Rachel Haddock Lobo (1891-1933) foi a primeira diretora brasileira da então denominada Escola de Enfermeiras Ana Néri, no curto período de 30 de junho de 1931 a 25 de setembro de 1933 - data de sua morte prematura; apesar de brasileira, teve sua formação na Escola de Enfermeiras da Assistência Pública de Paris (França) e pós-graduação realizada nos Estados Unidos da América do Norte entre maio de 1927 e dezembro de 1929: em sua curta gestão interrompida por morte fundou o Annaes de Enfermagem em 1932.
A fundação do Annaes se liga à realização Congresso do Conselho Internacional de Enfermeiras, realizado em Montreal (Canadá), no ano de 1929. Durante este Congresso houve a realização de um jantar, reunindo as redatoras de revistas de enfermeiras de todos os países membros do Conselho: o Brasil estava representado pela enfermeira brasileira Edith de Magalhães Fraenkel, além da presença das conferencistas brasileiras Zaíra Cintra Vidal e Rachel H. Lobo. Miss Lílian Clayton, superintendente do serviço de enfermeiras do Hospital Geral de Filadélfia, Diretora da Escola de Enfermeiras do mesmo hospital e uma das organizadoras do Congresso, propôs a idéia de criação de uma revista sob a responsabilidade da Associação Nacional de Enfermeiras Diplomadas Brasileiras; com essa idéia prontamente acolhida pelas três congressistas brasileiras, em 1929, as mesmas retornaram ao Brasil com o projeto de criação de uma revista.
Annaes de Enfermagem, em cuja capa trazia um triângulo com os dizeres ciência arte ideal, era o órgão oficial de publicação da Associação Nacional de Enfermeiras Diplomadas (ANED), criada em 1926, redenominada Associação Nacional de Enfermeiras Diplomadas Brasileiras (ANEDB) em 1928 e Associação Brasileira de Enfermeiras Diplomadas (ABED) em 1944 até, finalmente, denominar-se Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn) em 1954.
A publicação do primeiro número do Annaes de Enfermagem se deu em maio de 1932 e estampando o Editorial, escrito por Rachel H. Lobo e intitulado “Era Nova”.
À Era Nova da Enfermagem, no momento histórico em que Rachel H. Lobo publicava o primeiro número do Annaes, correspondia à Era Vargas em sua primeira fase de governo provisório (1930-1934), iniciado em 3 de novembro de 1930 após a deposição e a prisão do então presidente da República Washington Luís na noite de 24 de outubro daquele mesmo ano: os estados brasileiros, exceto Minas Gerais, estavam sob o governo dos interventores, nomeados pelo presidente da república.
A ação dos interventores era consequente ao fato de que o presidente Getúlio Vargas, em 11 de novembro de 1930, suspendeu a Constituição Brasileira após dissolver a Câmara dos Deputados e o Senado Federal: o modelo de Estado que se implantava no Brasil era forte, paternalista, centralizador e nacionalista.
E, exatamente, em 9 de julho de 1932 São Paulo se rebelou contra o presidente gaúcho Getúlio Vargas no chamado movimento constitucionalista, em verdade iniciado publicamente em 25 de janeiro daquele ano no qual se realizou um comício pela Constituição na praça da Sé.
Com exceção de alguns militares de Mato Grosso, os demais Estados ficaram aderidos às suas oligarquias, desapoiando o movimento constitucionalista; apesar da crise militar entre presidência da república e tenentes, aquele movimento foi esmagado em 3 de outubro de 1932. Ou seja, a maioria dos estados brasileiros lutaram contra os direitos civis, políticos e sociais defendidos por São Paulo e Mato Grosso.
Os paulistas tiveram por resultados do movimento constitucionalista: realização de eleições para a Assembléia Nacional Constituinte, elaboradora da nova Constituição de 1934; aprovação, em fevereiro de 1932, de novo código eleitoral, garantidor do voto direto, secreto, extensível às mulheres que podiam votar e serem votadas; reconhecimento de direitos trabalhistas fundamentais, tais como salário mínimo, jornada de trabalho até oito horas diárias, proibição do trabalho para menores de 14 anos, férias anuais remuneradas, indenização na demissão sem justa causa; proteção das riquezas naturais do país, criação da carteira de trabalho, proibição de trabalho noturno para mulheres e equiparação salarial aos homens.
