A questão do mal e da liberdade segundo Santo Agostinho (SERMO CVII)

A QUESTÃO DO MAL E DA LIBERDADE

SEGUNDO SANTO AGOSTINHO

Desde o princípio, Deus criou o homem

e o deixou livre, ao sabor de suas próprias decisões (Eclo 15,14).

Diversas correntes filosóficas, bem como um ponderável número de teólogos, cientistas, pesquisadores, místicos e exegetas tentaram, a partir das formulações literário-teológicas de Aurélio Agostinho, o Santo Agostinho de Hipona († 430), obter respostas sobre a questão do mal. As obras desse iluminado “doutor da Igreja” nos remetem a algumas pistas sobre esse intrincado mistério. A produção místico-religiosa, bem como filosófico-teológica de Agostinho, considerado um pensador completo, é fundamental, não só para o cristianismo e a filosofia ocidental, mas tornou-se a base de todo o pensamento universal.

A grande obra agostiniana, De Libero-Arbitrio (o Livre-arbítrio) tem, como ponto de partida, um diálogo que teve lugar em Roma, por volta do ano 388 d.C., em que os interlocutores eram o próprio Agostinho e Évodio, discípulo e amigo. Os dois homens já tinham sido iniciados na Igreja e recebido o batismo, mas não tinham ainda tido a oportunidade de aprofundar os ensinamentos eclesiais. O próprio Agostinho não estava ainda bem familiarizado com as Escrituras e sabe-se que até a data de sua ordenação sacerdotal, ele tinha alguma dificuldade com os Livros Sagrados. As questões que mais o interessavam eram de ordem filosófica e reportavam-se ainda à refutação do maniqueísmo.

Tendo em conta somente o livro I, seria mais lógico a obra chamar-se “De Malo” (A respeito do mal) ou qualquer coisa análoga. Os especialistas em santo Agostinho insistem no fato que só o livro I foi terminado em Roma em 388. Os livros II e III foram concluídos mais tarde, entre 393 e 395 após a ordenação sacerdotal de Agostinho. Isto explica divergências literárias na obra. E até – em alguns casos – de interpretação teológica. No livro II, o autor declara que Deus não é o autor do mal, mas do livre-arbítrio, que é um bem.

Na abertura de O Livre-Arbítrio aparece a pergunta: É Deus o autor do mal? A resposta dada por Agostinho a Evódio, que tematiza todo o trabalho, é paradigma para o cristianismo de todos os tempos:

Sendo Deus bom, como tu sabes e acreditas, nem é possível ser de outra forma, não pode fazer o mal. Mais ainda, se declararmos que Deus é justo, e o contrário seria blasfêmia, de tal maneira que assim como premia os bons condena os maus; condenação que para os que sofrem é um mal. Entretanto, se ninguém é castigado injustamente, como necessariamente devemos crer, uma vez que acreditamos ser a Providência quem governa o mundo, de nenhuma forma poderá ser Deus o autor da primeira espécie de mal, muito embora o seja da segunda.

Só, a fé também não chega; é preciso ainda a compreender; e o Livre-Arbítrio é um esforço da inteligência em direção à verdade. Esta obra importante tem como objeto o problema da origem do mal como aliás já o dissemos. Sabemos que Agostinho desde a sua adolescência se preocupou com esta questão e uma das causas da sua adesão ao maniqueísmo foi de ter tido a esperança de encontrar a solução. Entretanto os heréticos não o satisfizeram e continuou a procura da verdade que nos descreveu nas “Confissões”, sua obra-prima.

Religiosamente convicto, após sua conversão, Agostinho não podia suportar a idéia que Deus fosse a causa do mal, mas sabia que, afirmando que a origem fosse o nosso livre-arbítrio, várias questões se levantariam, contrárias a esta resposta. É fácil mostrar que o mal físico é substituído pela divina providência porque visto no conjunto não é mais um mal, mas contribui ao bem comum e à ordem cósmica: a tese neoplatônica é até aqui satisfatória. Mas que poderemos dizer do mal moral que se opõe diretamente à vontade de Deus? Examinando minuciosamente esta questão Agostinho propõe uma solução racional dentro dos limites que a cultura da época e sua fé lhe permitiam. A partir deste ponto de vista, o projeto geral do Livre-Arbítrio aparece claramente. Como afirma B. Altaner:

Agostinho é o mais exímio filósofo dentre os Pais da Igreja e, sem dúvida, o mais insigne teólogo da Igreja daquele tempo. Já em vida suas obras lhe granjearam numerosos admiradores. Exerceu profunda influência na vida da Igreja ocidental, e que perdura até a época moderna. Isso não só na filosofia, dogmática, na teologia moral e mística, mas ainda na vida social e caritativa, e também na formação da cultura medieval.

