PEQUENO MILAGRE

Havia me formado e fui para São Paulo trabalhar como engenheiro na firma do meu pai.Embora viesse do Rio de Janeiro, São Paulo era para mim um gigante, um mundo estranho e distante do meu, onde nunca, nenhuma vereda, dava-me caminho ao mar.Aos poucos fui me adaptando aos semáforos e aos faróis, aos balões e aos funileiros, às cartas de motorista e às bengalas na padaria e até mesmo a tomar cafezinho no aeroporto aos sábados a noite ou nas tardes de domingo. Em pouco tempo, já era filho de duas terras e havia incorporado com relativa facilidade o espírito da vida paulistana. Passei a conhecer e a dominar aquele trânsito esquizofrênico, entre os tantos caminhos criados, improvisados e descobertos nas rotas do dia a dia entre obra e outra.

Era uma manhã ensolarada de agosto e eu me dirigia, em um calor escaldante, não muito próprio da época, de Guarulhos para Vila Mangalot, e encontrava-me na Marginal do Tietê próximo à Ponte da Vila Maria. O trânsito, meio confuso, envolvido numa névoa cinza de fumaça poluente, impunha uma velocidade de média para baixa, com ligeiras paradas, obedecendo a algum pulso regulador, talvez um semáforo adiante. Em um determinado momento, um caminhão na retaguarda de meu Fusca, buzinava no desespero dos loucos, pedindo passagem no impossível do tráfego. Sem vislumbrar uma solução, e achando um certo abuso na pretensão absurda daquele motorista inconveniente, impensadamente fiz um sinal, com a mão para fora da janela, indicando que a única alternativa seria a que ele passasse por cima.Quase ele o faz. Na parada seguinte, olhei para trás e vi um batalhão descendo do dito caminhão. O caminhão da PM. Começou aí a minha Via Crucis.Com movimentos estúpidos e palavreado chulo, tiraram-me do carro quase a força. Vistoriaram porta-malas, porta-luvas, minha pasta e por último solicitaram toda documentação.Estava tudo em ordem, mas mesmo assim levaram-me para o DETRAN e prenderam o meu carro a pretexto de desacato à autoridade e mau estado de conservação da carteira de habilitação.Realmente, um documento com mais ou menos 8 anos de uso, quadrado e de papelão bege mal plastificado, não poderia estar uma maravilha, mas nada que impedisse a leitura ou não identificasse o seu proprietário, pois somente as bordas estavam desgastadas por atrito.

Dois dias passei no DETRAN. Lá, eu pude sentir na pele o que realmente era a ineficiência do funcionalismo público e o que foi, na época de ditadura, a arrogância dos militares, pois se passava o ano de 1971.A imagem deste fato trás - me, até hoje, a lembrança do inferno implantado aqui na terra, nas imediações do Parque do Ibirapuera. Todos nós, civis ali presentes, seríamos criminosos hediondos, e aguardávamos as sentenças ditadas pelos cabos, sargentos e tenentes, que como “juizes”, ocupavam cargos de chefia nas seções daquele órgão.Não me sai da memória a figura paquidérmica de um oficial, talvez tenente, que quando resolvia a se levantar de sua mesa com rumo a algum lugar, estufava o peito empinava o nariz e como um trator, abria o caminho na multidão, empurrando quem estivesse pela frente exibindo com muito orgulho a tirania que o seu “cargo” lhe proporcionava.Depois de filas quilométricas, maus tratos, arrogância e outros absurdos, consegui ver-me livre do DETRAN.Deveria comparecer ao Rio de Janeiro e solicitar nova via de minha carteira de habilitação em trinta dias.Enquanto isto, eu usaria, como documento, o comprovante da retenção.

