Avaliação Produção Radiofônica - DST/AIDS
PROGRAMA MUSA
AVALIAÇÃO DO CAMPO DA PRODUÇÃO
Relatório de avaliação
Por
Aurea M. da Rocha Pitta por demanda da SES/RJ, 1999
1.INTRODUÇÃO
Este trabalho tem por finalidade responder à necessidade de avaliação do processo de produção do Programa de Rádio MUSA veiculado pela Rádio Bicuda FM e voltado especialmente para a saúde da mulher da região que compreende a AP 3.1., 3.2. e 3.3. e prevenção das DST e Aids. Seu objetivo central é a “redução da incidência das DST/HIV-Aids prioritariamente entre a população feminina, através da utilização das rádios comunitárias”.
A proposta de avaliação tem como marco central, uma análise da linguagem do produto de comunicação analisado, frente às suas condições de produção. Cada programa radiofônico é entendido, assim, como expressão de um conjunto de práticas sociais, de natureza estratégica, de um determinado grupo de atores sociais, movidos pela necessidade de uma ação concreta frente a um dado quadro epidemiológico e de oferta de serviços das APs 3.1, 3.2 e 3.3 do Município do Rio de Janeiro.
Desta forma, a comunicação não é tomada aqui como ato de transferência de informação ou conhecimentos, mas como processo social complexo, inerente à própria construção social de informações, conhecimentos e sentidos que vão sendo atribuídos à realidade: como processo inerente à construção da própria inteligibilidade da epidemia de Aids e das formas de controlá-la. Um fenômeno que não se encontra aprisionado no espaço aparente da linguagem utilizada em cada peça educativa produzida, mas que se configura a partir das relações destes produtos com contextos sociais, políticos e simbólicos concretos onde são produzidos e utilizados.
Do mesmo modo, esta estratégia institucional para o combate à AIDS é compreendida na sua relação com um cenário epidemiológico em transformação, que faz transitar não apenas indicadores, taxas, estatísticas, mas processos de organização social, política, acadêmica e tecnológica em torno do diagnóstico e ações de controle de uma epidemia que vai, depois de quase duas décadas, deixando emergir um modelo singular e complexo de disseminação no Brasil. Um cenário co-determinado pelas formas concretas de organização social, cultural, política, e assim, discursiva e que aponta - conforme análises da situação e das tendências da epidemia de HIV/AIDS no país e no município do Rio de Janeiro - para uma diminuição da proporção de casos relacionados à práticas homo e bissexuais, uso de drogas e transfusões de sangue concomitante a uma elevação de casos relacionados à práticas heterossexuais e para uma pauperização da epidemia.
Se este quadro é traçado a partir de limitações já conhecidas relacionadas aos sistemas de notificação e vigilância das DST/Aids que não cabe aqui aprofundar, muitas análises apontam para a existência efetiva de uma epidemia não registrada, experimentada concretamente por pessoas em situação de abandono e exclusão social, à margem da atuação de qualquer serviço público de saúde.
Esta constatação faz com que nos defrontemos com questionamentos e necessidade de inovações no campo das metodologias utilizadas para a descrição, análise e produção de informações sobre os movimentos da epidemia, interpretada pela epidemologia tradicional e pela mídia – e pelo poder que possuem em construir “realidades” - como circunscrita a determinados grupos ou categorias de risco com as quais novos “segmentos” da população afetados muitas vezes não se identificam - nos quais não se reconhecem.
Finalmente ressalto que esta primeira fase da análise não pretende um estudo de impacto dos programas radiofônicos junto ao seu público. Isto demandará o desenvolvimento de um ESTUDO DE RECEPÇÃO. A análise está circunscrita ao diagnóstico e consequências, em termos de linguagem, de uma “economia” dos processos de produção do programa radiofônico junto ao heterogêneo segmento “mulheres” com que pretende construir vínculos. Não se trata assim de uma análise circunscrita ao alcance eletromagnético de uma pressuposta boa linguagem (embora este seja um dado relevante para a análise), mas de uma tentativa de descortinar os elos de uma mais profunda e fluida Rede social, constituída ou a ser constituída por vínculos concretos: vínculos entre um dado campo social e discursivo PRODUTOR E EMISSOR e seus pretendidos interlocutores ou RECEPTORES.
2. ESTRATÉGIAS METODOLÓGICAS UTILIZADAS
2.1) Análise documental
Foram analisados documentos institucionais do projeto MUSA, bem como 3 programas mais recentes do acervo do CEPEL, a saber: de 25/09/1999, de 05/02/2000 e de 11/03/2000
2.2) Análise de Entrevistas
Foram previamente definidas 4 questões centrais em torno das quais solicitou-se um depoimento livre aos entrevistados.
• Breve histórico de sua relação com o programa MUSA.