Agostinho desenvolve, em um conciso tipo de considerações, as relações entre o pecado e a Providência. Ali ele demonstra que não podemos de maneira alguma – sob pena de sermos hereges – censurar a Deus de ter criado a livre vontade mesmo falível, mesmo pecadora. A insistência a enviar seus leitores em direção a Deus para resolver o problema do mal, faz a unidade desta obra e é o método eficaz para obter uma solução clara. Como não nos abandonarmos com plena confiança à vontade toda poderosa de Deus, quando compreendemos, com Agostinho, que é a bondade incapaz de nos querer outra coisa senão o bem?

O modelo quase racionalista que Agostinho imprime ao longo do livro I manifesta-se melhor quando ele afirma que tudo deve desembocar em Deus, que possui a opinião mais excelente. Agostinho desenvolve o seu pensamento; e manifestamente se apóia sobre o texto do símbolo que professou na Igreja no dia do seu batismo; mas deste símbolo, encontra o meio de dar uma expressão filosófica.

Esse é, efetivamente, o resultado da teodicéia de Santo Agostinho, no esforço de explicar todo o mal desde a ação humana na sua articulação de pecado e castigo. Trata-se de uma teodicéia que pretende deixar tudo explicado e esclarecido sem sombra de dúvidas. O mal deixa de ser colocado desde o âmbito do mistério, para ser colocado desde o âmbito de um problema a ser resolvido. Embora brilhante, o bispo de Hipona não consegue atingir todo o objetivo didático.

Fiel e devoto, Agostinho não podia suportar a idéia que Deus fosse a causa do mal, mas sabia que, afirmando que a origem fosse o nosso livre-arbítrio, várias questões se levantariam, contrárias a esta resposta. É fácil, mostrar que o mal físico é substituído pela divina providência porque visto no conjunto não é mais um mal, mas contribui ao bem comum e ao encanto da ordem: a tese neoplatônica é até aqui satisfatória. Mas que poderemos dizer do mal moral que se opõe diretamente à vontade de Deus? Examinando minuciosamente esta questão Agostinho propõe uma solução racional dentro dos limites que a cultura da época e sua fé lhe permitiam. A partir deste ponto de vista, o projeto geral do Livre-Arbítrio aparece claramente. Segundo os dados da fé, todas as coisas criadas por Deus são boas. O pecado não pode ser imputado à criação. Trata-se de compreender a origem do pecado e o seu papel, nitidamente na contramão ao projeto de Deus.

A psicologia agostiniana está em harmonia com o neoplatonismo cristão. Certamente o corpo não é essencialmente mau, visto que é uma criatura de Deus, que fez boas todas as coisas. Mas a união da alma com o corpo é, de certo modo, extrínseca, acidental. A alma e o corpo não formam a unidade metafísica, substancial, como na concepção aristotélico-tomista, graças à doutrina da forma e da matéria. Entre as faculdades da alma, a vontade tem a primazia e não o intelecto. Entra aí a questão da liberdade.

Quanto à cosmologia, mencionamos a famosa doutrina agostiniana das rationes seminales (razões-sementes). Segundo esta doutrina, Deus na criação originária e simultânea das coisas, teria criado algumas completamente realizadas; de outras coisas teria criado apenas as causas necessárias para produzi-las, predispondo estas causas de maneira que dessem origem, mais tarde, desenvolvendo-se, às coisas. Naturalmente a moral agostiniana é teísta e cristã e, portanto, transcendente e ascética.

Embora restrita, em boa parte, ao zeitgeist da Baixa Idade Média, a solução do problema do mal constitui, talvez, a maior glória especulativa de Aurélio Agostinho. O mal é, fundamentalmente, privação de bem - privação de ser. Tal bem pode ser não devido (mal metafísico) ou devido (mal físico e moral) a uma determinada natureza. Se o bem é devido, nasce o verdadeiro problema do mal. A solução desse problema é estética, para o mal físico; é moral (pecado original e redenção pela cruz), para o mal moral e, também, físico. A solução do problema da história constitui outra grande glória especulativa de Agostinho. Tal problema é, fundamentalmente, o problema do mal na história.

Agostinho resolve-o, naturalmente, mediante os dogmas do pecado original e da redenção pela cruz, isto é, mediante a Revelação, e a teologia. Ele trata desse assunto na Cidade de Deus, que se pode considerar a obra-prima especulativa do grande doutor. Quanto à natureza de Deus, Agostinho tem uma idéia perfeitamente exata: Deus é poder racional infinito, eterno, imutável, espírito, pessoa. Assim sendo, Deus também é Trindade do Pai, Verbo e Espírito Santo, esforça-se por descobrir filosoficamente as imagens da Trindade em todo o mundo; toda criatura seria, essencialmente, ser, saber e vontade. Para a fenomenologia de Santo Agostinho, o mal não é ser, mas privação do ser, como a obscuridade é ausência da luz. Por não-ser, o mal não pode ser visto como criatura, mas mera contingência de atitudes. Sobressai-se de sua obra, a teoria da privatio boni. Agostinho tem uma afirmação, no mínimo paradoxal:

Já que Deus é o Bem Supremo, ele não permitiria a existência de mal algum no mundo, a menos que sua onipotência e bondade fossem tal, que conseguisse tirar algo bom até do mal.

