RITO DE PASSAGEM
“Ele era um velho que pescava sozinho em seu barco, na Gulf Stream”.
Hemingway
Sempre que preciso passar alguns dias fora de casa, tenho a sensação de que vou morrer: mesmo que a viagem seja para o litoral, durante as férias.
É uma sensação de perda, de medo de sair do útero, de uma insegurança inexplicável: sinto-me sozinho na tomada de decisão.
Mas, é claro, acabo sempre indo porque adoro sentir o mar, pular sete vezes setenta ondas, admirar o vôo das gaivotas, envolver-me mentalmente com as quase eternas nuvens escuras que cobrem a Serra do Mar.
Chegando ao meu destino, frente à força do sol, do mar, do vento, da areia, a sensação é incrivelmente gratificante: sinto-me no céu, no meu habitat, no cenário que meus instintos escolhem para realização dos meus melhores sonhos.
Mas na hora da partida, novamente a vontade de ficar confunde-se com o desejo de voltar para casa, para meu aconchego, minha saleta de trabalho, meu computador, meus e-mails.
Esse processo faz-me refletir sobre os infinitos ciclos de nascimento e de morte que, inexoravelmente, fazem parte da vida de todo ser humano.
Penso que, quando estamos vivos, não queremos morrer, apesar de toda a curiosidade que cerca a vida após a morte, simplesmente porque não temos uma mínima idéia do que é a imortalidade.
Mortos, tenho a impressão de que, mesmo estando muito bem, voltamos a sentir saudades de todas as coisas que vivemos em vidas anteriores na terra, e a vontade de voltar far-se-á sentir a qualquer momento.
Essa vontade de estar em casa e na praia, parece-me do mesmo tipo daquela que nos faz querer estar no céu sem sair da terra e vice-versa.
Também é interessante o ritual que envolve cada dia, passado em férias, na praia, quando o tempo está instável.
Cada raio de sol é absorvido como se fosse o último, cada onda é vencida como se fosse a última, cada caminhada matinal na areia é como se fosse a de despedida, e tudo isso por não sabermos se, no dia seguinte, teremos outra oportunidade de sentir o calor do sol, a força das ondas, a maciez da areia.
E então, envolvido por essa atmosfera mística, volto meus olhos para a enorme imagem de Iemanjá, construída perto da divisa das praias Ocian e Mirim, na Praia Grande, faço uma saudação — Odoiá, minha mãe —, deixo meu presente para a Rainha do Mar e volto para debaixo da proteção do meu guarda-sol para tomar uma cerveja gelada e comer um espeto de camarão.
É tudo um rito de passagem.
É tudo muito mágico.
É tudo muito simbólico como a mensagem sinuosa e indecifrável que escreve o vôo de um bando de dezenas de alvíssimas aves, acima da linha do horizonte, sobre as pesadas nuvens em alto mar.