Estava, nesta ocasião, iniciando a construção de um túnel na Zona Oeste de São Paulo, sob a Via Anhanguera no km 13. Alguns dias depois do incidente DETRAN, fui à casa de um eletricista nas proximidades dos serviços para contratar a instalação elétrica do canteiro de obras. Toquei a campainha e fui muito bem atendido pelo seu filho que pediu que eu entrasse, pois seu pai deveria voltar logo.Tomamos um café e ele, em conversa amistosa, disse-me que era soldado da PM e trabalhava no DETRAN e que se eu precisasse de alguma coisa naquele órgão poderia contar com ele, pois estaria disposto a ajudar-me caso houvesse algum problema comigo ou com os carros de minha empresa.Disse-me ainda, que era apenas soldado, mas conhecia os pontos chave e todo o funcionamento da repartição e isto traria facilidade em qualquer pretensão minha. Lembrei-me dos tempos de estudante em que muitas vezes, meus amigos e eu entrávamos em festas de clubes e carnavais não por conhecermos os anfitriões ou os diretores, mas por sermos amigos dos porteiros. Contei a ele em detalhes o episódio acontecido, as barbaridades, a arrogância, enfim tudo o que sofri na Marginal do Tietê e no DETRAN. Ele lamentou e enfatizou sua posição, que estaria sempre pronto a agir, caso houvesse qualquer problema.Acreditei nele porque senti, em seu olhar, uma certa pureza, um ar angelical, não muito comuns em homens que abraçam esta profissão.

Minhas responsabilidades aumentaram, porque agora eu dirigia quatro obras e não duas mais, como até então. Os meus dias foram ficando mais curtos, o mês de agosto voou e as pressões do trabalho fizeram-me esquecer a necessidade de ir ao Rio de Janeiro para renovar minha carteira de habilitação.Vencidos os trinta dias do recibo de retenção, fiquei preocupado, pois estava irregular e a experiência vivida naqueles dias de DETRAN trazia-me calafrios só em lembrar.

Já ambientado com o trânsito de São Paulo, aventurava-me pelo desconhecido na base de “quem tem boca vai a Roma” e com isso explorava a cidade de norte a sul, leste a oeste, errando caminhos, mas sempre acumulando conhecimentos sobre aquele emaranhado de ruas de uma das maiores capitais do mundo. E assim conheci os contornos, eixos e as principais avenidas dos principais bairros e cidades da Grande São Paulo de forma que a qualquer movimentação, tomava como base um ponto já conhecido e tudo se tornava fácil e resolvido.

Foi então que, numa tarde de setembro, fiz o meu mapa mental para chegar a um determinado endereço no Brás, Zona Leste de São Paulo. Deveria entrar numa avenida chamada Rangel Pestana à direita. Cheguei numa das esquinas desta Via e verifiquei, pelo fluxo e contra-fluxo dos veículos, que se tratava de mão dupla.Calmamente entrei à direita atrás de um ônibus quando ouvi o apito de um PM, que ordenou-me parar.O sentido tomado somente era permitido aos ônibus.

Tentei justificar-me de todas as formas, mas o policial era irredutível.

“Como seu carro é do Rio de Janeiro, terei que rebocá-lo para o DETRAN. Assim que o senhor apresentar o pagamento das multas, do reboque e da estadia, poderá retirá-lo, traga um motorista habilitado ou apresente sua carteira já renovada,”disse-me o policial.

Havia dado a sentença, batido o martelo em última instância. Nenhum recurso, nem por misericórdia, caberia ali naquele momento. Veio-me à lembrança o martírio do DETRAN, aquele filme de terror.Amargurado e trêmulo, coloquei as mãos no rosto e com o sentimento transtornado, disse a mim mesmo com toda a força: Bem que o filho do eletricista poderia salvar-me desta!

Quando eu abri os olhos ele, o filho do eletricista, passava em frente a mim, na calçada da Av. Rangel Pestana, no bairro do Brás, Zona Leste de São Paulo.

José Mattos

26/02/06

ZEMATTOS
Enviado por ZEMATTOS em 04/09/2013
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