Para o teólogo de Hipona, o mal só pode provir do homem, livre porém limitado, e não de Deus, que é puro ser e produz unicamente o ser. Mesmo assim, o testemunho dos santos não cessa de confirmar que do mal Deus sempre tira um bem: assim, santa Catarina de Siena († 1380) nos diz textualmente que:

Aqueles que se escandalizam e se revoltam com que lhes acontece: tudo procede do amor, tudo esta ordenado a salvação do homem, Deus não faz nada que não seja para esta finalidade.

Para Santo Agostinho, a ocorrência do mal no mundo é resultado da liberdade humana. Uma liberdade mal conduzida. Deus criou o homem livre. e este, por ser livre escolheu o pecado. Com isso surgiu o mal moral e o mal físico. O mal metafísico é, apenas uma conseqüência, o castigo de Deus. Embora o cristianismo aposte mais na capacidade misericordiosa de Deus (ao invés da teologia do castigo), esta interpretação situa-se muito próxima da instrução bíblica.

Sob a visão teológica, Agostinho foi um dos que mais profundamente impressionou-se pelo problema do mal. Para o bispo de Hipona, o mal não é ser, mas privação de ser, como a obscuridade é ausência de luz. Tal privação é imprescindível em todo ser que não seja Deus, enquanto criado, limitado.

Desta forma, ele busca explicar o assim chamado mal metafísico, que não é verdadeiro mal, porquanto não tira aos seres o que lhes é devido por natureza. Quanto ao mal físico, que atinge também a perfeição natural dos seres, Agostinho procura justificá-lo mediante um velho argumento, digamos assim, estético: o contraste dos seres contribuiria para a harmonia do conjunto. Esta, segundo os especialistas, é a parte menos afortunada da doutrina agostiniana do mal.

Quanto ao mal moral, finalmente existe realmente a má vontade que livremente faz o mal; ela, porém, não é causa eficiente, mas deficiente, sendo o mal não-ser. Este não-ser pode unicamente provir do homem, livre e limitado, e não de Deus, que é puro ser e produz unicamente o ser.

A teologia bíblica revela que o mal moral entrou no mundo humano através do pecado, original e atual, razão ;pela qual, a humanidade foi punida com o sofrimento, físico e moral, além de perder os dons gratuitos de Deus. Como se pode observar, o mal físico tem, deste modo, uma outra explicação mais profunda. Remediou este mal moral a redenção de Cristo, Homem-Deus, que restituiu à humanidade os dons sobrenaturais e a possibilidade do bem moral; mas deixou permanecer o sofrimento, conseqüência do pecado, como meio de purificação e expiação. A explicação definitiva dessa questão (do mal moral e de suas conseqüências) estaria no fato de que é mais glorioso para Deus tirar o bem do mal, do que não permitir o mal.

Sintetizando a doutrina de Agostinho a respeito do mal, se poderia afirmar que: o mal é (embora muitos não concordem), fundamentalmente, uma privação do bem (de ser); este bem pode ser não devido (mal metafísico) ou devido (mal físico e moral) a uma determinada natureza; se o bem é devido nasce o verdadeiro problema do mal; a solução deste problema é estética para o mal físico, moral (pecado original e Redenção) para o mal moral (e físico). Uma oposição radical entre bem e mal tem, na filosofia, o nome de maniqueísmo.

Este pensamento não admite meio-termo nem retratação. Tal simplificação é uma forma primária do pensamento que reduz os fenômenos humanos a uma relação de causa e efeito, certo e errado, isso ou aquilo, é ou não é. A simplificação é entendida como forma deficiente de pensar, nasce da intolerância ou desconhecimento em relação a verdade do outro e da pressa de entender e reagir ao que lhe apresenta como complexo.

O pensamento maniqueísta é uma forma religiosa de ver a realidade; não como uma religião autônoma, mas como um conjunto de comandos camuflados que influenciam os discursos do cotidiano, inclusive as religiões formais e seitas. Tudo tem início com Mani, um mago nascido na Pérsia, no século III, que fundou uma espécie de religião, o maniqueísmo, após ter sido – conforme ele afirma – visitado duas vezes por um anjo que o convocou para esta tarefa, fato este comum entre aqueles que fundam religiões e seitas até hoje. Possui uma visão dualista radical, segundo a qual o mundo é acionado por duas forças: o bem (luz) e o mal (trevas) como entidades antagônicas em perpétua luta.

