A água do poço de Jacó

A ÁGUA DO POÇO DE JACÓ

Dá-me de beber (Jo 4,7)

As seculares divergências entre judeus e samaritanos, mais uma vez se tornam claras. Por razões políticas e religiosas, havia uma animosidade entre eles. Na literatura sapiencial, o Siracida (Joshua ben-Sirac), no livro do Eclesiástico, transcrevendo uma das tantas abominações relatadas pelo Senhor, ajuda, no séc. II a.C. a acirrar os ânimos:

Há duas nações que minha alma detesta, e a terceira nem é

nação: os estabelecidos na montanha de Seir, os filisteus, e

o povo insensato que habita em Siquém (Eclo 50, 25s).

Os samaritanos, como sabemos, eram como que um povo “mestiço”, fruto de muitas cruzas provenientes do tempo das dominações estrangeiras. O preconceito dos judeus contra os samaritanos tem origem na ocupação babilônica. Os samaritanos, de certa forma, se mostraram simpáticos aos deuses dos invasores. A Samaria sofreu uma inculturação do invasor. Certas práticas de idolatria foram vistas como traição. O primeiro estágio do diálogo de Jesus com a mulher é um pouco ríspido:

Jesus disse: “Dá-me de beber!” A mulher respondeu-

lhe: “Como é que tu, um judeu, pedes de beber a mim, que

sou samaritana?” (vv. 7.9).

Dar um pouco de água, na antiga Palestina, por causa dos desertos, era um gesto fraterno de hospitalidade. Não era lícito negar água a alguém. A samaritana hesita, por causa do preconceito... Mais tarde Jesus haveria de colocar esse gesto em seus ensinamentos:

E quem der de beber a um destes pequeninos, por ser meu

discípulo, ainda que seja um copo de água fresca, eu

garanto, não perderá sua recompensa (Mt 10, 42).

A mulher resistiu à aproximação de Jesus, pois os judeus, em geral, sempre que se aproximavam dos samaritanos, faziam-no com críticas e ares de superioridade. Ultrajados por séculos de discriminação, os samaritanos nutriam certo ódio pelos judeus. Esta é, sem dúvida, a motivação para a recepção pouco amistosa da samaritana para com Jesus. Jesus precisava usar uma forma de abordagem mais eficaz. Para isso valeu-se dos elementos a seu dispor: o calor, o poço e a mulher com a vasilha.

Dá-me de beber! (v. 7)

O evangelho traz uma frase solta, que seria melhor se não estivesse lá. Ela nos inquieta e, ao mesmo tempo, bane qualquer especulação em termos de coincidência, ou alguma ação espontânea:

...Ele tinha de passar pela Samaria (v. 4).

Séculos afora, os estudiosos das Sagradas Escrituras, têm buscado compreender essa passagem. Seria indispensável passar pela Samaria? O fato de cruzar por Sicar seria decorrente de ser ali a única via de passagem para quem vai de Jerusalém para a Galiléia? Ou cruzar por aqueles sítios reservava, aos habitantes daquele tempo e a nós, hoje, uma pedagogia, uma lição edificante?

É magnífico ver a forma como Deus nos instrui. Seria mais difícil entender o mistério da graça de Deus sem o diálogo com a samaritana, à beira do poço de Jacó. Se Jesus não cruzasse por aquelas paragens, talvez o povo ainda estivesse entregue às suas idolatrias. O anúncio messiânico feito pela mulher teria, por certo, ficado prejudicado, se ela não tivesse conversado com Jesus. Portanto, creio, o fato de passar pela Samaria, não é um incidente isolado, circunstancial. Jesus precisava passava por lá, para mostrar àquela gente, o caminho da salvação, a misericórdia de Deus e a eqüidade do Reino.

Ali estava o poço de Jacó. Cansado da viagem, Jesus

sentou-se à beira do poço. Era quase meio-dia. Uma mulher

da Samaria veio tirar água (vv. 5-7).

Na Palestina, como a rigor em todo o Oriente Médio, o calor é muito forte, especialmente na hora do meio-dia, quando se torna escaldante, quase insuportável. Naquela região do Oriente Médio e também da Grécia, nesse horário tudo para, por causa do calor, do sol forte e do vento sufocante que transforma a areia quente em pingos de fogo. Até hoje, é hora de descanso; da sesta. Tudo recomeça lá pelas cinco horas da tarde.

