UM PRESÍDIO ONDE OS PRESOS TÊM LIBERDADE

* Texto completo da reportagem publicada em fevereiro/2012 no Diário do Norte.

Mariano cumpre, de segunda a sexta, o mesmo ritual: levanta cedinho, toma um banho, escova os dentes, toma um café, pega sua bicicleta e vai para o serviço. Ele trabalha no Fórum de Goianésia. Ao final da tarde, cansado, retorna, pedalando sua bicicleta. Marcelo também enfrenta uma rotina árdua: levanta com o raiar do dia, cuida da higiene pessoal, bebe um cafezinho, pega uma enxada e vai labutar em um lavoura de milho.Cumpre sob o sol oito horas de trabalho.

Os nomes dos dois trabalhadores são fictícios para proteger suas identidades. Quem leu o primeiro parágrafo da reportagem deve estar entediado, achando que se trata de dois trabalhadores comuns de Goianésia. Diferente de milhares de outros combatentes, eles não voltam para casa para receber o carinho da mulher e o afago dos filhos. Não vão sair para passear com o cachorro no início da noite. Eles cumprem pena no CISG (Centro de Inserção Social de Goianésia). Mariano, ao retornar do Fórum no fim do dia, tem seu merecido descanso na sua cela. Marcelo está em uma situação mais privilegiada: junto com outros quatros detentos cuidam de uma horta nos arredores da cidade. Lá ficam em um barracão, construído pelos próprios presos. Os materiais foram doados pela comunidade.

Os dois presos podem, com justiça, serem chamados de reeducandos. Eles não são os únicos apenados que trabalham em Goianésia. Ambos são, por enquanto, os únicos que recebem uma espécie de salário do Estado. Dos 175 presos do regime fechado na cidade, aproximadamente 70 realizam algum tipo de serviço. Há detentos trabalhando no Fórum, nas polícias Civil e Militar, no Corpo de Bombeiros, na horta e nas obras de reforma do CISG. Obras como a construção da sede do Genarc, reforma da Delegacia de Polícia e pintura do quartel do Corpo de Bombeiros foram realizadas por presos. Além dos que se dedicam ao artesanato. O suor derramado não é em vão: a cada três dias trabalhados, um dia é diminuído na pena, segundo o sistema de remissão. Mais que isso: acaba com a ociosidade e o tempo livre para pensar e fazer coisas erradas.

NOVA FILOSOFIA

Mas nem sempre a paz reinou no presídio de Goianésia. Esta pacificação ganhou corpo quando o bacharel em Direito, Márcio Moreira, 41 anos, assumiu a direção do CISG há oito meses. Primeira pessoa da cidade a ocupar o posto, Moreira vem realizando uma revolução. Mesmo sem ter um espaço adequado, implantou a filosofia do respeito entre os presos e eles têm respondido positivamente. “A orientação do nosso presidente da Agência Goiana do Sistema de Execução Penal, Dr. Edemundo Dias de Oliveira Filho, e da nossa regional, é para que apostemos na ressocialização, por isso trabalhamos com eles quatro elementos: fé, respeito, trabalho e educação. Temos colhidos muitos resultados”, garante.

Não são poucas as mudanças. Além da jornada de trabalho, 29 detentos freqüentam uma sala de aula montada dentro do presídio. Através de uma parceria com a rede estadual de educação, é ministrada a primeira fase do Ensino Fundamental. Está sendo preparada uma sala para receber equipamentos de uma empresa privada, que irá utilizar mão-de-obra do CISG. Toda sexta-feira, grupos ligados às igrejas católica e evangélica ministram momentos de música e leitura da Bíblia. Os presos participam com entusiasmo.

Márcio Moreira conta que a primeira coisa que fez ao assumir foi mudar a forma de tratamento destinado aos presos e aos seus familiares. “São tratados como seres humanos que são, chamamos pelo nome, temos que entender que eles têm uma dívida com a sociedade e estão pagando. Estão privados de sua liberdade, não da dignidade”, diz. Diferente da esmagadora maioria dos presídios brasileiros, onde o preso sofre maus tratos e vive em constante tensão, sempre tramando alguma vingança contra os carcereiros, em Goianésia há uma espécie de pacto. Recebem confiança e tratamento humanizado da direção e retribuem, trabalhando, estudando e mantendo a ordem. “Há um critério rígido. Por exemplo, os presos que fazem trabalhos externos já cumprem um certo tempo da pena, demonstraram bom comportamento, conquistaram a confiança”, explica Márcio.