É dever de cada ser humano entregar-se a esse eterno combate para extinguir em si e nos outros a presença das Trevas a fim de poder alcançar a Luz, que é o Reino de Deus. No maniqueísmo, os homens eleitos irão purificar o bem, com uma vida de castidade, renúncia à família, alimentação especial, etc. O espiritismo kardecista usa esses dois extremos em suas fórmulas de identificar o bem (o atraso espiritual) e o mal (o progresso).

A propaganda nazista contra os judeus plantou no inconsciente do povo alemão o que este já continha de preconceito e racismo. O maniqueísmo nazista começou associando os judeus a traças, piolhos e vermes que “corroíam a economia alemã”, em verdade, tal propaganda preparava o espírito coletivo alemão para a chamada “solução final” ou medida “higiênica” de extermínio em massa de todo o povo judeu.

Portanto, mais que uma forma simplista e dogmática de pensar, o maniqueísmo propõe uma ação, uma luta eterna contra o Mal, personificado em algumas coisas, pessoas e situações. Na ação maniqueísta “vale tudo”, até mesmo a violência extrema contra um improvável Mal. A guerra e a tortura foram os principais meios da atuação do maniqueísmo moderno. Adolf Hitler († 1945), um dos paradigmas do mal na Idade Moderna, afirmou, na primeira metade do século XX, que também acreditava ter uma grande missão de purificação da humanidade:

As lágrimas da guerra prepararão as colheitas do mundo futuro (in Mein Kampf, 1926)

O poeta e filósofo britânico, um moralista por excelência, de origem austríaca, K. Popper († 1994) constata, com muita propriedade, que

[...] toda a vez que o homem quis trazer o céu para a terra, fez reinar o inferno.

Moralista, aqui, ao contrário do pejorativo, aponta para um “especialista em moral”. Ora, sabemos pela história que o pior inferno é aquele que mata, oprime e ordena, em nome do bem contra o mal, ou do seguimento de religiões capazes de radicalizar em seus dogmas. Nada é tão perigoso quanto a certeza, o dogmatismo, a fé cega ou louca. O filósofo Nietzsche, um louco, propõe (in; “A Genealogia do Mal”) pensarmos para além do Bem e do Mal:

Perguntem aos escravos quem é o “mau”? e apontarão a personagem que para a moral aristocrática é “bom”, isto é, o poderoso, o dominador, o patrão.

É muito pobre a divisão de todas as coisas e situações em apenas dois blocos, luz e trevas, criação e destruição, bem e mal. Para os maniqueus, o bem e o mal são iguais, inseparáveis e equilibrados. Esta visão vem do passado e é encontrada em nossos dias, nossos grupos, sociedade, etc. A educação e a cultura têm uma grande tarefa pela frente para prevenir o maniqueísmo.

Engana-se, porém, quem situa o maniqueísmo – como uma forma de pensamento perdido no passado. Lendo os jornais, vendo televisão ou conversando com as pessoas, vamos encontrar remanescentes bem ativos do radicalismo da doutrina de Mani, nos dias de hoje, em pleno século XXI. É o caso, por exemplo, da política externa de G. W. Bush. Naquela visão, o bem, a ética e a verdade são valores representados pelos Estados Unidos e seus aliados. Fora dessa coalizão, tudo é hostil, demoníaco, personificação do mal. Isto é um nítido enfoque maniqueísta do mundo e das relações internacionais.

No terreno religioso também se nota distorções análogas, à medida em que religiões e seitas adotam uma maneira fundamentalista de enxergar a fé, e tudo que escapa dos limites de suas crenças, dogmas e regulamentos, vem do Diabo, e é capaz de jogar os “desviados” no mais profundo dos infernos. Nas Igrejas cristãs tradicionais, o movimento ecumênico é uma tentativa (débil, ainda) de banir o maniqueísmo. O maniqueísmo moderno é encontrado em idéias, ideologias e atitudes, do tipo

eu sou x você é

bom mau

santo pecador

um ser moral imoral

“mocinho” “bandido: .

Nestas características, encontramos pessoas, pródigas em julgar os outros, que se imaginam “certinhas”, imunes aos erros, donas na verdade, conhecedoras das ciências, capazes até de avaliar, definir e mensurar a espiritualidade, moral e a fé dos outros. Quem está do lado de cá é santo; os do lado de lá são pecadores: vão se perder, serão jogados no fogo. Esta é uma lamentável manifestação do maniqueísmo nos tempos atuais. Entre aí a questão do livre-arbítrio.