• Como se dá a sua participação no processo de produção do programa
• Que indícios ou dados concretos tem sobre a relação que o programa vem
estabelecendo com seus ouvintes
• Impressões sobre a parceria entre a BICUDA FM e a equipe de produção do
programa
• Como são negociados e produzidos os intervalos comerciais
2.3) Observações preliminares sobre a recepção
• Conversas de rua com moradores e ouvintes da rádio Bicuda FM
3) Considerações sobre o campo da produção
O Programa Musa, emitido pelo Centro de Estudos e Pesquisas da Leopoldina, Veiculado aos sábados, de 12 às 14h, pela Rádio Bicuda, denominado um projeto de Informação/Educação/Comunicação pela classificação do Ministério da Saúde, tem como objetivo geral, reduzir a incidência das DST e Aids informando as “mulheres moradoras de localidades empobrecidas” das áreas programáticas 3.1., 3.2. e 3.3. do Município do Rio de Janeiro sobre questões relativas a estas doenças. Um total de 2 milhões de habitantes vivem nestas áreas, que recebem o sinal da Rádio Bicuda FM.
O programa foi demandado ao CEPEL, por setor da DST/Aids do Ministério da Saúde e pela DST/Aids da Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro, em função de experiência anterior da equipe de produção com Programa de Rádio “Tem Saúde no Ar”, anteriormente veiculado na rádio comunitária Maré em parceria com setores da Escola Nacional de Saúde Pública/FIOCRUZ.
O Programa pretende depois de 1 ano de veiculação, ter alcançado as seguintes metas:
a) Em relação ao seu público:
 ter ampliado o conhecimento sobre prevenção, tratamento, acesso ao diagnóstico e aconselhamento sobre DST/Aids,
 ter promovido a adoção de práticas seguras entre a população residente da área,
b) Em relação a sua auto-sustentação:
 ter constituído parcerias locais para dar organicidade, sustentação e institucionalização “da estratégia escolhida”;
 ter sido divulgado em eventos e através de material impresso e áudio-visual
 ter realizado estudos de recepção e audiência
c) Em relação a sua expansão:
 ter sensibilizado e capacitado comunicadores de 10% das rádios comunitárias locais para produção autônoma de programas radiofônicos semelhantes
Desta forma, classificação, expressa nos documentos institucionais analisados, como um programa de “IEC”, acaba apresentando: a) uma dimensão de Atenção à saúde ou “APA”; b) uma dimensão de intervenção comportamental “IC” – pretende um impacto junto ao campo da recepção; c) uma dimensão de Desenvolvimento Institucional “DI”, já que em ultima análise, tem como estratégia “a articulação entre serviços de saúde, rádios comunitárias, e um conjunto de organizações populares de seu espaço de veiculação”.
Para alcançar estes objetivos, os atores responsáveis pela produção do programa se propõem a transmitir o programa radiofônico propriamente dito, produzir um CD; realizar oficinas de capacitação, reuniões e oficinas em eventos para constituir parcerias; participar de congressos, seminários, oficinas, para divulgação e troca de experiências; produzir material impresso e audio visual para divulgação, além de avaliar o “modelo IEC” adotado.
Após entrevistas, análise do material reunido sobre o programa, e conversas informais com moradores da área levantamos as seguintes questões, que transitam do espaço mais geral de análise às suas consequências em termos da “linguagem” utilizada no programa.
Em primeiro lugar, ressalto que a linguagem utilizada no programa está intimamente relacionada aos processos de produção do mesmo. A linguagem – o discurso em seu sentido mais amplo - é um “produto” de situações de comunicação concretas que se dão, no caso concreto de uma peça educativa ou um produto dito de “comunicação”, no espaço que antecede a sua produção: no espaço das relações sociais e de poder que sustentam o campo da produção do programa.
Desta forma, os ajustes de linguagem necessários não passam por artifícios de “controle linguístico” do programa , mas por estratégias que possibilitem uma reestruturação do próprio campo da produção do programa e de forma a obter como resultado efetivas repercussões na linguagem utilizada. Uma reestruturação que seja: a) VIÁVEL e b) incorpore EFETIVAMENTE o imaginário e a cultura local, ao processo de produção.
Esta primeira observação/recomendação de fundo está intimamente relacionada ao chamado modelo de “IEC” utilizado e acaba por condicionar toda a opção metodológica do trabalho desenvolvido e ao final o alcance de seus objetivos mais nobres: ampliar o escopo de conhecimentos sobre prevenção, tratamento, acesso ao diagnóstico e aconselhamento sobre DST/Aids, e promover a adoção de práticas seguras entre a população residente da área.
