O agente do mal (SERMO CX)

O AGENTE DO MAL

Fiquem longe de toda a espécie de mal! (1Ts 5,22)

Não é difícil explicar ou entender o mal a partir do ato do agente, daquele que pratica o mal. Em geral, aliado ao fator culpa, que no direito tem três atributos (imperícia, imprudência e/ou negligência), pode-se enxergar na liberdade, a porta aberta para a prática de uma ação dolosa. Por que matou? Matou porque quis! Porque é bandido! por vingança! O que leva um indivíduo a cometer um estupro? Desajuste, tara, pressão psicossocial, etc. E o ladrão? Roubou porque faz parte de sua natureza? Porque precisava? Ou porque se deixou levar por más companhias?

Olhando-se, pois, sob a ótica do agente, sempre se encontrará o motivo ou o móvel para a prática de um ato ilícito, imoral e criminoso. Nessa conformidade, o mal é facilmente explicado. Por que fez? Fez porque tinha liberdade de fazer ou não; e preferiu fazer. Aí funciona integralmente o livre-arbítrio, ou seja, o indivíduo é livre para fazer o que lhe vem à cabeça, seja o bem ou o mal.

A dúvida, a questão e mesmo a indignação surge quando passamos a enxergar o mal – o ato e seus efeitos – através da ótica da vítima, do inocente, daquele que, sem fazer nada, sem concorrer para o evento, sofreu em si todas as conseqüências. Porque o criminoso mata, a gente sabe. E por que o inocente é morto? Essas questões, muitas vezes, nas fráguas iminentes de um drama, escutamos traduzidas por um clamor que sobe aos céus: por que, meu Deus?

A incidência do mal na vida humana – ocorrência esta que sempre nos preocupou – foi-nos justificada nos catecismos preliminares, como “vontade de Deus”, quando as pessoas morriam porque havia necessidade de mais anjos no céu. Depois, mais tarde, descobriram que “Deus é amor”, é Pai e “rico em misericórdia”, e essa nova visão não se enquadrava com o Deus vingativo, mais retributivo que misericordioso, do Antigo Testamento.

Nesse contexto, foi-nos dito que o mal é fruto do pecado, e que este ocorre, desde Adão e Eva, por culpa da má condução que o ser humano vem dando à sua faculdade de agir livremente. Então a liberdade, ao invés de um dom, uma graça, passou a ser um perigo, uma ameaça? Sim, pois se o homem não fosse livre, não cometeria as faltas que a liberdade lhe faculta. Seria por isto que Sartre afirmou que “o homem está condenado à liberdade”?

A grande verdade é que o mal existe, a despeito de nossos protestos, indignações e reclamos. E existindo afeta diretamente nossa perspectiva de vida, uma vez que o mundo infenso sempre nos apronta armadilhas. Estamos bem agora, mas podemos ser vítimas do mal daqui a pouco e, na maioria das vezes, não temos explicações para o fato. O caso, assustador, é que muitos de nós têm teorias sobre o mal, mas ninguém está preparado para conviver com ele.

Em bibliografias, nacionais e estrangeiras, lê-se referências ao problema do mal. Ora, entendo que a expressão problema não se presta ao caso, pois todo o problema, como as equações matemáticas que fizeram nosso tormento na escola (a não ser que estejam interpoladas de algum erro) tem solução. E com o mal, tal não ocorre. Respostas e soluções são insuficientes, parciais e via-de-regra respondem muito pouco, ou quase nada.

Assim, neste trabalho vou procurar evitar a expressão “problema do mal”, transmutando-a para a questão do mal, uma vez que questão inflete mais na direção de uma pergunta. E as perguntas, sabemos, nem sempre têm respostas satisfatórias ou compreensíveis.

As questões, no tocante à existência do mal, são várias, freqüentes e recidivas. Quem criou o caos ou o mal? A resposta é imediata: “Não foi Deus! Pode ter sido o Diabo...”. Ora, sabemos que o Diabo não é criador de nada; ele não tem poder para criar. Deus podia ter evitado o surgimento do mal? Por certo que sim, mas em função do mistério insondável não se sabe por que motivo não o fez.

