Povo estranho; gente esquisita Última parte
Os exames que o médico pediu ficaram prontos; fiz, precisava parecer bem, eu gostava da crente, era importante parecer bem mesmo sabendo que iria embora. Urinava com dificuldade e respirar era uma tarefa ingrata. Ficaria melhor em Montes Claros.
Ir embora significava reencontrar um monte de pessoas com as quais eu não queria encontrar; Corjesu, meu irmão mais velho me encontrou em frente ao BB, quase morto, overdose de "algafan" moído e injetado, a noite inteira tentando me reanimar; nos últimos dois meses foram seis paradas.
Voltar pra casa era estranho, mamãe não sabia de nada, ou quase nada, jamais fora a uma cadeia me buscar, nem hospital, nem qualquer outro lugar; se tivesse que envergonhar minha mãe, se ela tivesse que passar vexame, morrer era melhor. Não era amor igual ao que os crentes sentiam pelas mães deles, mas era, acho que era. Ou era medo de desapontar mais.
Ficava tendo pesadelo com a carinha da minha mãe, triste me vendo; fazia-me bem achar que ela pensava em mim, até falava: ”É melhor ter cuidado pra não chatear mamãe, ela é brava, fecha o tempo comigo se eu vacilar!” Às vezes bandido fica assim, “doidin” pra alguém se importar com ele, se for mãe então, vich!
"quantas vezes, eu chegava em casa, era garoto, e se mamãe não estivesse acordada, pra falar que: 'Cê ainda vai me ver morta! Qualquer hora cê me encontra no chão!' Que estava sentindo 'uns trem no peito' e que se morresse, não queria nem que eu fosse ao enterro... Eu ia dormir contrariado: 'Ave cruz! Ta nem aí se chego, se tô vivo ou morto, depois fala que me ama, que isso, que aquilo... Falô, então ama né?' "
Era por causa da lembrança do nome das mães que não desandava tudo, volta e meia alguém gritava: “Pelo amor da sua mãe!” E isso sempre atrapalhava; botar nome de mãe na conversa de bandido nunca deu certo.
As viagens agora eram raras, eu procurava ficar na cidade a maior parte do tempo, até estudava com o Davi, um crente batista que era colega na escola agrícola e amigo da namorada, detestava o papo de crente do Davi. Roubaram o dinheiro do crente e a culpa caiu em mim, eu não roubaria um crente.
Com os remédios a aparência melhorou, ia sempre à casa da família da namorada, ainda era confuso conviver com eles, riam demais.
Ir a igreja já deixara de ser motivo de gracejos, só mesmo quando tínhamos algum compromisso maior é que eu faltava; dizia ao contato do barão que era um bom álibi caso as notícias das cargas se espalhassem, alguns motoristas estavam assustados; minha dívida com o barão já estava quase quitada. Se não morri por causa das drogas, não me matariam por dívidas.
Não odiava mais os crentes, só não entendia nem acreditava no negócio de levantar a mão. E a idéia de morar com Deus no Céu era muito cabulosa. E Deus lá ia querer saber de gente da minha laia?
“De manhã saíamos da igreja, íamos visitar gente doente; todos os dias os crentes arranjavam gente doente pra visitar, e orar; descobri que os crentes, se não estivessem rindo, é porque estavam orando. Todo dia tinha um doente pra visitar, e orar.” Desesperava.
À noite eu deixei minha mochila pronta, iria à igreja, e de manhã, antes que as coisas piorassem, nós estaríamos a caminho da Rio - Bahia, última entrega, acerto de contas e adeus; nunca mais seria caçado como cachorro doido, nem faria serviço sujo pra pagar dívidas de drogas. Era mais seguro não estar por ali quando a polícia da capital chegasse, ser encontrado com a crente seria ruim pra ela. Ser preso na frente dela seria ruim também. Pela primeira vez eu me importava com alguém.
Apocalipse 3: 20, o último culto e a história do quadro com o coração e uma porta desenhada no coração; a fala sobre abrir a porta, a fala sobre ser amigo de Jesus, sobre uma vida novinha em folha, sobre abrir o meu coração, sobre ser amado sem motivos, sobre ser feliz, sobre ser livre, sobre sorrir de alegria, sobre ser alegre... Já contei essa parte em outro artigo.
O que não contei foi o quanto aquela historinha simples me atingiu, fez um estrago, seria capaz de jurar que jamais ouvira uma coisa tão linda, e cada palavra daquele homem era mais desejável que a outra, pensava em minha situação e desesperava, devia sair dali ou enlouqueceria, mas esperava mais uma frase, e mais uma frase, só mais uma frase.
Estava irremediavelmente encantado com tudo que ouvia, ouviria até de manhã se ele quisesse falar até de manhã, como eu queria que aquelas palavras fossem pra mim! Pensava: “Porque não falam assim pra mim? Se as pessoas escutassem isso, tudo seria diferente!” Jesus era, naquela hora, do jeitinho que a música falava que era, manso e suave... “Oh! Vem! Sim, vem! Não te demores, vem já.”
Como, naquele momento, eu queria ser como os crentes! Até arriscaria um riso, sem ensaio! “Eis bate à porta, paciente esperando, e chama: Ó pecador vem!”
Eu ficava ali parado e tremendo e já chorando e agonizava; “Será que aquele infeliz ia esquecer logo hoje de mandar levantar a mão? Do jeito que crente não me suportava era capaz dele não mandar levantar a mão só pra eu não poder levantar a minha mão também."
Quando dispararam: “Eu venho como estou...” Eu não quis mais saber se ele ia mandar levantar a mão, levantei sem ele mandar, caminhei lá pra frente, nada poderia me impedir de levantar a mão, seja lá quais fossem as conseqüências. Naquela hora eu só queria levantar a mão. Meu coração e os meus olhos ardiam; choro feliz, choro bom! Horas de choro.
Lá, perto do moço que falava coisas da Bíblia e cantava: "Eu venho como estou...", Eu fui como eu estava, pra nunca mais ser como eu havia sido até então.
( ex-interno do centro de recuperação de mendigos - Missão Vida )