HOMENS DO CANGAÇO: O ARQUÉTIPO DO CANGACEIRO

A masculinidade dos cangaceiros expressa um tipo de homem com vários subtipos dependentes da ideologia e das ações com que tais homens adotaram o cangaço como forma de vida individual e societária, contrapondo-se a uma dada estrutura social.


O cangaço surgiu na região do Nordeste do Brasil, em meados do século XIX e início do século XX como uma contrapartida às iniquidades sociais vigentes naquela região; as palavras cangaço e cangaceiros originam-se da peça denominada canga - uma peça de madeira geralmente colocada nos muares e animais de transporte.

Inicialmente, cangaceiros prestavam serviços aos homens arbitrariamente qualificados de coroneis, ou seja, chefes políticos locais: tais serviços eram a eliminação de adversários aos interesses daqueles coroneis. Tais adversários estabeleciam violentas brigas entre famílias divergentes de coroneis.

Os cangaceiros formaram grupos sociais independentes em contraposição aos poderes constituídos; de acordo com a proteção econômica recebida, tais grupos associavam-se a diferentes outros grupos sociais constituídos, cumprindo atividades de interesses dos seus protetores. E é sintomática e exatamente quando formam grupos sociais independentes, tais grupos são rotulados, tempos depois, como grupos de “banditismo social” formados pelo suposto tipo de homem do cangaço qualificado de “bandido social”.

Muitos (senão todos os) cangaceiros eram a versão não oficial e justiceira dos coroneis; nesse sentido, pode-se qualifica-los de coroneis do sertão. Prova disso é o tratamento de coronel dado, por exemplo, a Virgulino Ferreira – o Lampião.

Os cangaceiros inventaram um modo de se vestirem e de serem diferenciados e reconhecidos muito semelhante aos antigos mamelucos bandeirantes (brasilíndios) e aos capitães-do-mato: andavam armados, usavam chapeu de couro, portavam carabinas, cartucheiras e longas facas penduradas no cós das calças.

Apesar dos inúmeros cangaceiros sem registro nos livros de história, alguns entre os vários conhecidos podem ser sumariamente relembrados:

-José Gomes (o Cabeleira, 1751-1776), filho do mameluco Joaquim Gomes e de Joana, nasceu em Glória do Goitá (cidade da zona da mata pernambucana). Considerado um dos primeiros cangaceiros de Pernambuco, tinha por parceiro um mestiço de nome Teodósio e o próprio Joaquim; bem cedo foi aprisionado num canavial em Paudalho, zona da mata de Recife, o jovem Cabeleira foi enforcado no Forte das Cinco Pontas.

Descrições físicas apresentam o jovem Cabeleira com fronte estreita, olhos negros e lânguidos, nariz curto, lábios delgados,  expressão facial insinuante e cândida.
 
-Lucas Evangelista, Lucas da Feira, era filho de escravos e nasceu na fazenda "Sacco do Limão", então frequesia de São José, no município Feira de Santanha (Bahia), em 18 de outubro de 1807.
 
Lucas foi escravo de
Anna Pereira do Lage, do padre José Alves Franco e, por último, do alferes José Alves Franco (pai daquele padre); em meados de 1828, Lucas fugiu de seu novo dono para viver nas matas como tantos outros escravos fugitivos. Pela ousadia da fuga, a gente brancoide escravocrata logo o qualificou de bandido.

Em pouco tempo, Lucas formou um pequeno exército de outros escravos fugitivos para saltear os salteadores de terras e de gentes: não fosse negro, escravo e fugitivo estaria nos livros oficiais de História na condição de heroi. Esse pequeno exército de negros era composto de homens conhecidos pelos nomes de Flaviano, Nicolau, Bernardino, Januário, José e Joaquim.

Em 28 de Janeiro de 1848 Lucas foi preso, julgado, condenado à forca em primeiro de março e executado a 26 de Setembro de 1849, no Campo do Gado, depois de percorrer em procissão de morte pelas ruas de Feira de Santana ao lado de dois frades franciscanos e do padre José Tavares da Silva: apesar de regularmente julgado, se houvesse justiça todos os acompanhantes igualmente caminhariam para serem enforcados.
 
- José Brilhante (1824-1873), vulgo Cabe, e tio materno de Jesuíno Brilhante teria sido o descobridor de uma gruta conhecida pelo nome de Casa da Pedra de Patu; a gruta foi moradia e esconderijo de José Brilhante e seus seguidores.