Em 1932 também foi criada pelo escritor Plínio Salgado a Ação Integralista Brasileira (AIB) - uma versão brasileira do Fascismo - cujo lema era "Deus, Pátria e Família" na defesa de um Estado integral, autoritário, nacionalista, anticomunista, dirigido por elites cultas: a religião, o estado e a família sempre foram as alegorias ou slogans dos regimes autoritários, servindo como termômetro quando a situação ideológica era de manipulação social.
Em 7 de outubro de 1932 divulgava-se o Manifesto da Ação (Força ou Frente) Integralista Brasileira dirigido à nação, aos operários, aos sindicatos de classe, aos homens de cultura e de pensamento, aos jovens das escolas e das trincheiras, às classes armadas.
O lema e a plataforma da AIB tanto ajudaram no oportunismo político-ideológico do governo constitucional (1934-1937) quanto anunciaram o advento do governo ditatorial de Getúlio Vargas (1937-1945).
A política de conciliação do fascismo brasileiro por controle federal das classes sociais, erguidas sob o fundamento nacional da estratificação étnico-racial, respondeu pela quase nulidade de direitos políticos e de direitos civis diante da farta distribuição de direitos sociais, realizada por Getúlio Vargas entre 1930 e 1945 sob a influência dos positivistas ortodoxos brasileiros, notadamente os riograndenses do sul.
Vargas distribuiu direitos sociais assim como o rei de Portugal no Brasil, João VI, distribuía títulos de arbitrária nobreza a quem lhe prestava favores ou a quem lhe era credor: ainda hoje, sob o dogma romano de direitos e deveres, vivemos o entulhamento do conceito de direito e a destruição ou negligência do conceito de responsabilidade.
Entre parênteses, convém lembrar a estrita legalização jurídica da responsabilidade fiscal; o anteprojeto de lei de responsabilidade sanitária do ministro da saúde Humberto Costa, apresentado para consulta pública em julho de 2005, gerou ou fortaleceu a sua demissão.
Somara-se a tudo isso ou era expressão de tudo isso a sistemática biopolítica de eugenia, unindo Medicina e Estado brasileiro para intervenção e controle étnico-racial dos indivíduos e das populações; aliás, em 1932 foi realizado em Nova Iorque o 3o. Congresso Internacional de Eugenia, aonde pobreza e doença de determinadas etnias empobrecidas e adoecidas pela lógica nacional de produção de doenças foram colocadas como ameaça e obstáculo ao crescimento e desenvolvimento das nações.
O discurso médico e estatal eugênico utilizava-se dos conceitos de evolução, degeneração, normalidade, progresso e civilização, criando áreas de saber para disseminar políticas étnico-racialistas exclusoras de saúde pública, tais como: Maternologia (ciência do lar e da mãe), Eugenia matrimonial (controle "científico" da reprodução e da hereditariedade), Homicultura (estudo dos problemas da hereditariedade relacionados à reprodução humana) e suas divisões (patrimatricultura ou cultura dos pais, matrifeticultura ou cuidado da mãe grávida e do feto, a puericultura ou cuidado das crianças no pré e no pós-parto, a progonocultura ou cuidado das gônadas, a pós-genitocultura ou cuidado do indivíduo após o nascimento).[i]Tais áreas, desde os anos da década de 1920, serviam para que médicos e Estado prescrevessem uma forma de cultura, supostamente evoluída, não disgênica e civilizada para investigação médico-moral da vida das pessoas e das populações contra as doenças étnico-raciais, mais precisamente as supostas doenças dos negros e mulatos (tuberculose, varíola, doenças infecto-parasitárias): a visitadora da higiene, cuja versão atual são os agentes comunitários de saúde, e a enfermeira de saúde pública, cuja versão atual está na enfermagem domiciliar ou de famílias, eram os instrumentos promovedores daquela investigação da polícia sanitária.
