APELIDOS E ALCUNHAS
Pode até ser que nem haja diferenças semânticas de valor tão substancial. E, sem pretender embarcar nas filigranas meticulosas dos lexicógrafos, tanto no varejo como no atacado, de fato, não existem conotações tão divergentes entre os dois termos. Contudo, para ser mais expositivo e compreendido, farei, aqui, um divisor de águas entre alcunhas e apelidos.
No seio da família, sem grilo algum, os a p e l i d o s são a coisa mais normal do mundo. Deles, em geral, a grande maioria nasce dos laços afetivos entre irmãos, primos, tios x sobrinhos e outros afins. Também, até com mais força, para bem apimentar o teor da afetividade entre os próprios pais e avós, os apelidos prosperam fartamente. Vô, voinho, paim, mãinha, e vai por aí, num imenso rol.
Já as a l c u n h a s, em tom pejorativo, azedas e enjoadas, estas não; podem ser de doer em quem as leva nos costados. Com maior frequência, advêm dos meios mais rasteiros da sociedade. Os marginais, ah, destes nem se fala. Mas já estamos a falar. Eles são os indivíduos propícios a portarem as alcunhas mais estapafúrdias possíveis. E, em 99% dos casos, seus portadores nem se dão por ofendidos, mesmo que suas alcunhas sejam as mais ridículas e depreciativas. O hábito não faz o monge?
No meu bairro, ainda varão verdoso, conheci a “Vaca velha”, que se mordia de raiva, toda vez que a cabroeira lhe jogava a xingação nos ouvidos. Outro, um cabo reformado da velha Guarda Civil, este babava era de ódio porque o Cláudio de Seu Antenor e outros pivetes gritavam quando o viam na rua: “– Bem-te-vi, Bem-te-vi! Olha o Bem-te-vi, aí, gente!”
Fui colega de banco escolar – literalmente, que naquele tempo as carteiras eram duplas – do sobrinho de um ex-prefeito e historiador famoso de nossa província. A gente morria de copiar longos textos, por via de ditados e eu, com certo cuidado na audição, costumava “cantar” as vírgulas, coisa a que o meu companheiro não era tão afeito.
Por conta disso, quero dizer, o meu apego às vírgulas, o ilustrado colega do clã dos Girão me botou o apelido de “Vírgula”. Contudo, a pecha não pegou. Ele não divulgava externamente, e o meu epíteto foi restrito apenas à jurisdição da carteira escolar, sem vazar uma sílaba para o resto do pessoal.
Quem sabe, eu tivesse dado o pinote, o apelido teria ido longe, e a molecada teria feito a festa com a minha possível desventura. Mas não. Eu tomava aquilo até como um elogio, pois receber, no ar, textos gigantões de Filosofia, Literatura, História e Sociologia, através de um ditado corrido e ininterrupto, não era moleza.
Baixinho, a cada vírgula ou pausa na voz imperativa do dono da cátedra, eu sacudia a peteca de um palpite no ouvido do Cláudio. E falava assim “... vírgula”. Ele atendia sem refugar, só muitas vezes observava: “– Ih, cara, você não perde uma vírgula”.
Não vou repetir, aqui, apelidos inocentes, familiares ou que se trocam entre amigos muito íntimos, não. Também não citarei os anti-higiênicos, como diz a Hebe – nan, nanico, não. Está!... Vejam este da tevê: Beiçola, de “A grande família”, não vale.
Maninho, Dindinha, Nininha, Papi, Mãinha, nada disto, aqui, vai ter serventia. Tudo, aí, são loas. E o camarada que sai com um título desses ainda se sente é contemplado. Como se portador de um valioso ‘Honoris Causa’.
Não quero me restringir, em particular, às alcunhas picantes e maliciosas, daquelas que você antepõe o termo “vulgo” e as diz em seguida. Nem àquelas que se repetem na crônica policial, ou mesmo às chulas, do tipo “Cara de priquito baleado”, ou ainda aos palavreados das zonas menos afortunadas de um ajuntamento social.
Vou ater-me às alcunhas oriundas das gentes simples do sertão, cuja fonte é um dos nossos folcloristas mais significativos. Deitarei no papel, portanto, só uma lista mínima de certos ditos que nem possam doer tanto, de imediato, apenas que levam alguma dose de malícia em seus vasilhames. Ei-los, em amostra pequena, por falta de maior espaço.
Arroz doce de pagode – indivíduo que não perde festa.
Barata descascada – menino muito alvo.
Barba de arroz doce – que tem a barba alourada.
Boca de chupar ovo – que tem a boca pequena.
Boca de moela – desdentado. Diz-se também “boca de sepultura”.
Cabeça de bater sola – que tem a cabeça achatada.
Cabelo de mel com terra – que tem o cabelo quase encaracolado como o dos negros.
Cabo de formão – que é baixo e gordo. Diz-se também “cortado no grosso”, “baiacu”, “toco de cachorro mijar”, “tronco de amarrar onça”.
Caga-baixinho – pessoa baixa.
Cabeça-de-cuia – pessoa alta e magra.
Calunga de botica – tipo enfeitado e pedante.
Cambito de sabiá – que tem pernas finas.
Cara de cachimbo cru – indivíduo de feições grosseiras.
Cara de mamão macho – que tem o rosto longo e descarnado.
Cururu de goteira – corpulento.
Dente de preá – que tem dentes miúdos, salientes e superpostos.
Festa na cumeeira – homem que usa topete.
Galo de raça – vermelho, alto, esbelto, de pescoço comprido e pernas em arco.
Maçaneta – mulher leviana.
Mão de catarro – que não conduz lenço para se assoar.
1001 – falta de dois dentes na frente.
Olho de ternantonte (trasanteontem) – estrábico.
Olho de vaca laçada – que costuma andar de vista baixa.
Papada de tejo – papudo.
Papangu de quaresma – abestalhado, mas metido a espirituoso.
Pau de enrolar tripa – pessoa que é alta e magra. Também “pau de virar tripa”.
Pé de lancha – que tem pés grandes.
Pé de promessa (promessa, ‘ex-voto’) – que tem o pé aleijado.
Perna santa – que arrasta uma perna, a qual é dura.
Pinga-fogo – tipo albino ou muito ruivo.
Puxa a válvula – pessoa de mau hálito.
Rede de arrasto – mulher vulgar.
Saca de lã – mulher corpulenta.
Tacho areado – indivíduo vermelho e ruivo.
Tamborete de forró – um gajo bem baixinho.
Tição apagado – negro vestido de preto.
Toco de amarrar jegue – pessoa baixa.
Unha de peba – que não apara as unhas.
Vaqueta de espingarda – mulher alta e magra.
Vendedor de cocada – acompanhante de casal.
Venta de telha emborcada – que tem narinas dilatadas.
Venta de tucano – narigudo.
Evidente que temos, acima, como ressaltei, pregando aviso, apenas uma amostra. Quem viajar pelas páginas do “Adagiário brasileiro”, do folclorista cearense Leonardo Mota, irá bater de testa com um universo enorme destes apelidos arrevesados.
Fort., 16/09/2010.