Mesmo assim, a mulher decidiu sair a esta hora para buscar a sua água. Suspeita-se, pela continuidade do diálogo, que fosse uma pessoa de poucas virtudes. Ela saiu nessa hora para não encontrar ninguém; ela não queria ser vista; para não ser hostilizada. Mulheres, como ela, não eram bem vistas em todo o Oriente Médio.

O encontro com mulheres junto à fonte, é um tema mais ou menos freqüente na literatura do Antigo Testamento (cf. Gn 24, 11-27; 29,1-2; Ex 2, 15-17). Com seu pedido inicial rejeitado pela samaritana, Jesus não desanima:

Ah! se conhecesses o dom de Deus e quem é que te

diz “dá-me de beber”, serias tu que lhe pedirias, e ele

te daria água viva (v. 10).

Estava se iniciando aí um diálogo ilógico, com duas pessoas falando como que línguas diferentes. Jesus referia-se às coisas espirituais e a mulher ficara presa aos aspectos materiais da água do poço de Jacó. Para a samaritana, naquele momento, água viva nada mais era que uma vasilha cheia de água fresca. É o enfoque material da vida de muitos, ainda não iluminado pela luz de Deus. Ao pedir água, Jesus busca provocar uma reação na mulher. E a reação não se faz esperar.

Senhor, não tens com que tirar água e o poço é fundo,

donde tens, pois essa água viva? Por acaso és maior que

nosso pai Jacó que nos deu o poço do qual bebeu, junto

com os filhos e rebanhos (vv. 11-12).

Jesus lhe fala em uma água viva, uma fonte eterna (vv. 13-14), mas a pobre mulher continua a pensar na água física, aquela que se tira da fonte, do poço... Mesmo assim ela se entusiasma. Quem seria esse homem? Um feiticeiro? Alguém capaz de ter inventado uma água que imuniza as pessoas contra a sede?

Senhor, dá-me dessa água para que eu não sinta mais

sede nem precise vir aqui buscar água (v. 15).

Presa a aspectos culturais, sociais e de costumes, a pessoa humana mesmo no limiar do sobrenatural, custa a libertar-se de tantos estímulos, demorando a enxergar algo que está ali, bem grande, à sua frente. A samaritana revelou estar imbuída apenas de uma visão humana e pragmática:

Senhor, não tens com que tirar água... (v. 11)

Ela ainda não havia sido “tocada”... A pedagogia de Jesus estipula um momento para cada coisa. Ali o aprendizado precisa ser gradativo. Não é possível apressar as coisas. Ela vai aprender aos poucos... Por ali, enquanto se desenrola aquele diálogo, muitas coisas acontecem, muitas idéias passam e muitas expectativas vão se sucedendo.

Ao discorrer sobre a água viva, Jesus fala, pela primeira vez, no dom de Deus. A água-viva, para a samaritana ainda significa a água física que brota da fonte. O dom de Deus é, para ela, apenas a natureza fazendo brotar aquela água tão boa e pura. Para Jesus, trata-se da verdade e da graça, que ele dará aos que nele crerem (cf. Jo 7, 37s; Ap 21, 6; 22, 17).

Se conhecesses o dom de Deus... (v. 10).

Era certo que a mulher desconhecia o dom e a graça de Deus. Aqui Jesus escancara a revelação de sua missão messiânica. Até então ele não havia se revelado com tanta clareza. A água viva oferecida à samaritana é a graça, o dom de Deus, é aquela amizade divina que suplanta todo o preconceito e toda a discriminação. O amor de Deus, gratuitamente oferecido, é uma fonte fresca, pura e inesgotável de uma água que mata a sede para sempre. Essa água miraculosa que Jesus coloca à disposição da samaritana é o dom que Deus oferece, em Cristo, à humanidade, pelo Espírito Santo.

Se alguém tiver sede venha a mim e beba. Quem crê em

mim, como diz a Escritura, do seu interior correrão rios de

água viva (Jo 7, 37s).