A polícia sanitária, cujos maiores ícones nacionais foram Oswaldo Cruz e Carlos Chagas em seus combates aos ambientes perigosos, era a versão da polícia médica e a sua ideologia do suspeito, quer dizer, a sistemática perseguição e exclusão das consideradas classes sociais perigosas.
As classes de pessoas perigosas a partir da segunda metade do século XIX a serem excluídas para a prisão ou para os hospícios foram os imigrantes degenerados (particularmente os asiáticos e os italianos), os negros em geral e os recem-libertos desempregados, vadios ou indigentes, delinqüentes, desordeiros ou arruaceiros, alcoólatras, prostitutas, homossexuais, criminosos, jogadores, grevistas, os revolucionários ou anarquistas, os degenerados superiores (filhos da burguesia e das classes médias, artistas e intelectuais), pessoas de vida obscura e difícil![ii]
As práticas sociais das classes perigosas eram acalentadas em focos da degenerescência a serem identificados e combatidos: cortiços, habitações coletivas, locais de jogatina e de prazeres sexuais, ruas e becos.
Eterna reprodutora das políticas ideológicas do Estado brasileiro e consciente ou não das diferenças entre a eugenia anglo-saxônica, a nazista e a latino-americana, a Enfermagem Moderna (Brasileira) adotou e divulgou a Eugenia como movimento político-racial, científico-social: a Comissão Central Brasileira de Eugenia, criada em 1931 e erguida após 1o. Congresso Brasileiro de Eugenia realizado em 1929, tinha, direta ou indiretamente, uma aliança na Enfermagem, sobretudo representada pelo Serviço de Enfermeiras do Departamento Nacional de Saúde Pública e pela Escola de Enfermeiras Ana Néri.
O advento da Enfermagem Brasileira é um braço consecutor da política eugênica norteamericana de aprimoramento ou higienização racial, de base mendeliana, embora a política eugênica brasileira tenha melhor se espalhado pelo vínculo psiquiatria-estado-polícia. Talvez se possa até dizer que no Brasil se fundou, ao lado de largas concessões sociais, uma sistemática eugenia civil e política, mais evidente nos campos da Psiquiatria, da Medicina Legal e da Segurança Pública, enquanto que a eugenia norte-americana foi aqui agregada à agricultura e à pecuária. Esse é um forte argumento quando se revêem os discursos eugênicos das enfermeiras brasileiras, revestidos por apelos ao humanitarismo.
As enfermeiras ananéri, diplomadas e brasileiras, se auto-reconheciam como "aperfeiçoadoras da raça", divulgando e adotando a ideologia eugênica com a mesma convicção básica com que, hoje, adotam e divulgam a sua substituta nominal – a saúde.
Além da análise de conteúdo, realizada por Daher,[iii] a análise do discurso eugênico-sanitário da Enfermagem nos Annaes de 1932 a 1938 já foi realizada por Garcia:[iv]a autora enfoca a ideologia eugênica em doze artigos, de diferentes enfermeiras, onde a Higiene e o Sanitarismo se confundiam com a Eugenia para constituir o campo de ação da Saúde Pública.
No Editorial “Era Nova” de Raquel Haddock Lobo estão as bases do ideal da arte e da ciência da Enfermagem Moderna e Brasileira, abaixo sumarizadas, sob a ideologia da Higiene, do Sanitarismo e da Eugenia ou, se o quisermos, da Saúde[v]
-Alma da Enfermagem: auxílio mútuo.
-Espírito da enfermeira moderna: humanitarismo.
-A Enfermagem: a mais viva expressão do altruísmo feminino.
-A ideologia: tipo ideal de Enfermagem e da enfermeira.
-Essencial para atingir o tipo ideal: educação apropriada.
-Tipo inadequado: enfermeira curandeira, inculta e inconsciente, ofertadora de tratamentos de domicílio em domicílio.
-Tipos de enfermeira: a) enfermeira religiosa. Motivação: idealismo religioso; b) enfermeira mercenária. Motivação: ganho material; c) enfermeira nightingale para a qual Florence seria a encarnação do tipo ideal, reunindo em si mesma ideal humanitário, cultura intelectual, posição social.
