Projeto Quelônios da Amazônia: um breve histórico
Muitas espécies de quelônios (tartarugas, cágados e jabutis), em diversas partes do mundo, apresentam uma grande importância alimentar e econômica, tendo seus ovos, carne, vísceras, gordura e casco utilizados intensamente pelas populações locais.
No Brasil, a exploração das espécies de quelônios que ocorrem na Amazônia data do Período Colonial, tendo sido documentada em relatos de naturalistas que viajaram pelo rio Amazonas e seus afluentes (Alexandre Rodrigues Ferreira, Johann Baptist von Spix e Karl Friedrich Philipp von Martius, Francis de la Porte - Conde de Castelnau, Alfred Russel Walace e Henry Walter Bates) e por pesquisadores e escritores (Silva Coutinho, José Veríssimo Dias de Matos, Alípio de Miranda Ribeiro, Emílio Augusto Goeldi, Manuel Nunes Pereira etc.), descrevendo densidades extraordinárias de ninhos e o emprego maciço de ovos na produção comercial de óleo.
Antes do aparecimento do querosene e do carbureto, o “óleo” ou “manteiga” produzida a partir dos ovos da tartaruga-da-amazônia (Podocnemis expansa) era amplamente empregada na iluminação de lamparinas.
A “gordura” ou “mixira” era utilizada na produção de alimentos ou na conservação de carnes. A carne cozida ou frita da tartaruga-da-amazônia ou de outro animal, como por exemplo, do peixe-boi (Trichechus inunguis), podia ficar semanas, até meses, imersa na gordura e depois ser consumida.
Como a exploração dos quelônios, especialmente da tartaruga-da-amazônia era algo realmente intenso, o que consequentemente acabava envolvendo um grande número de pessoas e uma elevada geração de divisas, os Governantes, à serviço da Coroa Portuguesa, tomaram diversas iniciativas para racionalizar o uso desses animais.
Uma dessas iniciativas tratava-se da nomeação de um “juiz”, como representante da autoridade colonial, que permanecia nas praias de desova, exigindo que ninguém se aproximasse de tais lugares durante a postura. Quando a postura terminava, os “fabricantes de manteiga”, acompanhados pelo “inspetor” e seus “assistentes”, procediam à captura das fêmeas.
Naquela época, a captura de fêmeas e a coleta de ovos eram bastante ritualizados. Essas atividades eram bem ordenadas e seguiam procedimentos criteriosos estabelecidos pelos representantes da Coroa Portuguesa.
O “inspetor” tinha em mãos uma lista dos “trabalhadores” de cada “fabricante de manteiga”. Na fiscalização, o “inspetor” era auxiliado por um “empreiteiro”, conhecido com a designação de “cabeça de rancho”. O “cabeça de rancho” colocava as pessoas presentes em fileira e dava sinal para o começo do trabalho com o rufo de um tambor ou um tiro de morteiro. Cada “fabricante de manteiga” tinha uma cota pré-estabelecida e cada “assistente” recebia a metade de uma tartaruga como pagamento. Todo o excesso em animais vivos tinha de ser restituído à liberdade e reposto no rio. A terça parte das covas com ovos tinha de ser poupada para a conservação e propagação das tartarugas, somente os dois outros terços podiam ser utilizados para o fabrico de manteiga. Mas, pouco a pouco, essas e outras medidas acabaram sendo desrespeitadas, de forma que a exploração continuou.
No Período Republicano foi promulgado o “Código de Caça e Pesca” (aprovado pelo Decreto n° 23.672, de 2 de janeiro de 1934), para proteção dos recursos faunísticos e pesqueiros, o qual fazia restrições ao seu uso e captura de quelônios.
A “Divisão de Caça e Pesca” era responsável pela proteção da fauna de quelônios, mas, novamente, assim como as primeiras iniciativas tomadas ainda no Período Colonial, pouco efeito teve para proteção desses animais. Em 1962, a “Divisão de Caça e Pesca” se transforma na SUDEPE (Superintendência do Desenvolvimento da Pesca, vinculada ao Ministério da Agricultura), através da Lei Delegada nº 10, de 11 de outubro de 1962. Mas, essa mudança, pouco beneficiou aos quelônios.