Ah, dirão, então o mal é criação do homem, que por uma mixórdia moral entre decisões e liberdade permitiu que o mal... O homem não poderia, pois o mal é anterior a ele. Além disto, o homem é criador? E criador de algo tão forte que nem Deus consegue erradicá-lo? A questão é complexa...

Por que existe o mal? De onde ele vem? Se do mais íntimo de seu ser o homem deseja o bem e almeja a felicidade, por que ele pratica o mal? Por que o mal o acompanha em todas as circunstâncias de sua vida, em todos os seus atos, em todas as suas experiências? Se o homem foi criado por um Deus bom não deveria existir apenas o bem? Essas perguntas fazem parte dos mais importantes questionamentos axiológicos que o homem pode fazer a respeito de sua existência.

De fato, o mal é a outra face da realidade e a idéia que tivermos dele constituirá parte considerável da idéia que construiremos de toda a realidade. Ele precisa, pois, ser entendido para que se possa entender o mundo. E também para que se possa limitar suas investidas, de maneira mais eficaz.

Durante toda a história humana, várias respostas foram dadas às questões sobre o mal. Em geral tais enunciados se apresentam ou de forma insatisfatória ou com argumentos bastante negativos, estendendo um véu sombrio, capaz de cobrir a existência do homem, gerando medo, pessimismo ou um fatalismo irracional.

Mesmo sabendo que não teremos condições de responder a muitas questões, é possível levantar uma série de indagações, reproduzindo aqueles questionamentos que nossa relativa experiência nos proporcionou.

A pergunta que se faz, neste início de reflexão, é se essas idéias tradicionais, negativas muitas delas, poderiam ainda hoje ser consideradas válidas. Ou há outra forma de compreender a questão do mal? O surpreendente avanço do saber humano, a partir da filosofia, da teologia e das demais “ciências humanas”, realizado nos últimos tempos não estaria possibilitando e, mesmo, exigindo de nós uma nova compreensão do mal?

Na minha tese de doutorado (“Deus é bom! Então por que existe o mal?”) eu levantei uma questão que me valeu uma séria polêmica com os orientadores nacionais e estrangeiros: “Na questão do mal, não haveria certa culpa de Deus por nos haver criado tão frágeis e vulneráveis ao assédio do mal?”.

O presente trabalho visa manifestar vestibularmente um ponto de vista, uma tese, a opinião do autor, a respeito do mal. Daquele mal que praticamos e sofremos, como também o mal que inflete sobre o inocente.

Paradoxalmente, quando se fala no mal, parece que todos têm a sua definição, sua forma de enxergar a questão, ou suas definições próprias. Embora o mal seja uma coisa dificilmente “digerida” pela humanidade, ele hoje é um assunto que muita gente pretende demonstrar conhecimentos. Talvez, pensam, dizendo conhecê-lo, seja mais fácil de entender e domesticar. A verdade é que o mal enseja perguntas e respostas, nem todas respondidas satisfatoriamente.

Para orientar esta fase vestibular do trabalho, indaguei várias pessoas – gente simples, pouca cultura, faixas etárias variadas, homens e mulheres do povo – a respeito do mal. As respostas são interessantes: “É uma ‘coisa ruim’ que a gente sofre, ou faz os outros sofrerem; é a doença, a falta de dinheiro, a inveja, o roubo, as ofensas, as dores, as pisaduras, as enchentes, a seca, as tempestades, as dores, o desprezo, a mentira, as tentações, os vícios, o ódio, os pecados, os desvios morais, a morte e a perdição eterna”.

É curioso notar que, mesmo dentre as pessoas simples, de baixa renda e escolaridade mínima, muitos têm uma noção prática do mal, semelhante àquela elaborada por filósofos, teólogos e psiquiatras. Isto revela que, pela vivência direta e cotidiana com a adversidade, certas categorias sociais têm uma visão intuitiva (e porque não dizer dedutiva) a respeito do mal.