-Exigência das escolas de enfermeiras a partir de Florence: esmerados níveis social e intelectual.
-Cultura feminina alicerçada no amor ao próximo e à pátria.
-Enfermeira moderna: síntese de psicóloga, filósofa e socióloga, capaz de ser a um só tempo companheira constante, mãe desvelada, técnica eficiente, observadora perspicaz, educadora dos lares, aperfeiçoadora da raça.
-Ideal da profissão de Enfermagem: objetivação da ação sobre o eu moral, o eu profissional e o eu físico da pessoa fragilizada ou adoecida.
-Virtudes da enfermeira brasileira: inteligência, sensibilidade, cultura, amor aos estudos, dedicação ao próximo, patriotismo, abnegação.
Pelos ideais de enfermeira moderna e brasileira, explicitados por Rachel H. Lobo e segundo os próprios ideais de formação da Escola Ana Néri, às enfermeiras cabiam ser a versão feminina dos interventores do governo federal.
Os leitores e leitoras devem considerar os seguintes fatos referentes a Rachel H. Lobo:
-é brasileira, católica e o Annaes por ela fundado é o órgão oficial da então denominada Associação Nacional de Enfermeiras Diplomadas Brasileiras;
-instituiu como figura cerimonial de formatura a personagem “Madrinha de Formatura” – uma antiga diplomada a ser homenageada por uma nova formanda;
-modificou para redondo o formato das toucas de bico usadas pelas alunas, desde o período da Missão Parsons no Brasil (1921 – 1931): para as norte-americanas, as enfermeiras diplomadas na Escola Ana Néri usavam toucas de bico e com frisos enquanto as alunas usavam toucas de bico sem frisos. Rachel Lobo manteve o uso das toucas com frisos para as enfermeiras diplomadas e instituiu o formato redondo para as alunas. A cerimônia solene de “Recepção de Toucas” era um rito de iniciação para as alunas que ingressavam na Escola Superior e para as que concluíam o curso. Tratava-se, pois, de um rito de passagem;
-utilizou-se, em sua profissão de enfermeira, de um véu claro ou escuro cobrindo-lhe os cabelos como acessório de vestimenta pessoal. Este acessório talvez se relacione com a sua religião católica;
-o início de sua gestão coincidiu com o fim da norte-americana Missão Parsons para a Enfermagem no Brasil, embora sua morte prematura reestabelecido a gestão norte-americana da Escola Ana Néri (1934 – 1938);
-em sua curta gestão interrompida por morte, formaram-se as turmas de enfermeiras de 1931 (... alunas diplomadas) e de 1932 (16 alunas diplomadas); três meses após a sua morte, formou-se a terceira turma de Enfermagem de sua gestão em 14 de dezembro de 1933 (18 enfermeiras);
-o triângulo ciência arte ideal condensava o ideal de todas as enfermeiras ananéri e expressava a teleologia da Enfermagem Brasileira desvinculada em tese das enfermeiras norte-americanas: a enfermeira Rachel H. Lobo era a expressão de poder constituído para a “Era Nova” da Enfermagem – um novo que quis instituir rupturas com o velho no qual se formou e se desenvolveu, incluindo-se a vontade, o ideal e a necessidade de crescer, de reviver o velho dando-lhe novos sentidos de perpetuidade.
Pós-Modernidade é a revivência da Modernidade com a (re)invenção de novos sentidos, tanto quanto a Modernidade é a revivência da Antiguidade reinventada de novos sentidos.
A fundação do Annaes se liga à realização Congresso do Conselho Internacional de Enfermeiras, realizado em Montreal (Canadá), no ano de 1929. Durante este Congresso houve a realização de um jantar, reunindo as redatoras de revistas de enfermeiras de todos os países membros do Conselho: o Brasil estava representado pela enfermeira brasileira Edith de Magalhães Fraenkel, além da presença das conferencistas brasileiras Zaíra Cintra Vidal e Rachel H. Lobo. Miss Lílian Clayton, superintendente do serviço de enfermeiras do Hospital Geral de Filadélfia, Diretora da Escola de Enfermeiras do mesmo hospital e uma das organizadoras do Congresso, propôs a idéia de criação de uma revista sob a responsabilidade da Associação Nacional de Enfermeiras Diplomadas Brasileiras; com essa idéia prontamente acolhida pelas três congressistas brasileiras, em 1929, as mesmas retornaram ao Brasil com o projeto de criação de uma revista.
