Poeta em anos de prosa
Tornando-nos permissivos, imaginando que o materialismo e o dinheiro que nos rege, isto é, "o mundo de Sancho Pança", corresponderá aos nossos anseios é uma grande inverdade.
Infelizmente, acontece que em tempos de prosa nos defrontamos com questionamentos a priori sem explicações, indiferenças, descaso das autoridades governamentais, o poder da mídia, desemprego, a competição, violência, a fome, a solidão, a perda até do amor por si próprio ... enfim,tudo nos levando a crer, por mera passividade, que seremos felizes, driblando obstáculos sem nada fazer para enfrentá-los, ou melhor, saltando fora, ignorando-os por ser mais fácil.
É claro que tecer sonhos em meio a labirintos não é proibido e fechar os olhos para a realidade é impossível. Então, o que fazer? Será que "o mundo de Quixote" jamais virá ou dependerá de nós, construí-lo? O que se faz necessário no momento em busca da realização pessoal de um ideal é lutarmos.
Chegou a hora de navegarmos na contramão,unidos, certificando-nos de que a vida é a plenitude do eu, e que, a emoção ainda fala mais alto diante de tanta tecnologia. Logo, precisamos de cultura, leitura, arte, literatura ... Cultura para adquirir conhecimentos que através da leitura do mundo, sejamos capazes de explorar a complexidade, indagar o que nos aflige, multiplicar o poder de observação enfim, percebendo que o bom livro é como a onda do mar, que no vai e vem se renova a cada segundo, a cada momento, capaz de emocionar, refletindo sentimentos e acontecimentos. Leitura, esta, que também nos permite não só brincar com as palavras numa forma de lazer, experimentando explorar universos diferentes, como também trazer para o cotidiano, sugestões, as quais possamos nos espelhar para nos tornarmos cidadãos introspectivos e questionadores.
"Assim - palavras de Ana Maria Machado (1) - vamos divagar. Devagar como uma borboleta. Ligeiros como um beija-flor. De flor em flor, nos alimentando do que nos atrai e dá prazer. E, talvez, quem sabe?, ao mesmo tempo fecundando e garantindo a continuidade de uma vida futura".
Desta forma, através da sensibilidade e arquitetando o real de um mundo sem opressões e mistérios não devemos nos deixar levar em momento algum pelas aparências, imaginando sempre que há possibilidade de construir sobre a realização do prosaico, a arte de se tornar poeta em tempos de prosa.
(1) MACHADO, Ana Maria. Contracorrente - Conversas sobre Leitura e Política. Palestra dada no IX Congresso Internacional de Leitura , Bogotá, abril de 1997. S. Paulo, Ed. Ática, 1999.