Depois de escutar esse elenco de fatores que caracterizam o mal, foi perguntado: e quem é o autor de todos esses males? Com o mesmo desembaraço dos simples, as respostas fluíram: a gente mesmo; os outros; a natureza, o diabo; ou a vontade de Deus. Nessas respostas (por isto eu falei em “conhecer por intuição e dedução”), todas vindas de pessoas que desconhecem a filosofia e a psicanálise, há curiosamente uma relação com mestres do pensamento. Se não, vejamos:

• a gente mesmo (o si-mesmo, o self de Heidegger ou o

complexo de culpa – de Freud);

• os outros (“o inferno são os outros” – Sartre);

• o diabo (Dostoiévski);

• a vontade de Deus (Jung).

No campo das perguntas que se escuta-se por aí, a respeito do mal, há algumas, que mais que crises de fé, apontam para aquela angústia existencial de quem sofre, na carne e no espírito, o drama: Por que existe o mal? De onde ele vem? Se do mais íntimo de seu ser, o homem deseja o bem e almeja a felicidade, por que ele pratica o mal?

Por que o mal o acompanha do berço ao túmulo, em todos os seus atos, em todas as suas experiências? Por que sofro se tento ser bom? Não deveria existir apenas o bem? Circulando tais questões, há um conjunto positivo e outro negativo. Poderíamos dividir, preliminarmente, as questões em dois grandes grupos: as respondíveis e as não-respondíveis.

As questões respondíveis:

• o que é o mal?

• de onde vem o mal?

• por que sofremos?

As questões sem resposta:

• porque os maus prosperam e os bons sofrem?

• porque o inocente sofre castigos injustos?

As “respondíveis” são mais ou menos fáceis de equacionar. As não-respondíveis vão perpassar todo este trabalho, onde a tônica vai girar em cima do sofrimento do inocente. Se como “advérbio” o mal é tudo aquilo que é contrário as normas eticamente admitidas, qualquer que seja seu campo de aplicação (um trabalho mal feito, por exemplo), como “substantivo” ele designa tudo o que constitui um obstáculo à perfeição do ser humano, e engloba as experiências em que predominam o sofrimento e o dano.

Como questões respondíveis, embora não se queira afirmar nada definitivo, ainda, relacionamos: a) o que é o mal? Ora, o mal é tudo aquilo que contraria o bem, o equilíbrio, a felicidade e a plena realização de nossos projetos. O mal é visto como uma “privação do bem”.

À outra questão, b) de onde vem o mal? Nós sempre temos respostas prontas. Ele vem de nós mesmos, dos outros, da natureza e do sobrenatural. Oriundo de nós mesmos, vemos o mal que é fruto das doenças. Elas se maturam dentro de nós, como resultante de nosso desleixo (falta de cuidado na alimentação, descuido com a forma física, etc. ), também por problemas genéticos, congênitos ou hereditários (doenças mentais na família, deficiências físicas, gestações em idade avançada, vícios como bebida, tabagismo, drogas, país com sífilis ou outros distúrbios capazes de prejudicar a posteridade).

Isto tudo é capaz de gerar organismos deficientes, pessoas fracas e suscetíveis às enfermidades, e que, assoladas pelas doenças, atribuem-nas a outras causas, como “mau-olhado”, “inveja” ou até os irracionais “carmas” das doutrinas espiritualistas.

No tocante ao mal que “vem dos outros”, é aquilo que acontece através da violência, dos acidentes, e pelos descaminhos políticos que geram sofrimentos, etc. A natureza, às vezes, produz o mal: são as enchentes, os furacões, maremotos, secas, etc. Há também o sobrenatural, o mistério do pecado (que a maioria dos especialistas chama de “mal moral”), a influência negativa dos “trabalhos” de macumba, do “olho-grande”, e a influência dos “espíritos maus”.