Por livre-arbítrio entende-se, dentro da teoria teológica, aquele poder ou capacidade que o indivíduo tem de escolher uma linha de ação ou de tomar uma decisão sem estar sujeito a limitações impostas por causas antecedentes, pela necessidade ou por predeterminação divina. Um ato inteiramente livre é, em si, uma causa, e não um efeito; está fora da seqüência causal ou da lei da causalidade.

A questão da capacidade do ser humano de determinar suas próprias ações é importante na filosofia ocidental, particularmente em metafísica, ética e teologia. Em geral, a doutrina mais radical na afirmação da liberdade da vontade é denominada voluntarismo. Seu contrário, o determinismo, é aquela em que a ação humana é resultante de influências como as paixões, os desejos, as condições físicas e as circunstâncias externas, fora do controle do indivíduo.

Eu entendo como a maioria dos filósofos e teólogos de nosso tempo, pelo menos academicamente, o livre-arbítrio como aquele poder ou aquela capacidade que o indivíduo tem de escolher uma linha de ação ou de tomar decisões sem estar sujeito a limitações impostas por causas antecedentes, pela necessidade ou por predeterminação divina (fatalismo).

Trata-se, deste modo, de um ato inteiramente livre, que é, em si, uma causa, e não um efeito. Por esta razão está fora da seqüência causal ou da lei da causalidade. A questão da capacidade do ser humano de determinar suas próprias ações, como no caso de livre-arbítrio, é importante na filosofia ocidental, particularmente na metafísica, na ética e sobretudo na teologia. Em outras civilizações, oriental, islâmica e da antiga Grécia, é privilegiado o fatalismo do “estava escrito” ou maktub.

Em geral, a doutrina mais radical na afirmação da liberdade da vontade é denominada, como vimos acima, pelo voluntarismo. A filosofia define o voluntarismo como uma liberdade da vontade. Uma preeminência desta. Os filósofos definem o voluntarismo como uma teoria, segundo a qual, qualquer juízo é um compromisso e um ato de liberdade para o espírito.

Ao contrário do voluntarismo, o determinismo, é aquela em que a ação humana é resultante de influências como as paixões, os desejos, as condições físicas e as circunstâncias externas, fora do controle do indivíduo. É um fatalismo, como o aludido maktub dos árabes. Sob a pressão das paixões, da coação moral ou do fatalismo, o indivíduo não tem liberdade de agir, mas o faz no improviso da emoção ou conforme um script prévio.

Um sistema ético pressupõe o livre-arbítrio, uma vez que a negação da liberdade implica em anulação da capacidade de estabelecer juízos morais. No entanto, as posturas têm sido muito diferentes ao longo da história, desde Sócrates e Platão, para os quais a ação livre é a que coincide com o bem, até a autodeterminação de Baruch Spinoza e o imperativo categórico de Immanuel Kant. No âmbito teológico, o problema fundamental consiste em conciliar a teoria da predestinação com a responsabilidade moral. A organização do sistema ético, do modo que foi concebido por Santo Agostinho, pressupõe a necessidade do livre-arbítrio, uma vez que a negação da liberdade implica em anulação da capacidade de estabelecer juízos morais.

Como já dissemos aqui, Agostinho não podia suportar a idéia de que as pessoas fizessem uma ligação de Deus com o mal ocorrido. Por esta razão ele enfatiza a liberdade do homem (o livre-arbítrio) para, tirando a culpa das costas de Deus, colocá-la em cima do homem. Deus não faz o mal; quem o faz é o homem, que é livre para fazê-lo. Livre para fazer o mal ou o bem. Não seria essa teoria agostiniana uma tentativa de retirar das costas de Deus a culpa de nos haver criado tão vulneráveis:

A privatio boni de Agostinho enfoca o mal moral (o pecado do homem) que resulta num mal físico (um castigo natural oriundo do pecado), mas esquece-se do mal metafísico. Não se trata de descobrir os culpados. Há casos em que o mal acontece, nem por “vontade de Deus” nem como resultado “da ação livre do homem”. Há males que acontecem naturalmente. Se Deus permite ou não que eles aconteçam, isto já é outra coisa. Na teologia agostiniana encontramos um pouco da influência pitagórica a respeito dos números e do equilíbrio.

A estética de Santo Agostinho, no tocante aos dons de Deus, ao bem como um todo, às penas e os males, nos revela a influência daquelas especulações. Qual Plotino e Leibniz, Agostinho é verdadeiramente um otimista. Esse otimismo é característico de duas vertentes: o neoplatonismo e – sobretudo – de sua fé cristã quase fanática.