Jesus não desdenha da água do poço (bens materiais). No entanto, afirma ser capaz de oferecer uma água melhor (bens espirituais). A primeira água mata momentaneamente a sede. A “água viva” arranca a secura de nossa vida, de nossa alma, para sempre. Jesus oferece essa troca. A samaritana ainda não entende... Ele fez-se humilde. Embora viesse trazer a salvação, dar-nos de beber a água da vida eterna, ele chega pedindo:

Dá-me de beber! (v. 7)

Ele pede como um pobre, um último. Esta humildade é a marca característica fundamental do Messias. Ele não chega exigindo nem reclamando direitos, apenas pede. Pediu a Maria um sim de acolhimento; a João, o batismo; aos verdadeiros discípulos, o seguimento. Sobre a vitalidade perene desse manancial, anunciou o profeta:

O Senhor te guiará continuamente e nas regiões áridas te

saciará; renovará teu vigor, e serás como um jardim bem

regado, um manancial, cujas águas jamais se estancam

(Is 58, 11).

Procurando uma utilidade prática, a mulher pede a água, desconhecendo ainda sua essência. Da ironia e da reserva ela passa à intimidade. Agora é ela que, passando por cima de sua animosidade contra os judeus, pede a água, embora ainda não alcance todo o seu significado. Nesse aspecto, conhecer o verdadeiro dom de Deus implica em reconhecer o enviado e recebê-lo condignamente:

Ah, se conhecesses o dom de Deus... tu lhe pedirias e ele te

daria a água viva... (v. 10).

Jesus, através de palavras bem colocadas, começa a delinear o caminho da salvação:

quem beber a água... (a salvação)

que eu lhe der... (possibilidade imediata)

não terá sede... (ele mata nossa sede do Absoluto,

de justiça, verdade e amor)

fonte que jorra... (o termo da vida humana é a

eternidade)

para a vida eterna... (conhecer a Deus para viver

na sua verdade)

Para os judeus, a Lei era um dom de Deus. Superior à Lei, Jesus Cristo revela-se o legítimo dom do Pai. Para o evangelista João, a revelação da Verdade assume de vez o lugar da lei (1, 17). Conhecer o dom de Deus é conhecer a Jesus.

[...] ...tu lhe pedirias e ele te daria...

O Pai, em sua generosidade, sempre está disposto a dar aos seus filhos aquilo que eles pedem:

Peçam e será dado a vocês; busquem e acharão; batam e

será aberto a vocês, pois quem pede, recebe; quem

procura, acha; e a quem bate, se abre (Mt 7, 7).

No Antigo Testamento, a água é símbolo de vida e salvação. Tanto no dilúvio como na passagem do Mar Vermelho, encontra-se a figura do resgate dos justos, através da água. No aspecto material é uma riqueza, comparável à salvação. Modernamente, Israel fez uma guerra, em 1967 para obter o domínio das colinas de Gola, para ter o controle dos mananciais que hoje alimentam o país judeu daquele precioso líquido. Pensando na sede a mulher samaritana pede a Jesus:

Senhor, dá-me dessa água... (v. 15).

A mulher elabora uma inversão no diálogo. Antes Jesus pediu água a ela. Agora é a samaritana que lhe pede a água viva. Antes ela era arrogante, agora humilde. Mesmo que ainda sob o enfoque material, ela agora pede a água

[...] para que eu não sinta mais sede nem precise vir

buscar água (v. 15b).

Começa a acontecer agora como que uma troca. Instauram-se os tempos do Messias. É a troca da água de Jacó, insuficiente (o Antigo Testamento) pela água de Jesus, abundante, (o Novo Testamento). O Reino dos céus, que Jesus veio instaurar, começava a se revelar. Ele começa aqui e acaba na eternidade. É o Reino de Deus, que se instaura para a salvação dos homens. A água que brotou miraculosamente da rocha em Massa e Meriba (cf. Ex 17, 3-7) é sinal do dom de Deus, da água viva que Jesus oferece, gratuitamente, a todos.

O diálogo de Jesus com a samaritana revela, de forma implícita, a destinação universal da salvação que ele veio trazer aos homens. Embora estivesse estabelecendo um aprendizado progressivo, a mulher ainda não intuíra totalmente o sentido da água viva. Jesus precisava dar-lhe um sinal. É bom dizer que Jesus sempre teve sede. Na cruz, algumas de suas últimas palavras, antes de morrer, foram

Tenho sede (Jo 19, 28).