José Brilhante era casado com Gertrudes Franklina de Azevedo.
           
-Jesuíno Alves de Melo Calado (Jesuíno Brilhante, 1844-1879) era filho do major João Alves de Melo Calado e Alexandrina Brilhante de Alencar; nasceu no sítio Tuiuiú, no município de Patu, Rio Grande do Norte.
Casado com Maria Monteiro, Jesuíno foi pai de cinco filhos: Filomena, Alexandrina, Maria, Joana e João.

Jesuíno Brilhante iniciou o cangaço provavelmente em 1871, por causa de brigas com a família Limão (Honorato Limão), protegida por influentes potentados rurais das províncias do Rio Grande do Norte e da Paraíba e ligada ao Partido Conservador.

Jesuíno, cognominado de gentil-homem e bandoleiro romântico, era ligado ao Partido Liberal, foi assassinado por Preto Limão no Riacho dos Porcos, em Belém do Brejo da Cruz, na Paraíba.

Entre os principais seguidores de Jesuíno Brilhante estiveram os seus irmãos Lúcio e João Alves, seu cunhado Joaquim Monteiro, Manuel Lucas de Melo (o Pintadinho), Antônio Félix (o Canabrava), Raimundo Ângelo (o Latada),  Manuel de Tal (o Cachimbinho), José Rodrigues, Antônio do Ó, Benício, Apolônio, João Severiano (o Delegado), José Pereira (o Gato) e José Antônio (o Padre), Manuel Piri, Antônio Simplício.

Muito prestigiado entre os sertanejos e ajudado por uma legião de admiradores, Jesuíno Brilhante era o justiceiro que não tolerava ladrões: certamente este é o motivo pelo qual foi assassinado.

Com exceção dos homens da lei que o considerava um criminoso, todo o povo admirava Jesuíno como heroi, homem digno e amigo, protetor da honra das famílias e da virgindade das moças.
 
-Adolfo Rosa Meia-Noite ( ?  -   ?  ) nasceu em Afogados da Ingazeira, sertão de Pajeú das Flores, em Pernambuco; era filho de Riqueta e Leandro.

Adolfo era o cangaceiro galã, desejado e disputado por todas as moças.; por isso foi alvo de muita inveja e perseguição de outros homens.

O seu pequeno exército compunha-se de aproximadamente dez homens.

Adolfo morreu na Paraíba, em confronto com a polícia.
 
-Silvino Aires Cavalcanti de Albuquerque, após ter brigado com os partidários do General Dantas Barreto (governador de Pernambuco), organizou um bando do qual faziam parte Luís Mansidão e o seu irmão, Isidoro, Chico Lima, João Duda, Antônio Piúta e, posteriormente, os seus sobrinhos Zeferino e Manoel Batista de Morais (Batistinha). 
 
-Francisco Batista de Moraes era o esposo de Balbina Pereira de Morais.
Pai de Manoel Batista de Moraes e de Antõnio Silvino.
 
-Antônio Silvino  trabalhava para o seu tio latifundiário Silvino Aires Cavalcanti de Albuquerque e ficou conhecido pelo apelido de Rifle de Ouro; iniciou-se no cangaço em 1896; nasceu em Afogados da Ingazeira, uma pequena cidade situada às margens do rio Pajeú das Flores, sertão do Estado de Pernambuco. Era filho de Francisco Batista de Morais e de Balbina Pereira de Morais.
 
-Sebastião Pereira da Silva (Sinhô Pereira, 1896-  ?  ).  
Nascido no Pajeú pernambucano, Sinhô Pereira era neto do Barão de Pajeú.
No ano de 1916, Sinhô Pereira aderiu ao cangaço, no sertão de Serra Talhada, para vingar a morte de seu irmão Né Pereira, colocando em rebuliço aquele Sertão Pernambucano: brigas sanguinolentas arrastavam-se entre as famílias Carvalho e Pereira.
 
-Virgulino Ferreira da Silva (o Lampião, 1898-1938) é um dos mais famosos cangaceiros do Brasil, juntamente com Maria Bonita, e deve ser revisto em capítulo especial.
 
-Cristino Gomes da Silva Cleto, o Corisco, era filho de Manuel Gomes da Silva e de Firmina Cleto.