Por fim, c) por que sofremos? Sofremos porque somos fracos, vulneráveis, frágeis às doenças, às agressões, aos fenômenos da natureza e às ameaças metafísicas, o medo, o pecado e coisas do gênero. Estas respostas é o que de mais superficial existe. Elas foram colocadas aqui, na abertura do trabalho, para orientar o raciocínio e abrir caminho para uma especulação mais concreta. Tudo faz parte de um contexto a ser mais debatido e ampliado.

Nas questões, aqui classificadas como sem resposta, “por que os maus prosperam e os bons sofrem?” ou “por que o inocente sofre castigos injustos?” As soluções já não brotam com tanta facilidade, ensejando respostas imperfeitas, ambíguas, às vezes contraditórias, e tendentes à evasão. Falar em “livre-arbítrio” e “mistério” para justificar essas questões, nem sempre satisfaz o coração das vítimas, ou de seus familiares. O assunto é o fio-condutor do trabalho, cuja iluminação, pelo menos parcial, se pretende estabelecer até as últimas páginas.

É interessante chamar a atenção no fato de, por causa da problemática do mal, as religiões enfrentam grandes dificuldades em lidar com a questão, especialmente na hora de explicar uma circunstância trágica, justificar uma perda ou definir algo imprevisto. A alegação “foi vontade de Deus” não satisfaz mais os porquês do homem moderno.

E nós, sabemos identificar o mal? Somos capazes de avaliar, de forma cristã e inteligente, seu estrago na vida das pessoas e na nossa? As pessoas, em geral, têm respostas e julgamentos para todas as circunstâncias, sempre no aspecto empírico, na teoria dos achismos cotidianos. Saberão converter a teoria, na hora do desastre?

O mal, antes de ser um problema ou mistério, é um fato universal da experiência humana que dispensa demonstração. A todos afeta, independentemente de raça, religião, status social, idade etc. Suas manifestações são múltiplas, mas se afigura sempre como uma realidade de dilaceramento existencial expressa na pergunta: por quê? A lista das experiências é infinda e, talvez, cada ser humano tenha a sua sob medida (G. ZAMPIERI - OFM. cap – O mistério do mal. Entre a Teodicéia e a Teologia. (Tese de pós-graduação) PUCRS 2002.

No campo da filosofia constata-se que como “oposto ao bem”, o mal coloca em questão a responsabilidade da pessoa que cometeu o erro, embora sua origem primitiva deva ser buscada, de acordo com a teologia, nos poderes sobrenaturais intrinsecamente maus (o Diabo).

O filósofo alemão Immanuel Kant († 1804), considerado o pensador mais influente da Idade Moderna, afirma que a “malvadeza” está no ato de fazer o mal acidentalmente, enquanto a “malignidade diabólica” procede do desejo de praticar o mal pelo mal, coloca em questão a ”má vontade” quando a intenção é viciada. A razão filosófica não cansa de acompanhar a lógica aristotélica que definiu o mal como uma privação (ausência) do bem. Para Orígenes († 253), um pensador cristão, o mal é uma falta acidental da perfeição. No pensamento de São Basílio Magno († 379) o mal, “não sendo o bem, decorre da perversão (mutilação) da alma”. A filosofia-teológica de Santo Agostinho († 430) nos revela que “o mal nada mais é que uma ‘privatio boni’ (privação do bem)”.

Os teólogos, desde cedo, reconheceram a presença do mal em um mundo que busca seu significado moral. Por que – perguntam – Deus procura levar seus filhos para o céu? Para “livrá-los do mal”, para preservá-los do ataque das forças malignas. Desde o homem das cavernas, observa-se um medo do mal, das forças incompreensíveis que atacam a família humana, as pessoas e seus clãs.