Conforme registrado por IBDF (1973), no rio Trombetas (Pará), muitos “Agentes da Caça e Pesca” comprometeram as ações de proteção aos quelônios, permitindo não só o massacre de milhares de filhotes, como a apanha indiscriminada de animais adultos.
O Governo Federal, para tentar reverter esse quadro, em 1964, iniciou as primeiras ações de proteção aos quelônios nos rios Trombetas (Pará), Purus (Amazonas) e Branco (Roraima) (IBAMA, 1989a). De modo geral, as ações nos rios Purus e Branco restringiam-se unicamente ao patrulhamento dessas áreas no período de desova. Somente no rio Trombetas é que tais iniciativas tiveram continuidade, alcançando o apoio de pesquisadores e de outras instituições.
No rio Trombetas, as ações iniciaram através da extinta “Agência do Departamento de Recursos Naturais Renováveis” (DRNR), que, em 1967, integra-se ao IBDF (Instituto Brasileiro do Desenvolvimento Florestal, vinculado ao Ministério da Agricultura), através do Decreto Federal nº 60.721, de 12 de maio de 1967.
A partir desse momento, as ações de proteção aos quelônios ficariam a encargo do IBDF. Mas, em 1968/69, por força do Decreto-Lei nº 221, de 28 de fevereiro de 1967, que dispunha sobre a proteção e estímulos à pesca, os quelônios foram novamente considerados como pescado, o que forçou a transferência dos trabalhos de proteção no rio Trombetas à jurisdição da SUDEPE.
Mas, como a Delegacia da SUDEPE em Belém era desprovida de recursos técnicos, humanos e financeiros, em 1970, o serviço de proteção aos quelônios retornou ao IBDF.
No início da década de 70, os quelônios, em especial as espécies P. expansa (tartaruga-da-amazônia) e Podocnemis unifilis (tracajá), estavam indicadas para compor a lista de animais brasileiros em processo de extinção. A primeira lista acabou saindo em 1973 (Portaria IBDF nº 3.481, de 31 de maio de 1973), mas as espécies de quelônios da Amazônia ficaram fora dela.
Em 1973, o IBDF elabora um trabalho denominado “Preservação da Tartaruga Amazônica", especialmente para ser apresentado no “Simpósio Internacional sobre Fauna e Pesca Fluvial Lacustre Amazônica”, programado para o período de 26 de novembro a 01 de dezembro de 1973, na cidade de Manaus, Estado do Amazonas.
Esse trabalho estava dividido em três partes e apresentava os registros das experiências acumuladas nesses primeiros anos de proteção aos quelônios. E, após sua apresentação, ficou definido que uma grande equipe composta por pessoas de várias instituições e Estados, sob a coordenação do veterinário José Alfinito, realizaria um amplo levantamento das áreas de ocorrência e de desova desses animais. O que ocorreu nos dois anos seguintes e culminou na publicação do Boletim Técnico nº 05 do IBDF, em novembro de 1978.
Esse levantamento realizado de 1973 a 1975 proporcionou uma ampliação dos conhecimentos relacionados à distribuição, à abundância e principais ameaças desses animais, o que acabou contribuindo para que, em 1975, P. expansa e P. unifilis fossem incluídas no Apêndice II da CITES (Convenção sobre Comércio Internacional de Espécies da Fauna e Flora Selvagem em Perigo de Extinção), pelo Decreto Federal nº 76.623/75.
Outra importante contribuição desse trabalho trata-se da retomada e ampliação das ações de proteção aos quelônios. No início da década de 70, apenas dois rios (Trombetas e Tapajós), ambos no Estado do Pará, estavam sob regime de proteção. Após esse trabalho de José Alfinito e colaboradores, outras áreas passaram a ser protegidas, tais como: rio Branco (1977-78) e rio Xingu (1979).
Em 1979, foi criado o “Projeto de Proteção e Manejo dos Quelônios da Amazônia” coordenado pelo IBDF, objetivando a proteção e manejo reprodutivo dos quelônios de água doce. Com a criação do “Projeto Quelônios da Amazônia”, as ações foram fortalecidas e ampliadas e, com os conhecimentos acumulados ao longo dos anos, o IBDF definiu uma metodologia básica na proteção e no manejo desses animais.
