DARCY, UM SUJEITÃO ENCAPETADO

Vocês acham que é moleza um anônimo – como este que lhes fala – ter tido o privilégio de ter sido caroneiro do automóvel em que um ilustre brasileiro já lá também ia de carona? Pois andei na mesma carona com o Darcy. Ele mesmo, o dito-cujo famoso, e de fama e escama. Estou a falar do irreverente e cientista social Darcy Ribeiro.

Negar eu não nego que esse fato, em cima daquele instante, lá, encheu-me de pernas. Ora, logo eu, um desimportante e simplório nordestino. Era num quase pôr de sol, durante a primeira SBPC que se realizou em Fortaleza. E tudo se deu em 1979, no patamar das férias de julho, quando vínhamos o companheiro Agamenon e eu lá do ‘campus’ universitário, no planalto do Pici.

Pé aqui e ali, nós saímos papeando sobre política e a situação nacional. Então, o que fazer, naquele ocaso da tarde, se nós já íamos embora? Pegar um lotação com destino ao centro da cidade. Agamenon, engenheiro, professor universitário que a ditadura, depois, cassou e – suponho, até hoje – um dos últimos trotskistas do planeta. Adiante, vimos dois gajos, que se metiam num carrão. O dono da direção do veículo era o insigne sociólogo Diatahy Bezerra de Meneses, renomado cérebro cearense e conhecido que nem farinha. Como o Agá se dava com este, seu colega professor da UFC, tomou coragem e a liberdade de lavrar a reivindicação:

– Oi, vocês vão pro lado do centro, então levem a gente, até lá...

Pedido feito e prontamente aceito, nós nos enfiamos na barriga do carro. Dentro, dois titãs da Antropologia e da Sociologia nacionais. Como àquela época eu morava no entremeio do caminho, apeei-me na cabeça da Rua Padre Mororó, via quase central e com a qual tenho bastantes laços de afeto, pois somente ali residi em três números diferentes.

Agora, exercício de adivinhação para vossemecês... Digam quem era o outro passageiro do bojo daquele veículo. Marmelada. Vocês só descobriram porque já bati com a língua nos dentes, lá em riba. Meu camarada engenheiro e eu nos quedamos por detrás dos dois gigantescos intelectuais, que, óbvio, habitavam os bancos dianteiros.

O Agá ainda ensaiou uma ou outra palavra; eu, no entanto, mudo e silente. Ora, daquela dupla, antes vista apenas por fotos e pela televisão, eu só sabia da fama e da escama. Então, era ouvir e ouvir o papo daquele duo de vozes de pensamento e ação. Ambos intelectuais, cientistas políticos, professores doutores, autores de obras publicadas, etc., etc., e tal. Um deles, aborígine da terra de Alencar, vindo dos famosos Bezerra de Meneses, e o outro já de nome internacional, afamado, irreverente, indianista, autor de uma porção de obras*.

Darcy, o conviva do anfitrião Diatahy, visitante e influente participante da nossa primeira SBPC, no Ceará. Até ali, e só até onde eu lhe sabia, antes de ser vice-governador de Leonel Brizola, por duas vezes, no Rio de Janeiro, aquele homem era nada mais e nada menos que o etnólogo, o antropólogo, o polemista, o político de esquerda, o pensador social e pesquisador de altíssima profundidade. Também o criador, professor e reitor da Universidade de Brasília, que a ditadura dos “anos de chumbo”, muito burramente, cassou e escorraçou dos quadros da UnB.

No trajeto pequeno da carona que peguei, eu bebia com gulodice cada pedacinho de palavra que o importante camarada Darcy Ribeiro sussurrava. Vou repetir: fundador da UnB e seu primeiro reitor. E de lá corrido, burramente! Todo mundo sabe que, aventureiro, anteriormente ao seu tirocínio universitário, no DF, Darcy embrenhou-se na selva, viveu tempos e tempos no meio dos índios. Daí, pelo que no mato ele pesquisou e amealhou como experiência, ter deixado obras memoráveis, como, por exemplo, “Diários índios”, e tantas outras preciosidades sobre a raça negra e, sobretudo, sobre a vida dos povos da floresta.

Todos sabem, ainda, com nitidez na memória, que, antes, o genial e exótico homem da cultura curtiu o peso do arbítrio, e que penou o diabo, no exílio. Só depois da Anistia, em 79, foi que ele botaria de novo a cabeça de fora, viraria o vice do Brizola, por duas ocasiões, não lembro se consecutivamente. De mãos limpas, ainda se fez senador da República, ator principal de um projeto-lei que virou uma nova “Lei de Diretrizes e Bases da Educação”, isto lá num Congresso que ainda representava melhor o povo do que nos dias atuais.

Loquaz Darcy era muito. E por demais. Polêmico, idem. Eis porque, enquanto ele teve vida ativa no cenário nacional, política e culturalmente, eu pagava em espécie para ver uma entrevista dele na tevê. E ele não carecia que o Jô Soares e qualquer outro entrevistador lhe indagassem nem lhe soprassem nada: de supetão, falava tudo sozinho e pelos cotovelos. O homem tinha uma metralha na glote. Desembuchava tudo com áurea e fecunda verborragia.