PACIFICAÇÃO

Quando o atual diretor assumiu, o presídio era uma verdadeira panela de pressão. Havia uma cela escura, abafada, sem qualquer ventilação, denominada “latão” pelos presos. Os que cometia algum ato de indisciplina eram mandados para lá para expurgar o pecado. Era o inferno dentro do purgatório. Não havia sequer bancos para os presos sentarem nos pátios das celas. O trato era na base do grito e da força. Quinta-feira, dia dedicado à visita das famílias, era um terror: centenas de pessoas se aglomeravam na rua 22, sob o sol, expostas à curiosidade alheia e adentravam o presídio, como gado no curral, sem receber qualquer dignidade. Acuadas, sufocadas em um corredor. Corredor da morte, diziam alguns.

A realidade mudou muito. A solitária, também conhecida como latão, foi eliminada da paisagem do presídio. Segundo os próprios presos não há mais uso da violência por parte da direção. Foram construídos bancos de cimento nos pátios. As famílias agora têm uma sala de espera com assentos e conforto. “Eles hoje sonham com um mundo melhor lá fora, querem trabalhar, estudar, ser alguém, sair daqui com perspectivas”, afirma o diretor.

"SOMOS PRIVILEGIADOS POR ESTARMOS AQUI"

A frase acima foi pronunciada por um dos cinco presos que desfrutam de uma certa regalia: graças às suas condutas pessoais, à confiança do diretor Márcio Moreira e a permissão da juíza da Vara Criminal, Lorena Rosa, eles “moram” fora da cadeia. Durante o dia trabalham na horta, que tem ainda um milharal, mandioca e quiabo, e dormem no barracão construído no local. Por falta de efetivo suficiente, eles não são vigiados. Podem fugir se assim desejarem. Há seis meses participam do projeto e nem sonham em escapar da pena desta forma. “Não vamos trair a confiança depositava em nós, aqui somos tratados como gente, somos a prova que a ressocialização existe”, diz um detento, que já soma 28 meses de pena.

O projeto da horta foi montado graças à prefeitura, que cedeu o local, próximo ao PETI (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil) e à Anglo American, que doou recursos para instalação de quatro estufas, onde são produzidos alfaces. Parte dos alimentos que saem da horta são utilizados para reforçar o cardápio servido no presídio. O excedente é vendido e o dinheiro revertido para a reforma e ampliação do prédio do CISG.

REFORMA HUMANIZA INSTALAÇÕES DO PRESÍDIO

Quem visita o presídio de Goianésia não precisa ser um especialista em cárcere para concluir que as instalações não são as mais adequadas para receber aproximadamente 200 pessoas e oferecer segurança, condições dignas e possibilidades de recuperação. “O ideal é um espaço fora do perímetro urbano, com espaço e estrutura para acolher os reeducandos com mais dignidade, estamos batalhando para isso, mas é um projeto a médio prazo”, explica Márcio. Enquanto isso não acontece a vida segue.

A realidade já foi muito pior. Com a doação pela Prefeitura do antigo prédio da Apae (anexo ao presídio) um novo horizonte se abriu. Até junho, de acordo com Márcio Moreira, estarão prontas as mudanças. E são muitas. Sem recursos oficiais para a empreitada, ele teve que passar o chapéu. Com exceção de uma verba de R$ 4 mil que a câmara municipal destinou através da Prefeitura, os R$ 30 mil gastos nas obras até agora foram oriundos de doações da comunidade. Um dá um saco de cimento, outro doa tijolos e assim caminha o projeto. A mão de obra é exclusiva dos próprios detentos.

A principal mudança é a separação da parte administrativa do cárcere. Antes, todos entravam pelo portão principal, o que fragilizava a segurança e não oferecia conforto aos visitantes. Estão sendo criados na nova estrutura: parlatório, espaço adequado para revistas dos visitantes, gabinete odontológico, consultório médico, assistência social, sala de qualificação profissional, cartório, sala da administração, cozinha e refeitório para os servidores. “A comida passará a ser feita aqui no presídio pelos próprios reeducandos, com supervisão de profissionais, queremos eliminar o desperdício”, anuncia Márcio. Todo o espaço está sendo feito com acessibilidade. “Um cadeirante pode entrar da mesma forma que uma pessoa que chega aqui andando”, acrescenta. Logo na recepção será montada a loja do artesanato, onde serão expostos e comercializados os itens fabricados dentro do presídio. “É, para muitos, a única forma de conseguir recursos para comprar produtos como uma bolacha, um creme dental”, diz o diretor.

“Mas tijolo nenhum, estrutura física nenhuma se comparam à pacificação que conseguimos conquistar, à humanização do cárcere. Parte considerável disso devemos aos reeducandos, que estão correspondendo à confiança, estão interessados em sair da cadeia pessoas melhores”, simplifica Moreira.

Anderson Alcântara
Enviado por Anderson Alcântara em 03/03/2012
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