Em 1989, cerca de 10 anos após a criação do “Projeto Quelônios da Amazônia”, o IBDF pela fusão com outros três órgãos federais, SEMA (Secretaria Especial de Meio Ambiente), SUDHEVEA (Superintendência da Borracha) e SUDEPE (Superintendência do Desenvolvimento da Pesca) transformam-se no atual IBAMA (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), que é o órgão executor da política de meio ambiente em nível nacional (Lei Federal nº 7.735, de 22 de fevereiro de 1989).
Antes da criação do IBAMA as ações voltadas para a proteção dos recursos naturais eram realizadas de forma desarticulada por essas quatro instituições, o que dificultava o alcance dos resultados.
O IBAMA para ampliar e integrar as ações do “Projeto Quelônios da Amazônia” cria, em 1990, o CENAQUA (Centro Nacional de Quelônios da Amazônia), através da Portaria IBAMA nº 870/90.
Após 13 anos de experiência e conhecimentos adquiridos com o “Projeto Quelônios da Amazônia”, o CENAQUA possibilitou a normatização da Portaria IBAMA nº 142/92, que regulamenta a instalação de criadouros comerciais de P. expansa e de P. unifilis nas áreas de ocorrência, e mais tarde, da Portaria IBAMA nº 070/96, que regulamenta o comércio dessas espécies, seus produtos e subprodutos.
Na atualidade, existem mais de uma centena de criadouros comerciais espalhados por diversos Estados das regiões Norte e Centro Oeste. Eles são importantes pois promovem a geração de renda e auxiliam na redução da exploração ilegal dos quelônios.
O CENAQUA em 2001, através de uma ampliação e reorganização interna muda, tornando-se o RAN (Centro de Conservação e Manejo de Répteis e Anfíbios) que passa a gerir e licenciar todas as atividades de manejo e conservação dos répteis e anfíbios continentais brasileiros, em todo território nacional, dando prioridade às espécies brasileiras ameaçadas de extinção e às de interesse econômico.
Hoje, o Projeto Quelônios da Amazônia está inserido dentro do “Programa de Conservação e Uso da Herpetofauna” do RAN, são coordenadas 16 bases avançadas e mantidas sob proteção de 115 áreas de reprodução distribuídas nos rios Amazonas, Tapajós, Trombetas, Purus, Xingu, Juruá, Branco, Araguaia, Javaés e Rio das Mortes, entre outros.
Nessas áreas, 06 (seis) espécies são protegidas e manejadas: P. expansa (tartaruga-da-amazônia), P. unifilis (tracajá), Podocnemis sextuberculata (iaçá), Podocnemis erytrocephala (irapuca), Peltocephalus dumerilianus (cabeçudo) e Kinosternon scorpioides (muçuã), devido a importância socioeconômica e cultural que representam nas regiões de ocorrência.
Atualmente, o “Projeto Quelônios da Amazônia” tem como principais estratégias: (1) proteger os principais sítios de reprodução de quelônios, (2) garantir os estoques populacionais de quelônios através das atividades de proteção e manejo, em seu habitat natural; (3) desenvolver e apoiar pesquisas referentes à biologia, ecologia e genética das diferentes espécies de quelônios; (4) garantir o repasse de filhotes ao sistema de criação comercial; (5) desenvolver a educação ambiental, estimular a sensibilização e conscientização das comunidades, através do conhecimento e do respeito à exploração racional dos recursos naturais; e (6) fortalecer o manejo e a proteção das espécies, inserindo as instituições de pesquisa, iniciativa privada e as organizações sociais, no processo de co-gestão.
Ao longo de quase trinta anos, o “Projeto Quelônios da Amazônia” já protegeu cerca de 40 milhões de filhotes das diferentes espécies de quelônios, principalmente da tartaruga-da-amazônia, do tracajá e do iaçá, proporcionando o repovoamento e a recuperação das populações naturais dessas espécies.
Desde então, o RAN tem se consolidado como uma das mais importantes iniciativas ecológicas e de cunho social do Brasil, pois tem garantido não só a sobrevivência das várias espécies de quelônios, como também vem preservando a cultura regional e oferecendo uma alternativa econômica para a região.
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Giovanni Salera Júnior
E-mail: salerajunior@yahoo.com.br
Curriculum Vitae: http://lattes.cnpq.br/9410800331827187
Maiores informações em: http://recantodasletras.com.br/autores/salerajunior