O cidadão Darcy era enciclopédico, principalmente quando desmontava o labirinto da Educação ou se abordava o tema de sua preferência: a problemática indígena no Brasil. Com imensa erudição, portanto, dava receitas, pregava no deserto com mímica desconjuntada, falava cobras e lagartos do rei, ironizava Deus e o mundo, mexia até com o coisa-ruim dos infernos. Darcy foi um número. Por isso, um tipo encapetado. Mas “encapetado”, também, no sentido de ter sido muito mordaz e engraçado. Um gozador da mediocridade, ele era encapetado / engraçado, pois não.

Agora, pensem no que fez – certa ocasião, já estando com o câncer – o maroto do traquinas. Já bem ruim de saúde, fugiu de uma UTI; largou os aparelhos médicos, a fim de concluir um livro que rascunhava fazia trinta anos. Com ajuda de terceiros, safou-se de uma pneumonia, driblou (em termos, porque dele morreu) um câncer, os cabelos já meio estropiados e ralos pelo efeito da quimioterapia.

Uma feita, recuperando-se (em termos, repito), sempre irreverente, zombeteiro até da morte, o estudioso disse, numa entrevista, e para mexer com os médicos, que seu último volume, além dos trinta anos de mão de obra, só lhe tomaram mais quarenta dias, após a fuga do hospital. Fugira da UTI com medo de embarcar e não concluir o trabalho. Mas fez tudo direitinho, e lá ficou a obra, justo aquela que engabelaria a morte.

Nos tempos que lhe sobraram de vida, de programa em programa televisivo, Darcy Ribeiro ia ao encontro da mídia, abria a bocarra e divulgava o seu novel “O povo brasileiro – a formação e o sentido do Brasil” (1995), que até poderá ombrear em substância com o templo de “Casa-Grande & Senzala”, do imorredouro Gilberto Freyre. São apenas 450 páginas para sofá, deleite e reflexão.

Era de se esperar. Um gênio meio pirado não podia sair-se com algo melhor, fechando com chave de ouro a sua fecunda e luminosa existência, ainda que já estivesse à soleira do irreversível. E, de quebra, no ínterim da obra maior, andou a lançar outro título, que não me recordo qual seja. Portanto, quando os caros amigos puderem, vossemecês devem ir à leitura do catatau do Darcy, com certeza um bonito e apetitoso manjar para o gosto de qualquer exigente inteligência.

Fort., 25/12/2009.

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(*) O B R A S

Com obras traduzidas para diversos idiomas (inglês, o alemão, o espanhol, o francês, o italiano, o hebraico, o húngaro e o checo), Darcy Ribeiro figura entre os mais notórios intelectuais brasileiros. Divididas tematicamente, foram elas:

E t n o l o g i a

• Culturas e línguas indígenas do Brasil – 1957

• Arte plumária dos índios Kaapo – 1957

• A política indigenista brasileira – 1962

• Os índios e a civilização – 1970

• Uira sai, à procura de Deus – 1974

• Configurações histórico-culturais dos povos americanos – 1975

• Suma etnológica brasileira – 1986 (colaboração; três volumes).

• Diários índios – os urubus-kaapor – 1996, Companhia das Letras

A n t r o p o l o g i a

• O processo civilizatório – etapas da evolução sócio-cultural – 1968

• As Américas e a civilização – processo de formação e causas do desenvolvimento cultural desigual dos povos americanos – 1970

• O dilema da América Latina – estruturas do poder e forças insurgentes – 1978

• Os brasileiros – teoria do Brasil – 1972

• Os índios e a civilização – a integração das populações indígenas no Brasil moderno – 1970

• The culture – historical configurations of the American peoples – 1970 (edição brasileira em 1975).

• O povo brasileiro – a formação e o sentido do Brasil – 1995.

R o m a n c e s

• Maíra – 1976

• O mulo – 1981

• Utopia selvagem – 1982

• Migo – 1988

E n s a i o s

• Kadiwéu – ensaios etnológicos sobre o saber, o azar e a beleza – 1950

• Configurações histórico-culturais dos povos americanos – 1975

• Sobre o óbvio - ensaios insólitos – 1979

• Aos trancos e barrancos – como o Brasil deu no que deu – 1985

• América Latina: a pátria grande – 1986

• Testemunho – 1990

• A fundação do Brasil – 1500/1700 – 1992 (colaboração)

• O Brasil como problema – 1995

• Noções de coisas – 1995

E d u c a ç ã o

• Plano orientador da Universidade de Brasília – 1962

• A universidade necessária – 1969

• Propuestas – acerca da la renovación – 1970

• Université des Sciences Humaines d'Alger – 1972

• La universidad peruana – 1974

• UnB – invenção e descaminho – 1978

• Nossa escola é uma calamidade – 1984

• Universidade do terceiro milênio – plano orientador da Universidade Estadual do Norte Fluminense – 1993

O b s e r v a ç ã o

Em conformidade com as normas ortográficas atualmente vigentes para a Língua Portuguesa, o prenome "Darci" deveria ser grafado com a letra "i" e não com "y", pois nomes de pessoas falecidas devem ter sua grafia adaptada às regras ortográficas em vigor.

Em São Paulo no bairro Itaim Pta Zona Leste existe uma rua chamada Senador Darcy Ribeiro. [Fonte: Wikipédia, a enciclopédia livre]

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 25/12/2009
Reeditado em 25/12/2009
Código do texto: T1995459
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