Pois Agostinho é otimista, embora sem reconhecer o mundo de seu tempo (e o atual, quem sabe) como absolutamente o melhor possível, reconhece, em termos do mal, humildemente, sua limitação diante do mistério da liberdade. No mundo, por incrível que pareça, o bem e o mal se atraem, e às vezes ocorrem simultaneamente. As fórmulas escriturísticas da maioria das religiões e filosofias místicas estatuem que quem pratica o mal, sempre terá percalços em sua vida e, ao contrário, aquele que faz o bem, sua vida será cumulada de dons e bênçãos. Pregando à Igreja primitiva, o apóstolo Pedro indaga:

E quem lhes fará mal, se vocês se empenham em fazer o bem? (1Pd 3,13).

Os místicos tentam mostrar que o mal físico é compensado pela divina Providência, porque visto no conjunto, ele não é mais um mal, mas contribui para o bem. Esta tese neoplatônica é, até aqui, satisfatória. Mas o que se poderá dizer a respeito do mal moral que se opõe diretamente à vontade de Deus? E onde encaixar o mal metafísico? No que a liberdade (ou o livre-arbítrio, para usar a expressão agostiniana) influi nessa provação?

Agostinho desenvolve, em um conciso tipo de considerações, as relações entre o pecado e a Providência. Ali ele demonstra que não podemos de maneira alguma – sob pena de sermos hereges – censurar a Deus de ter criado a livre vontade mesmo falível, mesmo pecadora. A insistência a enviar seus leitores em direção a Deus para resolver o problema do mal, faz a unidade desta obra e é o método eficaz para obter uma solução clara. Como não nos abandonamos com plena confiança à vontade toda poderosa de Deus, quando compreendemos, com Agostinho, que é a Bondade incapaz de nos querer outra coisa senão o bem? É preciso, a partir da compreensão da bondade de Deus, ir buscar as raízes determinantes do mal. A maioria delas nós sabemos, e somos capazes – mais que pela lógica – pela fé de entender e aceitar.

O que fica pendente é o entendimento a respeito do sofrimento, do mal cometido contra o inocente. Podemos saber por que o perverso estuprou e matou a menininha de quatro anos. Porque o delinquente cometeu o crime, a polícia, a sociedade, a psicologia, todos sabem, atribuindo o ato criminoso a desajustes de toda ordem. O que não se sabe ou não se pode explicar é a razão de um sofrimento tão cruel haver sido infligido a uma criança inocente. Não se poderia deixar de mencionar o fato de Santo Agostinho ter uma “solução” para o sofrimento, a qual é vista como demasiadamente simplista:

• Deus, pretende, às vezes, corrigir ou ensinar os adultos pelas dores ou morte das crianças;

• As aflições temporárias das crianças servem para tornar melhores os adultos;

• A criança que sofre é feliz, recompensada por Deus pela ajuda que prestou ao ensinamento dos adultos.

Essa teoria dá a impressão de, na falta de um argumento mais convincente, o “doutor de Hipona” cria uma fórmula que, na Idade Média, quem sabe, tenha tentado minimizar a dor dos pais que perderam algum filho. A alegação “foi vontade de Deus” ou “o homem, por pecador, merece o sofrimento” não mitiga a dor de uma perda tão significativa. De modo algum!

Segundo os hereges e os ateus, o livre-arbítrio e a declaração da onisciência de Deus se contradizem. Como pode Deus – questionam os agnósticos – conceder liberdade ao homem, se já é sabida antecipadamente sua queda? Se Deus sabe antecipadamente o que o homem vai realizar, este não tem liberdade, mas está incurso em algo que já “estava escrito”. Cai-se naquela questão do fatalismo de Omar Khayyam, que no poema Rubayyath questiona:

Se conheces as minhas limitações,

E preparaste tão meticulosamente minha queda,

Por que, Alá, me chamas pecador?

Vivemos em um tempo de descobertas e duvidas, euforia e ansiedades, certezas e enganos. Com a abundância de informações (livros, bibliotecas, Internet, congressos, seminários, simpósios, graduações universitárias, especializações, etc.) criou-se uma espécie de império da cultura. Nessa instância, alguns institutos elegem seus “especialistas”, cuja palavra assume conotações dogmáticas, gerando a ilusão da idéia acabada, da causa finita, e do “estamos conversados”. Isto, além de gerar um imobilismo de pensamento, que bloqueia o debate e a pesquisa, assume, em muitos casos, uma feição de fanatismo radical e fundamentalista. A esse respeito, há uma importante advertência do pensador, um judeu francês Edgar Morin (nascido em 1927, ainda é vivo), cuja filosofia se aplica à maioria das nossas questões :

Tenho constatado em mim um crescente desconforto! É que passei a desconfiar de quem só tem certezas absolutas. Na melhor das hipóteses, este infalível é um despreparado e na pior hipótese, mesmo que não o queira, é uma pessoa perigosa, porque sua visão é delimitada por aquilo que ele pensa que sabe!