Sim, ele tinha muita sede; sede de amar e ser amado, de nos salvar, cada vez mais. O sinal messiânico de Jesus não tardava a chegar:

Jesus lhe disse: “Vai chamar teu marido e volta aqui”. A

mulher respondeu: “Eu não tenho marido”. Jesus

disse: “Respondeste bem: ‘não tenho marido’. De fato,

tiveste cinco e aquele que agora tens não é teu marido;

nisto disseste a verdade”. “Senhor – disse a mulher – vejo

que és um profeta” (vv. 16-19).

A partir de agora, Jesus é mais incisivo. Como um cirurgião ele toca na região afetada, com a finalidade de elaborar o processo de cura. Vamos analisar este trecho pela última frase:

Senhor – disse a mulher – vejo que és um profeta...

Certas pessoas, duras de coração, ou com os olhos obliterados pelo espírito de negação, coisas do mundo ou percalços da vida, só conseguem reagir mediante impactos. Esta foi a pedagogia de Jesus. Ele revelou algo que era bem profundo na vida daquela mulher:

[...]... tiveste cinco e aquele que agora tens não é teu marido...

Sem cerimônia, aquele homem foi chegando, pedindo coisas (dá-me de beber... vai chamar teu marido e volta...), como quem tem autoridade. Só poderia ser um profeta. Ou, quem sabe alguém mais que um profeta?

A mulher tinha conhecimento de suas ações que, de uma forma ou de outra, procurava manter camufladas. Não lhe agradava desnudar aquele tipo de comportamento. Só alguém muito especial, com um dom muito forte poderia ter descoberto seus segredos. Este trecho, no qual era falado sobre os tantos maridos da samaritana, no passado não era lido nas Igrejas da Antiguidade; podia suscitar maus costumes. A partir de agora ela começa a balançar. Reconhece seus erros, aceita as verdades de sua vida e parte para uma reconstrução em nível de fé. Jesus apossa-se espiritualmente dela e ela aceita essa posse. Pronuncia um sim, aceitando o dom de Deus.

A interpretação antiga trabalhava numa linha mais fundamentalista: tratava-se de uma mulher de má vida, quase uma prostituta. Embora a lei de Moisés permitisse à mulher casar até três vezes, esta havia exagerado, pois tivera cinco maridos e já estava no sexto.

Correntes mais modernas de exegese enxergam, nos tantos maridos, uma forma exacerbada de idolatria. Na linguagem profética do exílio e pós-exílio, a idolatria é comparada a uma prostituição ou a um adultério, onde a mulher se entrega a esses ou àqueles baalim (ídolos, maridos). Tanto assim que Israel, o Reino do Norte, cuja capital era Samaria, pelos deslizes religiosos enunciados, chegou a ser chamada de a esposa infiel de Deus (cf. Jr 3, 20).

Desta forma, a maioria dos biblistas modernos apropriam à idolatria da Samaria os possíveis vícios de comportamento da mulher. Os cinco maridos passados, podem representar não cinco homens que a possuíram, mas cinco deuses (cf. 2Rs 17, 30s) ou práticas de idolatria, representada por cinco culturas que dominaram a região, por seis séculos, impondo-lhe seus costumes, culturas e divindades, a saber: os egípcios, os assírios, os caldeus, os filisteus e os gregos selêucidas. E quem era o atual marido, o sexto?

Dentro do contexto acima, a pergunta parece fácil de responder. A dominação, no tempo de Jesus, em toda a Palestina era exercida pelos romanos. Também eles impunham adoração a seus deuses, especialmente ao imperador. Uma religião imposta, era como um “marido”:

[...] ... e aquele que agora tens não é teu marido (v. 18).

Na verdade os deuses pagãos, impostos pelo imperialismo dos conquistadores de todos os tempos, não eram dignos de adoração por parte do povo, mas sim Javé, o Deus único. Os romanos comiam carne de porco. Como este era um animal impuro para os judeus, os conquistadores tinham seus chiqueiros longe de Jerusalém, exatamente na região baixa da Samaria.