Corisco nasceu em Água Branca (Alagoas), em 10 de agosto de 1907 e morreu em Jeremoabo (Bahia) em 25 de maio de1940.

Em 1926 decidiu fazer parte do bando de Lampião: por sua beleza física, porte físico viril e atlético, cabelos longos e loiros, foi apelidado de Diabo Loiro logo que se tornou membro do bando.

Uma de suas notáveis façanhas de amor foi ter raptado Sérgia Ribeiro da Silva (apelidada de Dadá) quando esta tinha treze anos de idade: o casal teve sete filhos, dos quais apenas sobreviveram três.

Embora posteriormente Diabo Loiro e Lampião tenham se desentendido, levando o primeiro a constituir o próprio bando, entre os dois permaneceu uma sincera amizade.
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Julgando-se pela filmografia brasileira e pelos livros publicados sobre o cangaço, vê-se a constituição arquetípica de um modelo de homem brasileiro – expresso pelo cangaceiro:

-"Os Três Cangaceiros", de Victor Lima, produzido no Brasil em 1959;
-"A Morte Comanda o Cangaço", de Carlos Coimbra, produzido no Brasil em 1960;
-"Deus e o Diabo na Terra do Sol", de Glauber Rocha, produzido no Brasil em 1964;
-"Lampião, o Rei do Cangaço", de Carlos Coimbra, produzido no Brasil em 1964;
-"Memória do Cangaço", de Paulo Gil Soares, produzido no Brasil em 1965;
-"Riacho de Sangue", de Fernando de Barros, produzido no Brasil em 1966;
-"Cangaceiros de Lampião", de Carlos Coimbra, produzido no Brasil em 1967;
- "Meu Nome É Lampião", de Mozael Silveira, produzido no Brasil em 1969;
- “Corisco, o Diabo Loiro", de Carlos Coimbra, produzido no Brasil em 1969;
- “A Vingança dos Doze", de Marcos Faria, produzido no Brasil em 1970;
-"Jesuíno Brilhante, o Cangaceiro", de William Cobbett, produzido no Brasil em 1972;
-"As Cangaceiras Eróticas", de Roberto Mauro, produzido no Brasil em 1974;
-"O Último Dia de Lampião", de Maurice Capovilla, produzido no Brasil em 1975;
-"A Mulher no Cangaço", de Hermano Penna, produzido no Brasil em 1976;
-"O Cangaceiro Trapalhão", de Daniel Filho, produzido no Brasil em 1983;
-"Baile Perfumado", de Paulo Caldas e Lírio Ferreira, produzido no Brasil em 1996;
-"Corisco e Dadá", de Rosemberg Cariry, produzido no Brasil em 1996;
-"Lampião, Sonhos de Bandido" ("Lampiao, Rêve de Bandit"), de Damien Chemin e Nicodome de Renesse, produzido na Bélgica em 2007.