Na contramão do raciocínio, há que os que afirmam que o ser humano não é livre, mas condicionado a fatores, circunstanciais (emoções), acidentais (casos fortuitos) comportamentais (interesses) e até irremovíveis (o destino). Havia há tempos, quando chegaram ao Brasil os primeiros carros estrangeiros (isso, segundo me contaram, lá pelos idos de 1930) uma piada: você tem liberdade – dizia o convincente vendedor – para escolher a cor do carro, desde que seja preto. O comprador pensava que era livre; mas não era. Imaginava decidir, mas agia filiado à decisão do fabricante.

Historicamente, a “liberdade” de decidir, sempre foi algo relativo, e não-raro condicionado: em uma grande empresa, perguntaram a um gerente qual era a decisão dele. O executivo não titubeou: eu voto de acordo com a proposta do superintendente. O interesse pessoal, o desejo de fazer carreira, até mesmo a ambição, serviram de limitador para o exercício da liberdade. O consumidor, embora não necessite, acaba comprando um produto que lhe foi sugerido pelo marketing. Não agiu por liberdade, mas por impulso.

Como se vê, a propalada liberdade de agir, é relativa. Relativa na medida em que vem condicionada por vários fatores sociais, culturais e psicológicos. Também nas crenças religiosas, a virtude, em alguns casos, é praticada nem sempre por vocação, mas por temor. Muitas vezes, por detrás daquilo que as pessoas afirmam agir com isenção ou liberdade, está um poderoso condicionamento ou uma irresistível coação moral.

Na psicologia, existe uma figura curiosa chamada “síndrome de Estocolmo”, em que o seqüestrado se apaixona pelo seqüestrador, para assim livrar-se da tortura e da morte. Há muita gente que age, não livremente, mas perfilada a um programa preestabelecido, para não sofrer represálias e não ser excluída do grupo. Isto pode ser tudo, menos liberdade.

Para contornar esse mascaramento da liberdade, onde a pessoa age até de forma incoerente, com o objetivo de obter algum proveito, é preciso que se estabeleça um ponderável “senso crítico”, pois só assim o agente pode avaliar se age livremente ou induzido pela ideologia de outrem. O condicionamento, com o tempo, anestesia a capacidade de refletir, e a pessoa age segundo escolhas dos outros.

Quando se estabelece uma análise teológica sobre o livre-arbítrio, uma pergunta sempre aparece: por que existe o mal? Santo Agostinho formula uma questão que caracteriza seus argumentos religiosos: o mal existe porque o homem não sabe usar adequadamente sua liberdade. Sendo dotado de livre-arbítrio – prossegue o santo – ele não consegue administrar esse dom. Esta é provavelmente a resposta mais comum dada pelos cristãos, de todos os tempos, à questão do mal.

A essência deste argumento é mais ou menos a seguinte: Deus concedeu o livre-arbítrio aos seres humanos, e eles escolheram o mal por livre e espontânea vontade. Assim, o mal foi criado livremente pelos humanos, e, por conseqüência, não é atribuível a Deus. Aqui a teologia converte-se em uma teodicéia justificativa. Terá, e a pergunta é crucial, o ser humano, condições de discernir entre a mão direita e a esquerda? Sabe a pessoa, a essência valorativa de todos os atos que pratica?

Ora, se o mal é criação do homem e este é criação de Deus, há alguma relação entre Deus e o mal? A questão é que, propor o livre-arbítrio não vai realmente quebrar essa corrente causal, simplesmente porque a mesma resposta admite que o livre-arbítrio seja algo criado por Deus.

Esclarecendo este ponto, vamos supor que o mal tenha sido mesmo introduzido no universo pelos seres humanos. Então, por que eles criaram o mal? Porque eles tinham o livre-arbítrio para fazê-lo, de acordo com a teodicéia do livre-arbítrio. E por que, sendo assim, eles tiveram essa capacidade de livre-arbítrio? Porque Deus os fez tê-la. Por que o homem não disse não ao mal primevo? Sendo o mal uma obra do Diabo, por que Deus não os protegeu desse ataque?

Se o homem pecou por causa da liberdade, então o livre-arbítrio é a causa da introdução mal. Ora, se Deus criou o livre arbítrio, ele criou também o mal. A questão, entretanto, não é tão simples assim. Mas se Deus ainda assim criou o mal, ele apenas teria feito uso de causas intermediárias. Nesse particular, a única diferença entre esse cenário com livre-arbítrio agostiniano e o da predestinação calvinista seria que, ao invés de criar o mal diretamente, aqui Deus cria o livre-arbítrio – o qual, por sua vez, cria o mal para ele.