Esta promoção de práticas seguras e a ampliação do escopo de conhecimentos proposta poderiam ser traduzidas aqui como:
a) uma aceitação do conhecimento proposto pelo campo produtor/emissor – no caso o campo técnico-científico, ou seja, a sua validação junto ao campo da “recepção” das informações veiculadas (processo em nada simples);
b) de uma adoção, por parte destes receptores, das práticas preventivas e de promoção recomendadas – o que significa uma incorporação destas práticas ao mundo do habitus deste segmento de público (processo também bastante complexo);
c) uma ampliação destes conhecimentos, ou seja, uma aceitação ampla, ou ainda: a incorporação destas práticas sociais por segmentos sociais cada vez mais heterogêneos.
Assim, trata-se de uma ampliação que depende, por sua vez, não de uma mera extensão do discurso radiofônico “sobre” a área coberta pelo sinal eletromagnético da Rádio Bicuda FM, mas pelo engendramento de jogos discursivos tais que favoreçam transformações culturais mais profundas, ao longo do tempo, e junto a campos sociais e discursivos bastante heterogêneos. Com isto quero dizer que, para a extensão da problemática e do debate em torno da epidemia das DST/Aids no espaço social de atuação do MUSA, há que se ir ALÉM das parcerias naturais do núcleo de produção do programa, e se buscar constituir, uma rede de comunicação, “em aberto”: uma rede local de “interpelações”. Rede ao interior da qual sejam permanentemente gerados posicionamentos sociais e discursivos em torno dos temas tratados. Falo aqui assim, de uma rede “pública”, de natureza inclusiva, e que pressupõe não apenas “naturais parceiros”, mas grupos que mantém negociações conflitivas ou conflitos explícitos com o núcleo discursivo “emissor”. Sugere-se, assim, repensar a proposta - em meu enteder instrumental, de trabalhar a rede local de parcerias a partir do objetivo de “dar organicidade, sustentação e institucionalização da estratégia escolhida”, típico do planejamento social normativo e de pressupostos de UMA ÚNICA estratégia a se impor sobre a realidade social com suas (in)determinações.
No que diz respeito aos “comunicadores de rádios comunitárias” da região, a serem “sensibilizados” para produção de programas com a mesma temática e é importante chamar a atenção para o fato de que, nem sempre (talvez quase nunca), estes produtores darão o mesmo SENTIDO para as informações a serem disseminadas pelo núcleo produtor original ou indutor de um certo discurso a ser socialmente ampliado, sendo necessárias não apenas estratégias de sesibilização), mas formas concretas de ação junto aos mesmos.
Estas observações preliminares tem vínculos concretos – e essenciais - com uma segunda etapa já prevista deste estudo – um estudo de recepção, já que este campo, o da livre e optativa recepção, mediada apenas pelo interesse concreto no programa em questão. Tem também consequências na própria estruturação dos processos de produção do programa MUSA.
Em relação a pauta do programa – que inclui temas e convidados para debates, entendo que demanda um processo de inclusão de outros atores sociais não considerados até o momento no processo de produção do programa. As organizações locais – serviços de saúde e organizações não governamentais tem assim, uma excelente oportunidade de “INCLUSÃO” no processo de definição e problematização dos temas – seja nos debates em estúdio, no debate ao vivo com ouvintes, ou no debate e participação em oficinas, apresentação dos programas em outras rádios, etc...
Esta inclusão deve reverberar também na escolha dos temas musicais – escolhidos na sua maioria pelo campo da produção do programa (aqui incluidos apresentadores, responsáveis pela pauta e âncoras ou entrevistadores) ou sugeridos por entrevistados escolhidos por este campo, bem como dos poemas, livros, CDs. Mesmo com o cuidado da equipe em incorporar a este núcleo produtor profissionais com experiência em programação musical da Rádio icuda FM, é interessante lembrar que cada horário e cada programa tem um objetivo e traz em si tanto um pressupospo de público como conquista um público REAL que não coincide necessáriamente com públicos dos outros horários e programas da Rádio Bicuda FM.
O contrário pode talvez acontecer com os intervalos comerciais: seria interessante talvez pensar na possibilidade de apoios fora da área de cobertura do programa, já que o mesmo carece de recursos para sua extensão junto a outras rádios comunitárias – questão a ser considerada posteriormemte. Desta forma seria interessante pensar numa “busca ativa” de apoios que podem incluir, entre outros: (pensar outros apoiadores). Estes apoios poderiam por exemplo ser buscados junto aos movimentos locais e/ou através da lei de incentivo à cultura e podem significar mais autonomia do programa em relação às instituições oficiais que o financiam.
Sendo os objetivos primários do emissor a redução da incidência das DST e Aids, a matriz discursiva dos programas analisados gira em torno de aspectos diversificados do processo de prevenção das DST/Aids, buscando escapar da análise puramente biológica, fisiológica ou médica do tema e voltando-se especialmente para aspectos político-sociais dos processos de determinação do quadro epidemológico da Aids em geral .