Com relação aos livros publicados sobre o cangaço, pode-se citar alguns deles:
- Municípios da Bahia, de autoria de Guimarães Covas (1909).
- O Cabeleira, de autoria de Franklin Távora
- Cangaceiros, de autoria de José Lins do Rêgo
- Presença do Nordeste na Literatura, de autoria de José Lins do Rêgo
- Pedra Bonita e Cangaceiros, de autoria de José Lins do Rêgo
- Flor de Romances Trágicos, de autoria de Luís da Câmara Cascudo
- Jurisdição dos Capitães – A História de Januário Garcia Leal e Seu Bando, de autoria de Marcos Paulo de Souza Miranda
- Lampião e Maria bonita, de autoria de Liliana Iacocca
- Dadá: Bordando o Cangaço, de autoria de Lia Zatz
- O Cangaço, de autoria de Antônio Carlos Olivieri
- Cangaço - a guerra no sertão da República, de autoria de Júlio Emílio Bráz
-  Incrível mundo do cangaço, de autoria de Antônio Vilela de Souza
- O cangaço na poesia brasileira, de autoria de Carlos Newton Júnior
- O cangaço no cinema brasileiro, de autoria de Marcelo Didimo
- Estrelas de Couro - a estética do cangaço, de autoria de Frederico Pernambucano de Mello
- Ecologia do Cangaço, de autoria de Melquíades Pinto Paiva
- História do Cangaço , de autoria de Maria Isaura Pereira de Queiroz
- O outro lado do cangaço, de autoria de Roberto Pedrosa Monteiro
- Bando de Dois, de autoria de Danilo Beyruth
- Cangaceiros – homens de couro, de autoria de Mozart Couto
- O Cabra, de autoria de Flávio Luiz
- Os Cangaceiros, de autoria de  Luiz Bernardo Caricá
- Iconografia do Cangaço, organizado por Ricardo Albuquerque
- Cangaceiros, de autoria de Elise Grunspan-Jasmin e Frederico Pernambucano de Mello. 2006
- O Cangaço, de autoria de Júlio Chiavenato (1996)
- Cangaceiros e fanáticos, de Rui Facó (1963)
- Mossoró e o Cangaço, de Antônio Kydelmir Dantas de Oliveira (1997)
- Contribuição a uma bibliografia do Cangaço, de autoria de Paulo Medeiros Gastao (1996)
- Bandidos, de E. J. Hobsbawn (1975)
- Guerreiros do Sol – Banditismo no Nordeste do Brasil, de autoria de Frederico Pernambucano de Mello (1985)
- Jesuíno Brilhante – o cangaceiro romântico, de autoria de Raimundo Nonato (1998)
- Lampeão, sua história, de autoria de Érico de Almeida (1926)
- Lampião: as mulheres e o cangaço, de autoria de Antônio Amaury Correia de Araujo
- Lampião Senhor do Sertão Vida e Morte de um Cangaceiro, de autoria de Elise G. Jasmin
- Lampião - O Rei dos Cangaceiros, de autoria de Billy Jaynes Chandler (1981)
- Os Homens que Mataram o Facínora - A História dos Grandes Inimigos de Lampião, de autoria de Moacir Assunção

- Lampião - Herói ou Bandido ? Carlos Elydio Corrêa de Araújo e Antonio Amaury Correa Araujo
- A História de Lampião Junior e Maria Bonitinha, de autoria de Januaria Cristina Alves
-Lampião - O Invencível - Duas Vidas, Duas Mortes - O Outro Lado de Moeda, de autoria de Jose Geraldo Aguiar

- Lampião e Maria Bonita - O Rei e a Rainha do Cangaço - Série Clara Luz, de autoria de Liliana Iacocca
- O Amor de Virgulino, Lâmpião, de autoria de Luciana Savaget
-Lampião na Cabeça, de autoria de Luciana Sandroni
- Lampião ... Era o Cavalo do Tempo Atrás da Besta da Vida, de autoria de Antônio Klévisson Viana
- Assim morreu Lampião, de autoria de Antônio Amaury Correia de Araújo (1982)
- Serrote Preto: Lampião e seus sequazes, de autoria de J. Rodrigues de Carbalho (1974)
- Lampião: capitão Virgulino Ferreira, de autoria de Nertan Macedo (1975)
- Sinhô Pereira: o comandante de Lampião, de autoria de Nertan Macedo (1975)
- Lampião, seu tempo e seu reinado (II – A guerra de guerrilhas – fase de vinditas), de autoria de Frederico Bezerra Maciel (1985)
- A marcha de Lampião – assalto a Mossoró, de autoria de Raul Fernandes (1999)
- De Virgulino a Lampião, de autoria de Vera Ferreira e Antonio Amaury C. de Araújo (1999)

O arquétipo do cangaceiro é o mesmo arquétipo do heroi: certamente por isto o extenso estudo no Brasil sobre o cangaço e os cangaceiros, da mesma forma que se estudam extensamente os herois da mitologia grega.

Diferentemente dos heróis gregos, os heróis brasileiros encarnados na vida do cangaço e na história de vida de seus protagonistas – os cangaceiros – não são filhos de deuses e de mortais.

A masculinidade quase mítica dos cangaceiros está presente no ideal de masculinidade do homem brasileiro: daí a numinosidade de suas vidas contadas e recontadas e o fascínio popular pelos mesmos. Fascínio, Drama, Tragédia, Virtudes e Não Virtudes, Poder e Virilidade, Agressividade e Ternura, Vigor e Beleza, Rusticidade e Liberdade são algumas das expressões daquela masculinidade temida e desejada.

O arquétipo do cangaceiro, expressão do arquétipo do heroi, é constelado (energizado) por brandura e fúria, por carnalidade vivida e carnalidade anunciada, por medo e desejo, em ciclos permanentes de transformação equivalente ao momento histórico e cultural em que se corporifica.