A teologia cristã, e esse é o ponto crucial, vai refutar: Deus não é a causa do mal, portanto, o mal não pode ser algo pelo qual ele é responsável. Para essa objeção ser correta, de qualquer forma, se deve crer que não é aceitável responsabilizar alguém pelos atos dos quais não é causa direta.

Certas variações da teodicéia do livre-arbítrio tentam resolver esse problema dizendo que, apesar de Deus saber que a criação do livre-arbítrio iria, por sua vez, criar o mal, ele tinha de criá-lo de qualquer maneira, pois o livre-arbítrio é, em algum sentido, necessário. Geralmente, pensa-se que esse é o caso porque é preciso haver livre-arbítrio para que as criaturas de Deus possam usufruir dele livremente. Esse tipo de amor possível é tão inerentemente bom que a criação do mal é um infeliz, mas aceitável efeito colateral.

Em minha tese de Doutorado, em Teologia Moral, eu levanto uma questão, a respeito do mal sofrido pelo inocente (que nada fez para merecer as penas), cuja resposta eu mesmo não consegui elaborar satisfatoriamente.

A questão inteira da responsabilidade individual humana pelos atos – uma área importante na teologia tradicional – é posta na berlinda aqui. Mesmo considerando que o livre-arbítrio tinha de ser criado a fim de estabelecer a melhor situação possível, a existência do mal ainda permanece como conseqüência de algo que Deus fez. Mesmo que o homem seja o “senhor do mal”, ele é criação de Deus. Para o debate em tela, o porquê de Deus fazer algo é mais ou menos irrelevante: o prioritário é se obter uma declaração que os seres humanos não são responsáveis por esse mal. A história humana nos mostra a realidade que fez do mal uma consequência necessária do livre-arbítrio. Assim, como punir as pessoas por algo que está além do controle delas?

É inevitável observar que existem objeções muito importantes à teodicéia do livre-arbítrio como solução para o problema do mal segundo a teologia tradicional. Os apologistas do livre-arbítrio parecem propor uma situação onde ninguém seria moralmente responsável pela existência do mal, e, contudo, um Deus justo, virtuoso e benevolente ainda pune as pessoas por isso. Assim, para essa teodicéia se tornar relevante, deve-se admitir que Deus não deseje realmente responsabilizar as pessoas pelo mal.

É como entregar um revólver carregado na mão de uma criança. De quem é a culpa? Do menino? Da arma? Ou de quem deixou o perigoso artefato ao seu alcance? Em alguns casos, como afirma J. P. Sartre, a liberdade é um perigo. Não é logicamente possível – isto é, seria auto-contraditório supor – que Deus possa dar nos esse livre arbítrio e que, no entanto, garanta que iremos usá-lo sempre bem. Há diversas correntes teológicas e doutrinais – de ontem e de hoje - que, na falta de argumentos mais consistentes, negam qualquer alusão de culpa a Deus. Por esta razão afirmam que embora ele não tenha criado o mal, ele permite – em alguns casos – que ele aconteça. Outros buscam racionalizações que se escuta/lê por aí:

• Deus nos criou finitos; ele colocou o mal em nossa origem e existência (mal cósmico);

• Deus nos criou seres sensíveis e vulneráveis (mal físico);

• Deus nos criou seres livres, capazes de rejeitá-lo através do pecado (mal moral).

A grande questão é que as teorias sobre a origem do mal e sua disseminação no mundo são confusas, contraditórias e geralmente capazes, mais de dificultar o raciocínio do que auxiliá-lo. Não é difícil identificar algumas raízes de livre-arbítrio nas páginas do Antigo Testamento:

Desde o princípio, Deus criou o homem e o deixou livre, ao sabor de suas próprias decisões (Eclo 15,14).

O direito natural e a Bíblia já estatuíam: tens dois caminhos à tua frente... escolhe o bem, e viverás... O homem sabe escolher? Se souber, por que a maioria escolhe tão mal? Por sua capacidade de ser livre, o ser humano pode escolher outros caminhos, rejeitando sua finalidade, abafando sua consciência, adotando outros valores. Nessa gama de escolhas, o bem retrata a construção do próprio ser; é um crescer e, portanto, algo real. O mal é um vazio; é a inexistência do bem, a falta do ser. Se o ser é, e o ser é o bem, o mal – por negação do bem – não é.

No contraponto, é possível argumentar: se não tivéssemos liberdade (a faculdade do livre-arbítrio) seríamos como robôs, presos a um fatalismo inexorável, onde tudo estaria escrito e só cumpriríamos o script. Sem o risco do mal e da perdição, seria o homem mais feliz? Ou é esse risco-de-vida (ou seria risco-de-morte?) que torna a existência mais emocionante?

O autor é Doutor em Teologia Moral. Este texto foi extraído, para fins de pregação, de sua tese de doutorado (“Deus é bom. Então por que existe o mal?”. 2005).