São debatidos temas previamente definidos pela equipe de produção do programa e que tem como eixos transversais a cidadania, a violência, os direitos reprodutivos, os direitos sexuais, questões de gênero e etnia. Isto se traduz em programas, para citar alguns exemplos, sobre: sexo seguro, aborto, camisinha feminina, camisinha - seu uso, esterilização de mulheres, saúde ocupacional, exploração de mulheres, gravidez indesejada, violência sexual, violência doméstica, sexualidade masculina, trabalhadoras do sexo, gravidez na adolescênca, organização política de mulheres, direitos previdenciários da mulher, planejamento familiar, homosexualismo, questões étnicas especialmente a questão do negro, políticas públicas, políticas de saúde, participação popular e controle social, relação pais e filhos, minorias .
A análise dos temas é geralmente feita tomando-se o “foco” de um espaço mais geral deixando de levantar questões e histórias de vida do morador/trabalhador da área e sua relação com a família, com o trabalho, com o lazer, com sua religiosidade, com seus direitos e serviços de sáude no espaço da rede pública e privada dos bairros das 3 Aps da área de abrangência do sinal da Rádio Bicuda. Este é talvez um elemento de fundo na definição da “linguagem” utilizada, pois tem repercussões bastante concretas sobre ela. Corre-se o risco de fazer com que os debates girem em torno de questões não apenas escolhidas e problematizadas, mas também “faladas e cantadas” exclusivamente a partir de decisões do segmento de uma rede de relações sociais que gira em torno do núcleo técnico de produção do programa. Perde-se a oportunidade, desta forma, de incorporar “modos” de expressão, terminologias, gírias, “gingas”, musicalidades – “efeitos de sentido”, que são eminentemente locais, por mais que os temas a serem tratados sejam de âmbito mais geral.
Como consequência disto, as escolhas musicais e poemas – um excelente recurso de linguagem, também correm o risco de não corresponder exatamente as expectativas de um público a ser conquistado para a temática central do programa. Se a questão do “gosto” musical é polêmica (entende-se que a formação musical da população de baixa renda é dada principalmente pelos meios de massa e essencialmente pautada pelo mercado fonográfico), ao mesmo tempo acaba se impondo como mais um filtro à criação de vínculos com a audiência desejada, ou seja, se torna por demais “refinado” diante das tendências de um possível receptor REAL.
O RECEPTOR IMPLÍCITO , identificado na análise, acaba sendo também recortado a partir de um cruzamento de variáveis que talvez não seja desejável diante dos objetivos de extensão do debate “DST/Aids e temas correlatos”. Como um breve exercício de recorte deste receptor desejado, podemos a grosso modo “cruzar variáveis” ou indicadores de “qualidades” desejadas e a serem construídas: mulher, politizada, com dúvidas a serem respondidas pelo campo técnico-científico, e ainda com gosto musical semelhante ao campo emissor.
O MUSA se diferencia dos outros programas da Rádio Bicuda, portanto, pela sua especificidade.
Seu horário de veiculaçào foi sugerido pela direçào da Rádio que tem no horário de Sábado das 10:00 às 16:00, um horário dedicado a a discussão de questões sociais e políticas. Esta escolha foi feita também a partir do entendimento previo de que a hora do almoço de Sábado teende a reunir donas de casa e suas famílias, questão a ser melhor avalidada em estudo de audiência.
Mesmo assim, a construção de vínculos com este segmento de público (público interessaado em questões ligadas a mulher, à DSTs e direitos de cidadania), requer um maior investimento em criação de vínculos com as redes sociais locais.
Considero também que a especificidade de um programa dirigido a mulher (MUSA é seu nome), acaba condicionando os movimentos de articulação do núcleo de produção com a rede local de parcerias.
“A dificuldade é trabalhar com pessoas e organizações que trabalham com aqueles eixos, como a questão da Aids. Mas se se considera que a Aids tem conexões culturais, políticas e históricas...quem trabalha com temas correlatos e tem um olhar sobre a mulher agente tem trazido, conversado.”
O investimento na construção de parcerias locais – na área de alcance do sinal físico da Rádio Bicuda - parece pretender, assim, um excesso de fidelidade ao receptor implícito “MULHER” previamente definido pelo núcleo de produção da série de programas. Isto acaba, a meu ver, por condicionar o processo de produção, tematização, e consequentemente de construção de audiência segundo um recorte “por sexo”, o que pode “deixar de lado” organizações e movimentos locais de outra natureza e com outros tipos de inserção nas redes sociais locais.
Esta seletividade, de certa forma “estrutural” no processo de produção não apenas do programa MUSA, mas das ações de saúde de modo geral, acaba sendo, em meu entender, contraditória, a meu ver, com a pluralidade de gostos, matrizes culturais, simbólicas, afetivas, sexuais, político-partidárias (e assim discursivas ) do espaço-social concreto de circulação da epidemia .
