Deus e os Detalhes
Uma velha citação diz que Deus está nos detalhes. Uma outra, que a poesia é feita de detalhes e pode ser vida. E ainda, que o poeta, como os cegos, é capaz de enxergar na escuridão.
Esta última, como as demais, leva-nos a Borges, com seus espelhos e labirintos. E sem nenhum esforço, vêm-nos à mente alguns poucos e misteriosos versos do poeta argentino:
Às vezes nas tardes uma cara
Nos mira desde o fundo de um espelho;
A arte deve ser como este espelho
Que nos revela a nossa própria cara.
Conheci um outro menino que se assustava com os espelhos. Porque aquela cara que o mirava desde o fundo do espelho não era a cara dele. E se perguntava: “que cara é esta? Eu não sou esta cara!”.
A vida haveria de revelá-la.
Então é certo: a poesia é feita de detalhes e pode ser vida. E cada cara traz um enigma, um mistério, uma história, uma herança. Cada uma com uma fisionomia própria, nunca iguais, mesmo as dos gêmeos mais parecidos, como as impressões digitais, um mistério particular, não a cara, mas o que haveria por detrás dela, a fisionomia particular, a expressão metafísica, a verdadeira e desconhecida face.
Detalhe, espelho, Deus, cara. Cada palavra um símbolo-mágico, metáfora-viva. Homem, alma, espírito. Cada qual haverá de decifrá-la.
E sem nenhum esforço da memória, vem-nos à mente Emily Dickynson, novamente, a murmurar:
A palavra morre
Quando é dita,
alguém diz.
Eu digo que ela começa
A viver
Naquele dia.
As palavras não são metáforas-mortas, são vivas que podem e devem evoluir através dos tempos; principalmente as que representam certos conceitos de extrema importância para o ser humano: vida, mente, existência, Deus, felicidade, alma, espírito, inteligência, sensibilidade.
A palavra “pedra”, por exemplo, refere-se a algo físico que conhecemos e pode nos vir à mente no exato momento de ouvi-la.
Quando ouvimos Drummond dizer: “havia uma pedra no caminho”, a sutileza metafísica é gritante; já não é uma pedra física, é mental, um obstáculo a ser removido, um problema a ser resolvido.
A palavra Deus, dependendo de quem a ouça, reporta a uma imagem que vem do conceito que se tenha; pode ser um senhor com uma enorme barba e que vive no céu, ou o próprio Universo com tudo o que nele existe, ou um animal sagrado, o sorriso de uma criança, o gesto generoso de quem nos ajuda, ou uma inteligência maior de onde todas as demais provêm, ou absolutamente nada. A palavra refere-se ao conceito e pode, sim, ser uma metáfora-morta se não evolui com o tempo transformando-se num preconceito.
As palavras, expressões físicas dos pensamentos, são pequenos detalhes com os quais se poderá chegar a Deus ou mergulhar na escuridão.
Nagib Anderáos Neto