Coração Inquieto

“Só quando chegamos a saber que também valemos alguma coisa para os outros, sentimos a significação da própria existência”, disse o tenente Hoffmiller, personagem criado por Stefan Zweig em Coração Inquieto.

Acrescentaríamos à perspicaz observação do escritor austríaco que devemos valer, antes de tudo, alguma coisa para nós mesmos para sentirmos uma significação ainda maior da própria existência, pois ninguém pode dar a outro o que não tem, ensinar antes de haver aprendido, ajudar sem antes haver ajudado a si próprio.

Quando valemos alguma coisa para outra pessoa, a nossa vida se amplia; junta-se ao nosso minúsculo existir uma outra existência dando à nossa uma significação que desconhecíamos.

O espírito humano traz consigo a vocação por se unir, mental e sensivelmente, a outros seres. Essa vocação lhe permite, na família e na sociedade, sentir e compreender que a sua trajetória evolutiva depende dessa expansão do existir individual no coração e na mente de outros seres humanos. Assim é como se pode experimentar dentro de si a realidade de outras vidas, de outros seres, e também expandir a própria existência em outras existências.

O jovem Hoffmiller inquietou-se ao sentir, por primeira vez, o sofrimento alheio. Apenou-se, profundamente, ao estabelecer uma relação de amizade com uma deficiente. Mal sabia o personagem que acabava de tomar contato com uma capacidade sensível que todo o ser humano tem e que lhe pode ser muito útil na experiência da vida: a capacidade de consentir, quer dizer, de experimentar dentro de si o sofrimento ou a alegria de outras pessoas. E que essa capacidade latente pode ser desenvolvida de forma que se possa ampliar o nosso sentir e ser úteis a nós mesmos e aos outros seres humanos.

Essa ampliação de nossa capacidade de sentir e de consentir poderá nos livrar da indiferença, um mal psicológico que nos afasta da humanidade, que nos torna frios diante do sofrimento alheio e nos faz olhar para a humanidade como se não fizéssemos parte dela.

O mutismo da morte é indiferente a tudo. E a pior morte é a morte-em- vida, a inércia absoluta. Assim, somos capazes de presenciar um pôr-do-sol e nada sentir; de respirar o primeiro ar da manhã e deixar os primeiros raios solares tocarem a nossa pele com a mais absoluta indiferença; ou presenciar cenas de barbárie nas guerras documentadas ou no telejornalismo sensacionalista-policial e olhar tudo como obra de ficção, algo irreal que nada tem a ver conosco.

Possivelmente, o coração do personagem Hoffmiller não sobreviveria neste mundo onde os horrores e os sofrimentos que nos cercam vão crescendo de forma exponencial, assim como não sobreviveu o seu ilustre criador- o escritor Stefan Zweig- ao por fim à própria vida por não se conformar com os horrores da grande guerra que presenciou.

Se, por um lado, não podemos ser indiferentes a nada, devemos, também, ser fortes para sobreviver às tormentas que se abatem sobre nós e intervir no processo de reconstrução de um novo mundo, de um novo homem que haverá de surgir das cinzas do velho homem irascível e violento, e tal qual o pássaro imortal, ressurgir das próprias cinzas.

Se o homem é a medida de todas as coisas, como disse há séculos Protágoras, e se temos dentro de nós uma voz divina, como disse Sócrates, há então para nós alguma esperança.

E talvez cheguemos a compreender o que Hoffmiller não conseguiu: deveremos chegar a saber que valemos alguma coisa para nós mesmos e para os demais para que a nossa vida tenha algum significado.

Nagib Anderáos Neto

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Nagib Anderáos Neto
Enviado por Nagib Anderáos Neto em 25/07/2005
Código do texto: T37496