Esta necessidade de uma maior mediação com o campo de uma recepção real do programa se expressa também na terminologia muitas vezes utilizada pelos principais “âncoras” do programa: “tipo de adesão”; “qualificar” ; “visibiliza”; “coisas lúdicas”, “interagir”, “pirâmide populacional”, “Relatório da ONU” e que pode impedir a parada do ouvinte no “dial” e a construção de “familiaridade” discursiva necessária para a conquista de um ouvinte - e multiplicador ou formador de opinião - mais cativo.
Se há uma necessidade de construir familiaridade da população com um vocabulário técnico-científico e político em torno dos temas tratados, há, especialmente, necessidade de se estimular no âmbito do poder público, a criação de espaços de planejamento e desenho de políticas e ações de saúde que levem em consideração informações mais “finas” sobre dimensões culturais e mesmo epidmiológicas – muitas delas específicas de determinados segmentos populacionais concretos – e que “co-determinam” o caminhar de epidemias do perfil sócio-epidemiológico como a da Aids.
Acredito que o Programa Musa, pela compreensão que sua equipe de produção tem da relevância do planejamento participativo de ações de saúde, pode se tornar um espaço para a construção de uma experiência “exemplar” de ausculta à uma população local e, consequentemente de “refinamento” dos tradicionais Sistemas de Informações em Saúde de onde se originam as informações sobre o caminhar da epidemia de Aids na cidade do Rio de Janeiro.
Da mesma forma, algumas vezes a proximidade política e ao tema entre os participantes do programa - em estúdio - pode reduzir as possibilidades concretas de tensões e surpresas (perguntas de ouvintes, casos e histórias de vida reais) que teriam o poder de “tirar a estabilidade” do discurso técnico-científico e realmente “botar lenha na fogueira...” do debate.
Este recurso às histórias e casos da vida pessoal ou ao discurso desprovido de elementos do campo da política e da técnica, é incorporado – de forma teatralizada - a um dos programas analisados. Parece funcionar como uma excelente estratégia de construção de identidade com o campo da recepção, já que proporciona mais possibilidade de “deixar os sentidos à deriva” – dimensão lúdica que “prende” o ouvinte “não engajado” à rede social de identidades que compõe o núcleo discursivo “emissor” do programa, e a partir daí pode conquista-lo para permanecer “ligado” ao posterior debate.
É importante, desta forma, analisar com mais cuidado o “modelo de condução do debate”, ou a estratégia que pretende gerar a polemização dos temas junto ao ouvinte, sob pena de se cair num modelo formal de debate do qual participam apenas um reduzido número de pessoas – quase que “exposição pública” de um debate que não extravasa para além do estúdio da Rádio Bicuda FM.
Este “modelo” é determinado, em última análise, pelas “relações” que se estabelecem entre apresentadores, produtores, entrevistadores, entrevistado e ouvinte, em torno do tema tratado. O modelo de relação adotado provoca, no nosso entender, um maior “fechamento do discurso” e da possibilidade da polêmica real pode não deixar margens a dúvidas - “disputas de sentido” em torno do tema - em última análise, disputas de PODER de “dizer” e “mostrar”.
Há ainda outras questões que merecem ser ressaltadas.
 Não ficou clara a relação concreta no processo de produção do programa com a Rede de Saúde local e com as instâncias locais da REDE NACIONAL DE SAÚDE E EDUCAÇÃO, referidas nos documentos institucionais e entrevistas. Estas parcerias parecem estar no plano – positivo diga-se de passagem - de um “vir a ser”, e demandam uma maior vínculação e participação de Ogs e movimentos sociais locais tanto no processo de produção como no de construção de uma audiência cativa do Programa.
 Percebe-se uma carência de pessoal para a equipe do programa, já que se pretende um trabalho articulado ao espaço-social local. O acúmulo de funções de membros da equipe de produção, recomenda a incorporação de pessoal para o trabalho de gestão do projeto junto aos movimentos sociais e Ongs e OGs locais, mas que deve estar atenta para articular atividades junto a outros espaços não convencionais, como: espaços do lazer, da religiosidade, do ensino formal, do comércio local.
 Identifica-se ainda um baixo retorno em telefonemas em relação a outros programas da mesma Rádio .
A questão da terminologia pouco familiar a alguns grupos de baixa renda se estende e articula, já que a lógica da audiência reconstroi uma relação com o “todo” do programa e da própria programação da Rádio, aos próprios intervalos comerciais com seus campos de grama sintética “Beer Bol”, ou a “Eliptical Web Solution”. Se as terminologias citadas “em si mesmas” ou isoladamente, não são muitas vezes o que afasta o receptor de um vínculo mais estreito com o programa – não esqueçamos que existem muitas alternativas no “dial” neste mesmo horário - fazem parte de um “pacote discursivo” (“pacote significante” para alguns autores) que seleciona, filtra, condiciona o processo de construção de identidade com o ouvinte.
5. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES SOBRE O CAMPO DA RECEPÇÃO
Mesmo não se tratando de um estudo de recepção, levantou-se alguns dados que foram considerados significativos e a serem levados em consideração em uma futura análise deste tipo.
Com relação ao perfil real de audiência, podemos destacar dados preliminares relacionados à própria audiência da Rádio Bicuda FM, dados sobre a audiência do Programa MUSA e dados preliminares sobre uma “audiência real”.
5.1. SOBRE RECEPÇÃO E GOSTO MUSICAL EM GERAL
Sobre a recepção do programa algumas questões devem ser destacadas. Em primeiro lugar sobre o “gosto musical” – questões que devem ser tomadas como preliminares - do morador da região.
“Tinha um programa de rádio de Regae mas parou. A população daqui gostaria de ouvir o pagode, o Rap, Funk social, música internacional antiga...tem que variar né...hoje em dia também...só pagode, pagode pagode não dá...” (Compositor local de Regae do Morro do Juramento, aprox. 30 anos)
“Gosto quando vareia...” (mulher, 28 anos, vendedora de doces)
No bar da esquina da Rádio, sua dona, perguntada sobre o gosto musical dos frequentadores:
“Pagode. O bar fazia de vez em quando pagode mas eles ficaram “famoso” e começaram a cobrar 50,00 por cabeça (os músicos). Tem o pessoal que todo fim de semana tá aqui. Agora...vem pessoal que só vem pra assistir...tem gente que não compra nem refrigerante...“
Este fato, coincide com a falta de opção no fim de semana, não preenchida por outra proposta musical, de lazer ou política, indício de uma desvinculaçào do programa MUSA das atividades cotidianas do morador do local onde se situa a rádio e de possibilidades concretas de articulação entre o programa e a rádio como um todo com atividades de lazer do morador local.
“...e aqui em cima precisa de um negócio mais animadinho, porque aqui no final de semana não tem NADA...”(pausa longa...) aí fica uma meia dúzia de pivete sentado na porta e acabou...”.
Paralelamente observou-se em outro momento – entrevista de rua – outro dado relevante sobre “gêneros” de programas e linguagens: uma manifestação de resistência (gestual) a programas jornalísticos por parte de mulher de 28 anos vendedora de doces .
5.2. SOBRE A AUDIÊNCIA DA RÁDIO BICUDA
Em termo técnicos, o sinal da Rádio Bicuda alcança alguns bairros da região que não necessáriamente coincidem com o “mapa falado” por ouvintes registrados pelos locutores e responsáveis por diferentes horários da Programação - retorno através de telefonemas.
Os bairros sào Vila Cosmos, Vista Alegre, Vila da penha, Vicente de Carvalho, Irajá, Largo do Bicão, Cordovil, Vigário Geral, Parada de Lucas, Caxias (vários bairros). Háno entanto ouvintes que ligam da Taquara e Jacarepaguá (“uma fresta entre uma montanha e outra”). As barreiras impostas pelo relevo impõe ‘ruidos’ físicos de transmissão e assim, o sinal “real’ da Rádio acaba não alcançando Tomás Coelho e Cavalcante. A transmissão, assim, segundo um dos membros da direção da Rádio Bicuda é “meio complicada” ou “não é muito definida”
Pode-se destacar a concorrência com programas da Rádio Melodia.
Ouço às vezes (a Bicuda FM). Pra te dizer a verdade tem muitos programas lá bons...programas evangélicos, pra comunidade, mas...eu não ouço todo dia não, às vezes esqueço... eu sou evangélica e só ouço a Melodia. Aí mistura, né? (mulher de 62 anos moradora e evangélica)
“É rádio de que?” (...) Aqui tem é a Melodia, né? (aponta para a direçào da rádio Melodia)...(homem de ....anos)
A Rádio Bicuda no entanto é conhecida, segundo depoimento reunido pela direção da Rádio, como “a melhor qualidade que tem...” Um de seus programas de maior audiência, conduzido por Giovanito (conferir) atinge um público de larga faixa etária.:
“...tem crianças e velhos que ligam”. (...) “Lê horóscopo, manchetes do jornal, fala sobre o dia, detesta chuva, diz que está macambúsio...um dos que tem mais audiência” (Diretora da Rádio)
Uma outra característica importante e bem particular da audiência é a existência, segundo a percepção da direção da Rádio, de ouvintes “cativos”: Tem gente que vem de outros bairros para ouvir a Bicuda. Por exemplo “Nas Ondas do Underground” identificou-se um morador do Leblon, com família na Penha que vem ouvi-lo (redação). Outra referência a ouvinte morador de Jacarepaguá que ouve em Irajá em casa de amigo.
