2012
_________________. A Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012
MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira – volume 1 (1550-1794). São Paulo: Cultrix, 1978
 
 
Carlos Fernandes
Enviado por Carlos Fernandes em 29/09/2013
Código do texto: T4503714
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