Logicamente, isto tudo não nos impede de prosseguir questionando. Não poderia Deus ter feito tudo de outro modo? Deus, em sua infinita sabedoria e poder, não poderia ter esboçado um mundo menos hostil que este, que parece tão severamente ingrato pelo modo como muitas pessoas vivem? Esta é uma questão a que os evangelhos não respondem. Eles simplesmente sugerem que as coisas são o que são... (J. A. SANFORD, O mal – O lado sombrio da realidade. Ed. Paulus, 1988)

A história humana é uma deplorável narrativa de guerras, raptos, destruição de cidades, golpes de estado, traições, incêndios e toda a sorte de violência, onde sempre houve vencidos e gente que levou a melhor, mas também, na contrapartida, multidões de pessoas que perderam tudo, a partir das propriedades, dignidade e vida. O mal é mal e nele não há nenhum resquício de bem. Quando é freqüente ou demasiadamente forte, ele acaba desgastando as resistências morais do ser humano. Ao homem de hoje, especialmente ao cristão, não é cabível o acovardamento diante do mal.

Se a história está, por tantos séculos, recheada de maldade, parece que o século XX, e esse início do XXI extrapolaram todos os parâmetros de egoísmo, perversidade e desrespeito com os direitos do ser humano. Parece que a humanidade nunca foi tão cruel e desdenhosa dos valores humanísticos.

Na idade antiga, o povo temia a bruxaria, a peste e as guerras. Depois passou a temer os inquisidores, os senhores feudais e continuou temendo os conflitos armados. Na modernidade – que ninguém assume o risco de dizer quando começou – as Guerras Mundiais foram o flagelo da humanidade. Na Primeira, uso do gás letal, gerou mortes em largas escalas. O que era uma invenção recente, o avião, empregado para matar, a ponto de seu criador, o brasileiro Alberto Santos Dumont suicidar-se, ao ver a deturpação de sua invenção.

A II Guerra Mundial tentou suplantar os genocídios da humanidade, ocorridos até então. Os campos de concentração, a tentativa de supremacia racial, e experiências genéticas dos nazistas, a agressão japonesa e a resposta, pela bomba atômica, os campos de refugiados, tudo serviu para mostrar que a maldade humana não tem limites. Em termos ontológicos o homem não cria nada, mas ninguém é tão pródigo em destruição como ele.

As tragédias humanas, em geral, parecem só acontecer com os outros, lá adiante. Nossa falta de espírito crítico chega a criar em nós um processo de anestesia ética e social, como se as coisas maléficas nunca fossem acontecer conosco. Quando o mal ocorre aqui, perto de nós, com a gente, ou com alguém de nosso grupo familiar, uma pergunta insistente paira no ar: Por que? Onde está Deus – costumamos perguntar quando o mal nos ataca?

O mal – nunca é demais repetir – nos compêndios de filosofia, teologia, psicologia e história das religiões, é aquilo que é realizado em oposição ao que é lícito (mal moral) ou o que se contrapõe ao desenvolvimento normal da vida e da natureza em geral (mal físico), ou, ainda, ocorre a partir de ações negativas das forças/causas sobrenaturais (mal metafísico). É em cima dessas três características (mal físico, moral e metafísico) que vamos ordenar nosso estudo daqui para frente.

Dissertando sobre os aspectos das crenças, na luta contra o mal na história humana, aos quais designa como “veneráveis objetos da fé religiosa”, Jung (IN: Resposta a Jó) chama a atenção, já no prefácio de sua emblemática obra, sobre o risco de os leitores serem reduzidos a pedaços, no entrechoque das partes que discutem essa dialética do bem e do mal.

A velha pergunta que assola a humanidade há milênios continua sem resposta: Por que existe o mal? Deus não criou o mal, isto se sabe, mesmo assim, por que permite que ele ocorra? O mal cometido pode ser explicado através da formulação da liberdade. Praticamos o mal porque somos livres. Podíamos fazer o bem mas preferimos o caminho errado. É a condução equivocada e degenerada de nossas ações.

Agimos assim ou assado porque somos livres. O ser humano é tão livre que é capaz de matar seu semelhante, torturar, abortar (só os humanos abortam!). De tão livre, foi capaz de pendurar um Deus na cruz... Por que fizeram isto? Porque quiseram; eram livres para fazê-lo! Valeu a pena possuir essa liberdade?

