PARDO : UM RIO FANTASMA
“Hei de permanecer junto a esse rio ! — pensou Sidarta “.
Hermann Hesse
No mês de outubro de 2003 , ou seja , há mais de um ano , publiquei nos jornais de Ribeirão um artigo sob título : Rio Fantasma .
Nele eu dizia:
“Sábado de manhã , beira do Pardo , poucos dias após a passagem de oito toneladas de melaço que deixaram, no rastro de morte, um odor horrível ( da decomposição de peixes mortos ) e um rio fantasma , um cemitério líquido com mais de cento e cinqüenta quilômetros e , aproximadamente, duzentas toneladas de farto cardápio para os urubus .
Nenhum movimento diferente : somente a água ( água ?) melosa, seguindo o curso de milhões de anos e levando garrafas de pet , frascos de detergentes ,caixas de isopor, e outros objetos .
Nenhum pescador , nenhum barco , nenhuma garça ou bando de periquitos , nenhum cágado , nenhum pato, nenhum pulo de dourado ou curimba formando círculos concêntricos no espelho d’água , nenhuma agitação de lambaris na superfície do que , há poucos dias , era um rio .
Como Sidarta , naquele momento , eu era todo ouvidos , entregando-me por inteiro à própria atenção, receptáculo totalmente vazio , prestes a encher-se ( mas do quê ?) . Sentia que, àquela hora ( em tempos normais ), poderia atingir a derradeira perfeição na arte de escutar . Quantas vezes não ouvira todos aqueles rumores ( produzidos naturalmente por um rio ) , a multiplicidade das vozes , mas , naquele dia, pareciam-me novas ( mudas ? ) . Já não era capaz de identificá-las ( estariam mudadas ?) . Todas elas formavam , até então , uma só voz quando eu escutava, atentamente, o que cantava o rio , com seu coro de mil vozes , quando me abstinha de destilar dele o sofrimento ou o riso , quando cessava de ligar a alma a determinada voz e de penetrar nela com meu espírito . Quando , pelo contrário , ouvia todas elas , a soma , a unidade , a grandiosa cantiga dos milhares de vozes resumia-se numa só palavra , que era Om , a perfeição .
Mas, nesse sábado, eu não ouvi o Om “ .
Agora , passado quase um ano , e dezenas de sábados , a beira do Pardo continua a mesma .
Agoniza ? A essência vital vai ressurgir , talvez um dia , como Fênix no rio ?
O que fizeram as nossa autoridades até agora ? Cadê o Ibama ? Cadê as ONGs defensoras do meioambiente ?
É a burocracia ( ou seria a incompetência , ou descaso ? ) que está impedindo o urgente re-povoamento do Pardo , principalmente no trecho que vai de Serrana até a colônia de pescadores de Colômbia , na divisa de São Paulo com Minas Gerais ?
Tal qual Sidarta , hei de permanecer junto a esse rio , até poder ouvir novamente a palavra inicial e final de todas as orações do bramanismo , o sagrado Om , asfixiado , espero, ainda que temporariamente , por toneladas de melaço.