Atordoada pela descoberta de seus segredos mais íntimos, a mulher tenta desconversar, buscando uma escapatória para fugir do conhecer-se. Como tantos de nós, hoje em dia, ela procura usar o recurso intelectual para não render-se a Deus. Ela tem medo de entregar-se... As tentações de Deus, às vezes, são mais assustadoras que as do diabo, pois tornam descoberto todo o nosso íntimo. Ela busca escapar pela tangente:

Nossos pais adoraram a Deus neste monte e vocês dizem

que é em Jerusalém o lugar onde se deve adorar (v. 20).

Era o que Jesus queria. A samaritana foi direto ao assunto. Agora ela começava a discutir teologia com ele. Ao dizer que “nossos pais adoraram...” ela reflete sobre a polêmica entre judeus e samaritanos, onde o verdadeiro culto a Deus só podia ser feito no templo, em Jerusalém, conforme a reforma deuteronomista de Esdras, no século VII a.C. Nessa diferença existente entre judeus e samaritanos quanto ao local de culto, começava a grande revelação de Jesus:

Mulher, acredite em mim, vem a hora em que nem neste

monte e nem em Jerusalém adorarão o Pai. Vocês adoram o

que não conhecem, nós adoramos o que conhecemos,

porque a salvação vem dos judeus. Mas vem a hora, e já

chegou, em que os verdadeiros adoradores hão de adorar

o Pai em espírito e verdade; estes são os adoradores que

o Pai deseja. Deus é espírito, e quem o adora deve adorá-lo

em espírito e verdade (vv. 21-24).

Trata-se da grande lição do cristianismo universal, que não mais ficará restrito a lugares de culto, mas a todo o universo, templo onde Deus reina. A expressão “vem a hora...” coloca toda a situação na iminência de um fato novo (morte e ressurreição de Jesus), real e escatológico, quando serão abolidos os locais fixos de culto, e o Filho de Deus será glorificado a partir do coração das pessoas. Esta reflexão encaminha aos versículos 23 e 24.

Mas vem a hora, e já chegou, em que os verdadeiros

adoradores hão de adorar o Pai em espírito e verdade...

Os verdadeiros adoradores são os fiéis de todos os tempos, conscientes, que amam a Deus e seguem o seu Cordeiro. São aqueles que crêem e são batizados (cf. Mc 16, 16), e por essas duas atitudes obtêm a salvação.

Adorar em espírito e verdade é ir além daquelas práticas dos antigos judeus, que professavam uma fé superficial, dentro de uma religião alegórica, tradicional. Adorar em espírito é relacionar-se com Deus sob o eficaz influxo do Espírito Santo. Só o Espírito possibilita essa adoração. Nas Escrituras, vemos que o Espírito de Deus move as pessoas.

Assim, ele igualmente move os crentes, no sentido de adorar filialmente ao Pai. Os verdadeiros adoradores, os que se deixam conduzir pelo Espírito Santo, são os renascidos da água e do espírito (cf. Jo 3, 5). A verdade é associada à atividade do Espírito:

Eu pedirei ao Pai, e ele vos dará outro Paráclito, que

estará convosco para sempre. Ele é o Espírito da verdade,

que o mundo não pode receber porque não o vê nem o

conhece. Vós o conheceis porque permanece convosco

e está em vós (Jo 14, 16s).

Adorar em verdade é amar a Deus com pureza de espírito, atitude de busca filial e coerência de vida. Adoramos a Deus com o íntimo de nosso espírito, porque ele é espírito. Amando assim, aproximamos nosso espírito do dele. Igualmente amamos em verdade porque Deus é verdade. É a adoração sem fingimento, máscara nem interesse. A presença de Deus a partir de agora alarga os limites dos templos e dos altos montes. O templo agora é o coração (cf. 1Cor 3, 17). Ao escutar as palavras de Jesus, a mulher brada:

Agora vejo que és um profeta! (v. 19).

A partir desse agora, é quando Jesus desnuda sua vida e mostra-lhe o verdadeiro caminho, ela passa a ver. Abrem-se aos poucos os seus olhos.

A mulher disse a Jesus: “Eu sei que o Messias, que se

chama Cristo, está para vir. Quando vier, ele nos fará

saber todas as coisas” (v. 25).

