Superstição e barbárie
O nascimento da Filosofia, que se deu na Grécia há mais de dois milênios e meio, tem como marco inicial uma espécie de rompimento com a visão supersticiosa que até então dominava a humanidade. Inconformados com esta forma de enxergar a realidade, moldada a partir dos desígnios de deuses e mitos, os chamados pré-socráticos (pensadores que antecederam o grande filósofo Sócrates) inauguraram a era da razão.
Não que essa nova visão de mundo tenha conseguido reinar absoluta a partir de então, mas passou a ser a bússola maior a guiar o ser humano na direção do futuro. A razão se tornou um termômetro até mesmo para o que não esteja no espectro de sua luz, a exemplo das religiões e seus desdobramentos no cotidiano de seus seguidores.
A própria Igreja Católica, por exemplo, chegou a pedir perdão pelas atrocidades que sua cúpula cometeu durante a Idade Média, quando a barbárie das crendices e superstições serviu de desculpa para o assassinato de milhares de pessoas. Barbárie esta que sobreviveu aos séculos seguintes, mesmo com todo o brilho emanado dos ideais racionais que fizeram nascer todas as ciências.
Citaria aqui inúmeros exemplos das atrocidades nascidas da ignorância que normalmente permeia as superstições. Mas uma só, bem recente, será o bastante para ilustrar o que desejo abordar neste texto.
Há pouco tempo li notícias de que um tribunal da Tanzânia mandou para a forca três homens que mataram um menino albino de 14 anos e amputaram suas pernas. A novidade aí é que foi a primeira condenação para um tipo de crime comum naquela nação da África Oriental.
Em pouco mais de três anos pelo menos 75 albinos foram mortos e esquartejados no país. Se crimes assim já são bárbaros por si próprios, no caso dos "zero-zero" (como são vulgarmente chamados naquela região africana) o motivo é macabro. Por serem fisicamente diferentes em decorrência da cor da pele, dos olhos e do cabelo, eles são vistos como portadores de poderes sobrenaturais. Por isto, partes de seus corpos são valorizados no comércio de órgãos para feitiçaria.
Numa das reportagens que li sobre o assunto, o panorama dessa atrocidade pode ser compreendido pelas cifras que a envolvem. Para se ter uma ideia, dedos, braços, pernas, língua e genitais de albinos chegam a valer quase 6 mil reais a “peça”.
A demanda é tão grande que a Tanzânia importa clandestinamente pedaços de seus corpos; pescadores de lá tecem fios de cabelo de albinos em suas redes para ter sucesso na pescaria e mineiros penduram no pescoço amuletos feitos com seus ossos moídos. Já quem consegue beber o sangue ainda quente de um albino tem sorte em dobro. Se a vítima for uma criança, sua pureza infantil intensifica ainda mais o poder do feitiço, na visão doentia de seus praticantes.
Não por acaso a humanidade vive dias de tanto desequilíbrio em sua atual jornada na Terra. Em certos aspectos, muitos de nossa raça foram sábios o suficiente para usar sua maturidade racional (uma inferência direta da maturidade espiritual) em prol dos avanços tecnológicos que melhoraram a vida de todos. Por outro lado, outros tantos insistem em manter apagada em si esta luz evolutiva, condenando ao limbo não somente a si próprios, mas o planeta inteiro.