ESCOLA DOMINICAL NUNCA MAIS
Fui o que se pode chamar de um bom cristão evangélico durante mais de vinte anos. Aos cinco anos entrei pela primeira vez em uma igreja. Era uma Deus é Amor, com todos os seus rituais e promessas de castigo. Na minha meninice, estava crente que veria Deus face a face, que se aquela era a morada de Deus, naturalmente ele estaria lá, fazendo as honras da casa. Ele não foi e se apresentou para mim como um silêncio decepcionante. Um silêncio que ainda iria gritar por muitos anos no meu coração.
Aos 11 anos, ainda na neolítica Igreja Deus é Amor, cheguei a ser promovido a um pregador mirim. Tinha a honra de pregar durante os cultos das crianças todos os sábados à tarde, numa minúscula igrejinha ao lado da minha casa. Não guardo muitas lembranças dessa época, nem dos sermões por mim proferidos. O que lembro com mais força é de ouvir, junto com o garoto Isaque, filho do Pastor-presidente, umas fitas cassetes sobre os heróis do Antigo Testamento. Era uma alternativa santa para desenhos mundanos exibidos na televisão, devidamente proibida por ser uma ferramenta de Satanás para corromper a raça humana.
Alguns anos depois, mais evoluído, fui membro da Igreja Assembleia de Deus. Ocupei cargos como líder de grupo de adolescentes e de jovens. Mas o que mais marcou-me foi ter sido durante uns cinco ou seis anos professor da Escola Bíblica Dominical, uma espécie de catecismo evangélico. Seja falando para grupo de jovens ou de adultos, eu transmitia os ensinamentos elaborados por teólogos em revistas.
Colecionador por excelência, conservo ainda algumas dessas revistas. Lendo uma por uma, deparo-me com alguns absurdos que ajudei a alimentar. Dei voz a genocídios, assassinatos, injustiças e diversas crueldades travestidas de ética cristã. Somem-se a isso os crassos exemplos de incoerências e impossibilidades. É como ler e adotar como manual de conduta um livro de Harry Potter ou algo que o valha.
Revisitando um exemplar de 2000, escrita pelo Pr. Antônio Veras de Souza, aprendi que Josué é um parâmetro de conduta a ser seguido. Com o título “Josué, o líder que conquistou Jericó”, o teólogo exalta os feitos do sucessor de Moisés. Para ele, Deus levantou Josué para conquistar aquela terra e destruir completamente todos os seus habitantes. O motivo? Todos viviam na prática imoral de suas religiões. Não condeno apenas o pastor. Quem prega e quem ouve essa história ficam eufóricos como se a seleção vencesse a Copa do Mundo. Parece ser a coisa mais natural do mundo entrar em uma cidade e matar todos os homens e mulheres. Isso inclui as crianças de colo, que foram arrancadas de suas mães e fatiadas a espada. Isso inclui as grávidas, que tiveram suas entranhas despedaçadas. Isso inclui os velhinhos, que já nem conseguiam andar. Isso inclui gente, seres humanos. Não é apenas uma estupidez celebrar um genocídio como algo santo, algo eticamente aceitável: é a banalização da ideia de crime. Quando os telejornais mostram reportagens de homicídios, chacinas e afins, esses mesmos fiéis derramam lágrimas, ficam tristes e condenam o ato. Sentado em um banco de igreja louvam e se alegram com a barbaridade. Sinto vergonha de um dia ter ajudado a ecoar algo tão vil.
Naturalmente, a história de Josué e tantas outras, não são exatamente verdadeiras. A ciência as refuta com um pé nas costas. Algumas dessas histórias, no entanto, tiveram um ou outro elemento de realidade e o manto mitológico as enfeitou com mais adornos. Isso não vem ao caso. O que se discute aqui não é a veracidade desses relatos. O que se discute é a moral, a ética de quem as consome. De quem as considera atos gloriosos.
Outra história é a de Jó. Para mim a mais emblemática. Com o título “Jó, sua provação e vitória”, Pr. Antônio Veras diz, sem nem corar, imagino, que as aflições de Jó nos animam (animam!) a crer que o Senhor é fiel. Vejamos: segundo a Bíblia, Jó era um homem sincero, reto e temente a Deus. Ou seja, rezava direito da cartilha divina. Que fez Deus para mostrar sua fidelidade e recompensar o tal homem? Em um dia de tédio, trocando umas ideias com Satanás, resolve fazer uma aposta. Deus aposta com o Diabo que Jó é fiel, é um bom menino. Ardiloso, o Diabo alega que Jó só é fiel porque tem tudo nas mãos: bons filhos, bois no pasto, saúde e fartura. Que se ele perdesse isso iria se revoltar contra Deus. Acertam os termos da aposta e Deus, tirando férias da justiça, do amor e da misericórdia, autoriza o Tinhoso a sacanear seu servo fiel, reto e temente.
Nessa passagem bíblica Deus revela sua verdadeira face: a da maldade. Até então a regra era: se é bom menino Deus ajuda e recompensa, se é menino rebelde Ele castiga. Simples assim. Mostrando um lado tenebroso, resolve tirar tudo de Jó. O que deixa-me aterrorizado é que pastores sobem ao púlpito e bradam com suas salivas que, ao final da prova, Deus, generoso, recompensou o infeliz Jó em duas vezes mais. Tá. Tomemos a pele de Jó. Ele tinha dez filhos. Em um só dia, todos morreram. Todos! Imagine você que tem filhos, que bom negócio seria todos eles morrerem e depois você ter o dobro de filhos do que tinha. É um bom negócio para você? É uma prova de amor e generosidade? Imagine que você perca 10% do que perdeu Jó. Imagine que sua filha seja morta. Qual o problema nisso? Deus te dará duas outras filhas, novinhas em folha. Pagou-te com juros e correção monetária. Justiça divina foi feita.
As histórias prosseguem. Aprendemos que Davi era um homem que tinha o coração de Deus. Em seu desfavor pesam homicídios, adultério, poligamia, entre outras práticas. Um plebeu seria punido severamente por metade disso. Um rei é exaltado como modelo de conduta. O mesmo pastor que exclui o fiel por causa de uma pulada de cerca traz no domingo um sermão sobre Davi e Salomão, servos de Deus, que tinham, somados, mais de mil mulheres. Não consigo entender como encontravam tempo para guerrear, servir a Deus, governar e ainda satisfazer sexualmente centenas de mulheres.
A lista de absurdos é infinita como as estrelas do céu. Ainda dentro do arcabouço moral não há condenação à escravidão e à coisificação da mulher. O mesmo Deus que pune o homem que faz a barba não se preocupa em proibir que o mesmo barbado tenha escravos. Não há em mim mais qualquer faísca de interesse em ser um arauto de histórias que pecam por não serem reais e, pior que isso, não serem moralmente corretas nem para o pior dos seres humanos.