D. TOMÁS: A MEMÓRIA DO MÉDICO SEM RAIA NEM FRONTEIRA
D. Tomás: A memória do médico sem raia nem fronteira
José Domingos
D. Tomás era médico em Navas Frias, a pouca distância da fronteira com Portugal, na Serra das Mesas.
Conhecido por “amigo dos pobres e dos povos”, para ele não havia linha política entre países que o impedisse de acorrer às aflições e maleitas do povo que, nestas paragens da Ibéria, vivia até há poucas décadas isolado, com difíceis comunicações com exterior.
Acompanhavam-no frequentemente nestas andanças o Cura de Navas Frias, D. Celso e o Alcalde da mesma povoação, D. Fernando. Entravam muitas vezes por Aldeia do Bispo vindos de Casillas de Flores, num rotineiro “passeio turístico e de assistência” que se converteu em caminhada de afectos e amizade.
Geralmente acabavam a viagem nos Fóios, freguesia abrigada no vale do rio Côa, ainda menino, que nasce na sobranceira Serra das Mesas, a escasso quilómetro de distância, bem perto onde outro rio, o Águeda, brota mas que sulca as terras de Espanha para, mais a norte, se dividir em fronteira luso-espanhola no último tramo a caminho da foz no Douro em Barca d’Alva.
D. Tomás era pessoa forte, de passo lesto, falava depressa e para o incauto português pouco habituado a falas castelhanas, mal se percebia ou então teria de advertir o clínico – que tinha uma empregada portuguesa, natural de Penalva do Castelo – para se exprimir de forma mais calma e espaçada.
Tinha sempre novas para contar. Surgiam num encadeado de conversas episódios vividos na primeira pessoa das artimanhas vividas com os “carabineros” espanhóis e “guardilhas” portugueses – os da Guarda fiscal –, o carro em que se transportava por vezes recheados de “ lembranças” que as autoridades poderiam considerar ser contrabando mas que afinal mais não eram do que iguarias muitas vezes compartidas com amigos portugueses, em terras lusas: pão espanhol ou “ chapado”, chouriço, toucinho, presunto, queijo e vinho.
Tal como os seus companheiros, o padre Celso e o autarca Fernando, o médico de Navas Frias gostava do convívio e de uma boa mesa, provando sem regatear ou fazer-se rogado, os petiscos que regava, em bem, com um bom copo de vinho caseiro na venda do “Ti Quim Pagã”.
Num desses convívios, na agora conhecida por “Ramitos” apesar de o restaurante ser o El Dourado, D. Tomás evocou o caso em que teve de refilar “e bem", como dizia, com um Carabinero que o não deixava atravessar a linha de fronteira para curar um enfermo português.
Teria então dito ao agente de segurança que nada o impedia de cumprir o juramento de Hipócrates, de salvar e de lutar pela vida humana e, de forma frontal, cruzou num salto a raia. Em Portugal já ninguém lhe podia tocar a não ser os Guardas-fiscais.
Fóios era, para o “ trio” espanhol – Tomas, Fernando e Celso, um médico, um alcaide e um padre – uma terra de predilecção.
Era costume escutar do clínico a expressão “Por mas voltas que dês, a los Fuños otra vez “ ( Por mais voltas que dês, aos Fóios outra vez”.
De facto, nesta localidade que no seu hino se define mesmo como “ terra de contrabando” o médico fazia a sua última “estação” antes de regressar a Navas Frias. Visitava os amigos e a cortesia acompanhada de uma “charla”, um copo e “ tapas” de queijo e presunto ou chouriço, o levada a casas das pessoas, às tabernas, bares e vendas do Ti Quim, Pub Ganguilhas, do Giro, do Manei, do Lei Troncho, …enfim, de todos.
O “Ti Quim Pagã” é ainda conhecido nos Fóios por ser bom caçador, mercê, sobretudo dos bons cães de caça que sempre teve. D. Tomás tinha uma predilecção especial pelo Ito que dizia ser o melhor cão de caça ao javali.
Aliás, os pratos de javali fizeram conhecida a pacata Fóios em toda a região e mesmo país, tal o sabor e a receita de confeccionar a carne do porco selvagem que era surpreendido pela astúcia dos caçadores fogeiros nos soutos e carvalhais, nas hortas, olgas e lameiros.
O Javali é aqui preparado de uma forma única, com a pele ou o “coirato”, na panela de ferro, à lareira, local que muitas vezes acolheu no seu calor e crepitar do lume da lenha de carvalho, os vizinhos forasteiros no deambular pelas terras raianas.
Mas os sabores eram também de cabrito na brasa, hortaliças e pão caseiro, enchidos e presunto, queijo de ovelha curado amarelo e por vezes o queijo queimoso da Beira Baixa ou de Alcains.
Ah! Como sabia bem a médico espanhol este convívio em terras portuguesas que aproveitava para realizar consultas, dar conselhos, transmitir conhecimentos e alegria a que emprestava também uma certa graciosidade associada à figura um tanto forte, que não obesa, diga-se avantajada.
Companheiro deste peregrinar eram muitos os de Fóios, uns já falecidos mas ainda, para contar, o actual presidente da Junta de Freguesia, o Zé Manel dos Fóios, aliás, José Manuel Campos.
“Ele tinha um olho clínico incomparável. Sem sequer ver o doente parece que adivinhava ou já sentia o que ele tinha”, recorda José Manuel...
A sua fama de bom médico é conhecida em toda a raia do concelho de Sabugal. A ele e ao seu conselho médico se acolhiam gentes de todas as idades padecendo de todas as enfermidades, desde mas mais graves ás mais passageiras.
Tratou ou curou doentes com gripe, resfriados, febres intestinais, garrotilho, reumáticos, úlceras, hepáticos, cancerosos, feridos de quedas e no trabalho, maus jeitos, entorses … enfim, de tudo um pouco. Mas quando não podia fazer nada também o confessava e aconselhava outro caminho médico, recorda o autarca fogeiro.
Por vezes fazia-se acompanhar pela filha, que muito gostava de frequentar os mercados de Fóios, enquanto o pai assistia e consultava doentes, quantas vezes com dificuldade em se deslocarem à vila do Sabugal onde se encontravam os consultórios mais próximos.
De regresso ao lar, levava sempre algo comprado aos feirantes, coisas simples mas que acabavam por ser úteis como uma foice ou uma pedoa, uma peça de roupa, um lenço que fosse.
D. Tomás faleceu há dois anos. Fernando já não Alcalde de Navas Frias e D. Celso, o cura, está agora no episcopado de Ciudad Rodrigo.
Cada um foi para seu destino, sua viagem. Ficou contudo a memória de um homem alegre e bom que da raia fazia um modo de vida e um mundo de ajuda, convívio e alegria, sem fronteiras.