A morte em seis vidas
Era um dia quente em Hiroshima, assim como todos os outros naquela época do ano. O sol brilhava sobre a cabeça daquele repórter que imagina como descrever a história da morte. Seus lábios se exprimiam, seus olhos miravam longe e suas mãos suavam diante do gravador, da caneta e do bloco de notas. O céu estava limpo, mas o coração estava cheio de lágrimas. O caderno estava em branco, mas as memórias sujas pela dor. Ele não imaginava que a morte pudesse estar tão perto da vida. Por isso, sem pensar no que, quando, onde, como ou porque, o jornalista segurou a caneta, e como um artista, desenhou as formas, cores, dores e sabores de quem, de quem a vida não conseguiu apagar.
O repórter não descreveu as 20 mil toneladas de dinamites ou o avião inimigo B-29, responsável por atirar a bomba sobre a cidade, mas as vidas que se cessaram imediatamente, ou as que se apagaram gradativamente ao longo do tempo. Ele acreditou no humano, nos lábios trêmulos que em meio às lágrimas sussurravam a perda de si mesmos.
John Hersey, assim se chamava o artista. Aos 32 anos ele já era repórter internacional consagrado quando recebeu dos editores da revista norte-americana The New Yorker, a incumbência de escrever um relato sobre o que significava uma cidade ser atingida por uma bomba nuclear. Com a pauta em mãos, Hersey imaginou escrever a vida, contornando os poucos traços que sobraram depois daquele fatídico dia. Sem medo de borrar a história, o jornalista descreveu a explosão do dia 06 de agosto de 1945 sob o ponto de vista de seis sobreviventes. Pessoas comuns que vão e voltam do trabalho todos os dias e que se arrependem de terem escapado, quando cem mil morreram imediatamente, e outros cem mil logo depois, numa cidade cuja população era de 245 mil habitantes.
A partir do depoimento da senhorita Toshiko Sasaki, funcionária da Fundição de Estanho do Leste da Ásia; dos médicos Masakazu Fujii e Terufumi Sasaki; da senhora Hatsuyo Nakamura, viúva de um alfaiate, costureira e mãe de três crianças; do padre jesuíta alemão Wilhelm Kleinsorge, e do reverendo Kiyoshi Tanimoto, Hersey reconstruiu a história sem nenhum furo jornalístico ou grande revelação de linguagem técnica, apenas mostrando o efeito assolador da bomba na vida das pessoas daquela cidade.
O repórter ficou 20 dias em Hiroshima, para escrever em mais de seis semanas as 31.347 palavras que trouxeram o impacto da explosão para o cotidiano do leitor. O texto é isento de sensacionalismo, melodrama ou pieguice, é simplesmente o relato da vida, da verdade e do real. Nenhuma outra reportagem na história do jornalismo teve tamanha repercussão quanto Hiroshima. O sucesso da reportagem obrigou Harold Ross, fundador, e Willian Shawn, editor, a decidiram, pela primeira vez na história, dedicar um número inteiro da revista The New Yorker para uma única reportagem: Hiroshima.
Um ano depois do lançamento da primeira bomba atômica, o repórter embalava sua caneta sobre o fato que matou 100 mil pessoas, feriu outras 100 mil e machucou profundamente a alma de toda a humanidade. Hersey se tornou o autor da obra considerada o marco inicial do jornalismo literário, que até hoje é incluída no topo da lista das “melhores reportagens já escritas”.
Na primeira vez em que foi as bancas, 31 de agosto de 1946, os 300 mil exemplares da reportagem publicados na The New Yorker se esgotaram rapidamente. O preço de capa da revista era de quinze cents, mas cópias chegaram a ser vendidas entre quinze e vinte dólares. Albert Eintein, o pai da energia atômica, enviou um pedido de compra de mil exemplares, mas não pôde ser atendido. Dez anos depois a reportagem acabou sendo publicada em livro. Um resultado soberbo: jornalismo preciso, profundo e sem panfletagem.
A bomba de Hiroshima produziu um clarão silencioso e devastador. O som que se ouviu não era da bomba, mas dos edifícios, lares, rostos e amores que se destruíram num piscar de olhos. Jamais as palavras poderão refazer o que se quebrou, tão somente a vida que se acabou. Por isso, Hiroshima foi a câmera de TV que faltou. O retrato nu e cru do drama vivido por homens e mulheres que acordaram para nunca mais ver a paz.
Cabreira