O ponto alto da oração cristã de todos os tempos desemboca no clássico ...mas livra-nos do mal (cf. Mt 6,13b), pedido este que, praticamente faz o fecho da oração do “Pai Nosso”. Pois tal pleito revela que o mal, além de um mistério, é uma ameaça e um ponderável desafio que o ser humano não sabe enfrentar. Os conflitos, incompreensões e ambigüidades da vida apontam para uma etapa da obra ainda não concluída.

Santo Tomás disse, em um de seus sermões, que “de Deus sabe-se mais o que não é do que o que é”. De fato, certas manifestações de pessoas, diante do sofrimento, do mal e da morte, evidenciam que eles conhecem muito pouco a Deus.

A verdade é que neste “vale de lágrimas” onde o bem e o mal se alternam como o trigo e o joio naquela lavoura bíblica, nunca estaremos completamente livres do mal. Ele faz parte de nossa natureza propensa ao desajuste, vem com nossas fraquezas materiais, e faz parte das armadilhas criadas pelo Maligno, ciumento da amizade do homem com seu Criador.

Dessas três fontes nos vêm o mal, e não dá para evitar sua ocorrência. Uma vida reta, de fé, amor, esperança, fidelidade ao projeto divino, tudo pode minimizar seus efeitos, mas vencê-las totalmente, só na dimensão escatológica, onde/quando Deus será tudo em todas as coisas (cf. 1Cor 15,28).

Com o olhar desviado, dirigido à fenomenologia dos mitos e das fantasias, algumas pessoas costumam questionar: “de onde vem o mal?”, ou “por que isto aconteceu comigo?”. Como tais perguntas não irão ter, jamais, uma resposta satisfatória, o caso é reformulá-la: “o que o cristão deve fazer contra o mal?”

Com o olhar assim voltado ao futuro (para onde aponta a esperança e onde pode estar a resposta) e não ao passado (onde ocorreu o mal), é possível encaminhar alguns raciocínios capazes de levar à compreensão e solução daquilo que, até então é mistério.

A luta contra o mal não diminui as perdas já sofridas, mas pode evitar/diminuir as dores futuras. Pode até trazer consolo para o sofrimento passado. Se conseguirmos retirar os sofrimentos do mundo, aqueles causados pelos homens, veremos que vai restar uma dose bem menor de penas.

Às pessoas de bom coração, cabe uma luta incessante contra o mal. Que tipo de mal? Primeiro o mal dos corações, inveja, ódio, egoísmo, intolerância, incapacidade de perdoar. Depois, o mal das estruturas, ganância, opressão, exclusão e morte. Que armas vamos empregar nessa luta? A verdade, a justiça, a Palavra de Deus e a fé (cf. Ef 6,10-17).

Muitos reclamam do abandono de Deus em certas circunstâncias da vida. Não será antes um abandono de nossa parte? Ele está sempre em nosso interior, mediante seu Espírito, agindo e se mostrando vivo e atuante. Não se pode confundir o silêncio de Deus com a ausência de Deus. Para escutá-lo é necessário silenciar a voz do nosso egoísmo e auto-suficiência. Diante da ocorrência assustadora do mal, aparecem várias formas de reação:

• Adão “passa a bola”, acusando Eva...

• Jacó sem saber, lutou com Deus, e este santificou sua luta,

chamando-o de Israel (Itz-rah-el, “aquele que lutou com

Deus”);

• Jó protesta...

• Saul vai consultar necromantes...

• Pedro grita: “Senhor, me salva!”...

• Judas se enforca...

A mensagem central, o sitz im lebem desta reflexão repousa na certeza de que Deus não é o criador nem o responsável pelo mal que existe no mundo. A maldade é fruto das criaturas, materiais (seres humanos) e sobrenaturais (os maus espíritos) e também os acontecimentos da natureza (o mal físico). Os jornais nos mostram, todos os dias, atitudes de maus motoristas, imperitos, imprudentes, embriagados, negligentes e irresponsáveis que trafegam por nossas estradas, protagonizando acidentes terríveis.