Os olhos abertos da mulher levam-na a concluir, sem dúvidas, que o Messias esperado está ali, na frente dela. Ela tem medo de perguntar diretamente. Jesus sente a ansiedade de seu coração e lhe diz:

Sou eu, que falo contigo! (v. 26).

Trata-se da primeira revelação direta de Jesus. É uma informação perfeita, sem metáforas. Ele permitiu que a mulher lhe arrancasse o segredo. Ela permite que ele transforme em graça sua vida miserável. Nisso ela vai à cidade. Deixa o cântaro no chão, por certo derramando a água da fonte. A água viva agora é mais importante...

Venham ver um homem que me disse tudo o que eu fiz. Não

será ele o Cristo? Eles saíram da cidade e foram até onde

estava Jesus (vv. 29-30).

Vejam como a metodologia de Jesus é desconcertante: a boa notícia é anunciada pelos lábios de uma mulher, quem sabe considerada pouco virtuosa, filha de um povo discriminado. Ela conduz seus conterrâneos a Jesus, para um encontro pessoal. Retorna à fonte, trazendo consigo uma legião de sedentos. Dizem que os antigos rabinos eram contra o ensino da religião às mulheres. Ainda bem que Jesus não estudou na escola deles...

Como vimos na narrativa do evangelista Lucas, Jesus vai se revelando aos poucos, e a samaritana vai recebendo-o em seu coração. O conhecimento é crescente, progressivo e consistente:

judeu (v. 9)

mais que Jacó (v. 12)

profeta (v. 19)

Messias (vv. 25.26-29)

Salvador (v. 42).

A parte mais importante da narrativa talvez seja aquela que afirma que muitos samaritanos creram ao ouvir Jesus falar. E diziam à mulher:

Já não cremos apenas por causa de tua conversa. Nós

mesmos ouvimos e reconhecemos que este é realmente o

Salvador do mundo (v. 42) .

Como uma autêntica evangelizadora, a samaritana conduziu seus vizinhos a Jesus. Ela testemunhou a eles as maravilhas que Jesus havia colocado naquele diálogo à beira do poço de Jacó. Eles se aproximaram, escutaram, sentiram os sinais e constataram que de fato seu anúncio era verdadeiro. É interessante observar o papel da mulher evangelizadora na Igreja de Cristo, papel este, em alguns lugares, postergado a uma posição subalterna.

A divulgação do evangelho a toda a criatura, o chamado a testemunhar o Ressuscitado é tarefa e missão de todos, homens, mulheres, jovens, idosos e crianças. A samaritana é das primeiras mulheres a anunciar a messianidade de Jesus. Primeiro foi aquela que abençoou o ventre que o gerou e os seios que o amamentaram (cf. Lc 11, 27), e agora a samaritana que proclama a chegada do Messias àquela região. A "ora" de Jesus é escatológica. Após a cruz, outra mulher, Maria Madalena, seria também a primeira a anunciar a ressurreição, afirmando ao atordoado grupo apostólico algo que muitos ainda duvidavam:

Eu vi o Senhor! (Jo 20, 18).

A grande questão é que seria fácil ser cristão, se houvesse apenas a religião. O problema, porém, é que há todo um processo, a partir do compromisso, da necessidade do testemunho e da coerência de vida.

Para completar seu trabalho, Jesus ficou por lá mais dois dias, conversando, pregando, ouvindo as expectativas do povo. Ele atravessou a Samaria, pois parecia estar com pressa. Pressa em salvar...

O autor desta meditação é Doutor em Teologia Moral e Biblista com especialização e exegese. Escreveu, entre outros, o livro “Os sinais de Jesus” (onde trata o tema da samaritana). Ed. Pão & Vinho, 2003;

Para debate em grupo

1. Teria sido casual a passagem de Jesus pela Samaria?

2. Qual o significado da “água viva” em sua vida?

3. Por que a mulher não entende inicialmente as palavras de

Jesus?

4. Como nós podemos adorar a Deus em Espírito e verdade?

5. O que significa hoje, conforme o texto estudado, ter,

figuradamente, vários maridos?

6. Quais os passos gradativos que precisamos dar para

demonstrar nossa adesão a Jesus?

Tema de um retiro espiritual de quatro dias, dirigido a padres-religiosos que o autor assessorou no Espírito Santo, em maio de 2009.