Segundo ainda a direçào da rádio, percebe-se um aumento da audiência nos programas noturnos, em programas com pedidos de música e com sorteios, havendo um bom retorno em relação ao rock – tradição da Rádio desde a sua origem, e o Rip-Rop. O Programa de sábado às 16h tem mais audiência:
“Os programas de rock tem mais audiência...locutor queria que a Bicuda virasse rádio funk no começo da rádio...tem até hoje 5 a 6 programas de rock. (Lana tem programa com 4 anos de rock no ar com articulações com a “galera” do lugar).
Neste caso, a relação com o público transcende o espaço do “dial” e cria vínculos estreitos com a promoção de grupos de música
Anunciaram que o conjunto vinha tocar em Irajá. Pequeno grupo. Os meninos quando chegaram o público cantava junto...ficaram assustados: ....é a bicuda rapaz....é a bicuda.....onde disserem que vão agora, enche o lugar....
Outras referências dispersas sobre a audiência da Bicuda:
 Algumas pessoas acham o nome Bicuda engraçado
 Algumas pessoas do bairro e adjacências entrevistadas não conhecem a rádio.
 Quem conhece fala em tom de orgulho e gosta
5.3.SOBRE A RECEPÇÃO DO PROGRAMA MUSA
Observou-se preliminarmente , que apesar da radionovela demonstrar ser uma excelente estratégia para mover a atenção do ouvinte, este pode não se mover em relação ao todo do programa, como muitas vezes prevê o campo “emissor”. No caso observado, uma ouvinte - não atenta ao programa até então move sua atenção em relação à um trecho do programa Musa com uma Radionovela do Centro de Teatro do Oprimido – CTO. No entanto, neste caso, a radionovela funcionou como “ponto isolado” de atenção ao programa. Depois de uma atenção espontânea e temporária à radionovela e um breve comentário a esmo para a amiga a ouvinte se volta novamente para o ferro de passar roupa e para os seus próprios pensamentos, interesses e afazeres domésticos, ficando o debate posterior num segundo plano da atenção.
“Ai meu Deus, não sei como é que pode “sê bicha’ desse jeito, Jesus Cristo, povo de Deus,...mas isso acontece mesmo... (empregada doméstica, 28 anos, moradora de Queimados enquanto passava roupa)
Em outra situação - um grupo de 3 ouvintes mulheres, no bar da esquina da rua da rádio Bicuda e induzidas pela entrevistadora a ouvir um dos programas “no ar” -observa-se outro “desvio” da atenção: o debate sobre questões do universo da mulher negra acaba, durante uma música cantada por Elza Soares, virando uma discussão sobre a cantora, sua forma física, celulite, meias que passistas usam nas escolas de samba e na TV para “segurar as gordurinhas” e processos de branqueamento de pele. O “papo” acabou em torno de Michael Jackson e em seguida nas ofertas de um dos cadernos do Jornal o Dia – que era manuseado enquanto se ouvia o Programa.
Ressalta-se que a descontinuidade da atenção e as ‘fugas’ são uma característica dos processos de recepção em geral e não um “problema” do produto analisado aqui.
5.3.1. Outros dados preliminares
Uma das entrevistadas (62 anos), moradora, já ouviu o programa sobre Aids e saúde da mulher:
“a gente lê nos jornais, né?...sou viuva...mas eu sou da década passada agente não tá nessa ai não...a humanidade tá caminhando para o final dos tempos, mas ninguém quer acreditar...As pessoas não querem obedecer, aí já viu (sobre o aparecimento de doenças como aids e outras novas)”
5.3.2. Conversas soltas enquanto se ouve um trecho do programa MUSA no Bar da esquina da Rádio (de onde se acompanha o movimento de convidados que chegam ao estúdio), e que exemplificam algumas “livres associações” das ouvintes:
1) “-Hoje vai ser entrevistada a Beth Mendes...não vi movimento nenhum...”
“-Aquela atriz?”
“-Foi Vereadora..”
Havia uma dúvida concreta das pessoas do bar se a Vereadora seria também entrevistada pelo MUSA, além da entrevista em programa do horário anterior.
2) Dona do bar liga a Bicuda e começamos a ouvir o Programa Musa.
(no programa ouve-se ao fundo “...coronéis, militares, ...e não tinha balé...etc...)
“- não é a voz dela não...(da Beth Mendes)...a nào ser que ela esteja resfriada, ou...mas nào é a voz dela não...(revelando intimidade com a vereadora). Não é ela não...ela nào é negra, é morena... (o debate e não a voz dita, denotava uma mulher negra falando)”
3) Eu também tinha uma boneca preta na infância....