Parece que quanto maior a advertência, maior o desejo de praticar infrações. Ora, o construtor da estrada não quis os acidentes, mas que todos trafegassem em paz, alegria e segurança, na direção de seus destinos e objetivos. O engenheiro que projetou a estrada não é o autor dos acidentes, Ele construiu a rodovia em plenas condições de trafegabilidade, sinalizada e com refúgios, de tanto em tanto, além de agentes que fiscalizam. E mesmo assim existem acidentes. De quem é a culpa?

O mal, nunca é demais repetir, é um mistério. Deus sabe por que ele ocorre e, se permite sua incidência, não é por maldade ou omissão, nem tampouco por vingança ou castigo (essas características negativas não fazem parte da essência divina), mas para que o homem viva com cuidado (corpo, alma, próximo e natureza) e tire, mesmo das circunstâncias negativas, uma lição, ou mesmo, um bem maior. Imediatista e materialista, o ser humano geralmente não tem essa visão à vista do mal ou da tragédia.

É impossível entender as desgraças sem compreender a extensão do conflito cósmico entre o bem e o mal, em andamento, desde o princípio até a consumação. O sofrimento, sem os olhos da confiança em Deus, nunca será entendido e aceito. Ele é um mistério que Deus aos poucos nos revela. Somos afligidos pela triste tendência humana de creditar a nós, todos os sucessos da via, culpando a Deus por aquilo que não deu certo.

Ao afirmar que os que choram serão consolados (cf. Lc 6,21) e os que têm fome e sede de justiça serão saciados (cf. Mt 5,6), Jesus se coloca contra o mal, e ao lado daqueles que sofrem. O anúncio do Reino é o centro da mensagem amorosa do Cristo. É a utopia mobilizadora da vitória do bem sobre o mal. Na Igreja, a liturgia eucarística é uma efeméride de caráter festivo, pois celebra a vitória da luz sobre as trevas, da vida sobre a morte. Do bem sobre o mal.

Jó afirmou amar a Deus por nada, apenas por causa da fé e da confiança, fazendo Satã perder sua aposta. Amar a Deus por nada, apenas pelo que ele é, é sair do círculo vicioso e interesseiro da retribuição, e penetrar na órbita do amor, onde nada carece de provas ou confirmações.

Quando às vezes, diante do mal sofrido por alguma pessoa, deixamos de lembrá-lo do amor de Deus, estamos aumentando seu mal, na medida em que nos omitimos de alimentar sua fé e esperança, deixando-lhe, no lugar do consolo, o desespero. Não somos responsáveis só pelo mal que fazemos, mas também por sua continuidade e prossecução, através das conseqüências que resultam desse mau comportamento.

Deus é bom? Sim, claro que ele é bom! Ele é o sumo bem! Então por que existe o mal? Sendo amor (cf. 1Jo 4,8) Deus não pode ser o autor do mal! O mal existe? Sim, o mal existe; é inegável sua existência. Se Deus não é o autor do mal, quem é então? Desde o princípio, com a rebelião dos anjos, o mal passou a existir, fruto dessa queda. Ciumento, o demônio contaminou a humanidade, instaurando também um regime de pecado e maldade. Seduzido pelo mal, o homem cai em pecado, praticando toda a sorte de maldades. Mas Deus não ficou indiferente.

Sabendo da existência do mal, e o perigo que ele representa para os homens, deu-nos Jesus Cristo (cf. Jo 3,16) para que todo que nele crer não pereça, mas tenha a vida. Por causa de Jesus, a humanidade vence o pecado, o temor e a morte. Deus não criou o mal, mas dá o “remédio” contra ele.

Mesmo sem entender na totalidade o mistério do mal, o inocente sofredor sabe que tem em Deus o consolo e o lenitivo para suas dores. O certo é que, a despeito da virulência da maldade, o bem, porque vem de Deus, sempre haverá de triunfar. Ao ser humano – não só o cristão – cabe crer em Deus, amando-o, apesar do mal.

Doutor em Teologia Moral

Este texto é excerto de um capítulo da tese de doutorado do autor.