Elza Soares começa a cantar
4) Em conversa induzida sobre o acervo musical da Rádio uma das mulheres pergunta à Conceição – da Diretoria da Rádio:
- “por acaso vocês tem lá o “Arranco de Varsóvia?” Quero gravar essa
“música”...
Recomendações
 Recomenda-se contituidade e o fortalecimento da iniciativa, não apenas pelos resultados já alcançados junto à população da área – em processo de avaliação, mas pelas potencialidades que traz de inovações quanto ao “modelo” de comunicação/educação adotado.
 Buscar, através de equipamento compatível, organizar experiências de Rádio Fórum, com participação de indivíduos e de grupos ao vivo nos debates.
 Ampliar a inclusão de grupos, movimentos, Ongs ao processo de produção e escolha de temas do Programa. Isto não significa uma concepção “localista” que seria restritiva e contraditória com o conceito de Rede mais amplo aqui utilizado, mas uma busca de ampliação da pluralidade discursiva – ao interior não apenas do próprio produto comunicacional “programa radiofônico”, mas no próprio espaço-social de atuação do programa Musa – parceiros mais heterogêneos.
 Recomenda-se ainda maior inserção no processo de decisões que envolve a produção do programa, de representantes da Rede de Saúde local, e de instâncias locais da REDE NACIONAL DE SAÚDE E EDUCAÇÃO, referidas nos documentos institucionais e entrevistas.
 Não se trata apenas de “dizer o que fazer” para os diferentes segmentos que merecem a atenção do projeto MUSA, sob pena de se recair num modelo educativo tradicional que se pauta na expectativa de comportamentos e posições “tais quais” aquelas pensadas por espaços-sociais que se ocupam do planejamento e definição de estratégias. O programa deve procurar gerar o máximo de polemica e rumor no espaço local sem pretender controlar o sentido que vai sendo atribuído ao debate pelo universo da recepção. É da polêmica, da contradição e da dúvida que o conhecimento e o novo emergem.
 Recomenda-se atenção ao que se passa na intimidade do espaço do “receptor”, em última análise qualquer cidadão, morador ou trabalhador das APs em questão, e sujeitos – sejam mulheres ou não, à contrair o vírus. Desta forma é fundamental um estudo qualitativo mais refinado da relação que vem se estabelecendo entre o programa e o público pretendido – UM ESTUDO DE RECEPÇÃO.
 É fundamental ainda uma maior relação com os “comunicadores” locais e com movimentos religiosos, das rádios comunitárias, rádios tipo auto-falante de rua, bem como Rádios e projetos não convencionais como a Rádio do Centro Comunitário Pedro II (JÁ INICIADO PELA EQUIPE DO MUSA), outras rádios comunitárias da área e outros movimentos comunitários de comunicação como o da TV Machambomba – tipicamente uma TV de rua e que se articula por exemplo com o “samba de raiz” produzido nos subúrbios do RJ.
 É importante atentar que a AMPLIAÇÃO do da rede de parcerias locais significa também uma ampliaçào das possibilidades de DIVULGAÇÃO do programa. Para citar um exemplo, a relação com a ONG Crioula, pode gerar uma possibilidade de relação com 3.000 mulheres com que esta mantém uma comunicação cotidiana – segundo palavras da ONG – através de cartas e mala direta.
 Recomenda-se uma AMPLIAÇÃO DA EQUIPE de produção do programa, no sentido de possibilitar maior articulação local com os habitantes da área em sua ampla gama de formas de organização.
 É necessário pensar ESTRATÉGIAS de divulgação, antes de se pensar no tipo de material a ser produzido. Até porque nem sempre um “bom material” se traduz em uma boa estratégia. Como estratégias – com os respectivos materiais necessários às mesmas – sugere-se: organização de eventos locais ou participação mais intensa da equipe do programa na vida cultural dos bairros em questão; organização de um “point” de música e atividades lúdicas em local próximo à rádio aos sábados e com participação de convidados; utilização de jornais populares locais para divulgação do programa.
 Criação de uma espeçie de “RADIOTECA” permitiria acesso aos programas já veiculados por parte de movimentos sociais locais e comunicadores de outras rádios.
 Os sorteios parecem funcionar como uma estratégia pontual de construção de audiência devendo ser mais frequentes.
 A estratégia de “pedidos de músicas” pode ser um bom atrativo e uma forma de aproximar o gosto musical do receptor pretendido ao Programa.
 Da mesma forma, pode-se pensar em estratégia de captar informações sobre a epidemia, através da observaçào dos próprios ouvintes. A existência efetiva de uma epidemia não registrada, experimentada concretamente por pessoas em situação de abandono e exclusão social, à margem da atuação de qualquer serviço público de saúde sugere outras formas, para além dos sistemas oficiais de informações epidemiológicas, de refinar os dados sobre o caminhar das DSTs e Aids.