Annaes de Enfermagem, em cuja capa trazia um triângulo com os dizeres ciência arte ideal, era o órgão oficial de publicação da Associação Nacional de Enfermeiras Diplomadas (ANED), criada em 1926, redenominada Associação Nacional de Enfermeiras Diplomadas Brasileiras (ANEDB) em 1928 e Associação Brasileira de Enfermeiras Diplomadas (ABED) em 1944 até, finalmente, denominar-se Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn) em 1954.
A publicação do primeiro número do Annaes de Enfermagem se deu em maio de 1932 e estampando o Editorial, escrito por Rachel H. Lobo e intitulado “Era Nova”.
À Era Nova da Enfermagem, no momento histórico em que Rachel H. Lobo publicava o primeiro número do Annaes, correspondia à Era Vargas em sua primeira fase de governo provisório (1930-1934), iniciado em 3 de novembro de 1930 após a deposição e a prisão do então presidente da República Washington Luís na noite de 24 de outubro daquele mesmo ano: os estados brasileiros, exceto Minas Gerais, estavam sob o governo dos interventores, nomeados pelo presidente da república.
A ação dos interventores era consequente ao fato de que o presidente Getúlio Vargas, em 11 de novembro de 1930, suspendeu a Constituição Brasileira após dissolver a Câmara dos Deputados e o Senado Federal: o modelo de Estado que se implantava no Brasil era forte, paternalista, centralizador e nacionalista.
E, exatamente, em 9 de julho de 1932 São Paulo se rebelou contra o presidente gaúcho Getúlio Vargas no chamado movimento constitucionalista, em verdade iniciado publicamente em 25 de janeiro daquele ano no qual se realizou um comício pela Constituição na praça da Sé.
Com exceção de alguns militares de Mato Grosso, os demais Estados ficaram aderidos às suas oligarquias, desapoiando o movimento constitucionalista; apesar da crise militar entre presidência da república e tenentes, aquele movimento foi esmagado em 3 de outubro de 1932. Ou seja, a maioria dos estados brasileiros lutaram contra os direitos civis, políticos e sociais defendidos por São Paulo e Mato Grosso.
Os paulistas tiveram por resultados do movimento constitucionalista: realização de eleições para a Assembléia Nacional Constituinte, elaboradora da nova Constituição de 1934; aprovação, em fevereiro de 1932, de novo código eleitoral, garantidor do voto direto, secreto, extensível às mulheres que podiam votar e serem votadas; reconhecimento de direitos trabalhistas fundamentais, tais como salário mínimo, jornada de trabalho até oito horas diárias, proibição do trabalho para menores de 14 anos, férias anuais remuneradas, indenização na demissão sem justa causa; proteção das riquezas naturais do país, criação da carteira de trabalho, proibição de trabalho noturno para mulheres e equiparação salarial aos homens.
Em 1932 também foi criada pelo escritor Plínio Salgado a Ação Integralista Brasileira (AIB) - uma versão brasileira do Fascismo - cujo lema era "Deus, Pátria e Família" na defesa de um Estado integral, autoritário, nacionalista, anticomunista, dirigido por elites cultas: a religião, o estado e a família sempre foram as alegorias ou slogans dos regimes autoritários, servindo como termômetro quando a situação ideológica era de manipulação social.
Em 7 de outubro de 1932 divulgava-se o Manifesto da Ação (Força ou Frente) Integralista Brasileira dirigido à nação, aos operários, aos sindicatos de classe, aos homens de cultura e de pensamento, aos jovens das escolas e das trincheiras, às classes armadas.
O lema e a plataforma da AIB tanto ajudaram no oportunismo político-ideológico do governo constitucional (1934-1937) quanto anunciaram o advento do governo ditatorial de Getúlio Vargas (1937-1945).
A política de conciliação do fascismo brasileiro por controle federal das classes sociais, erguidas sob o fundamento nacional da estratificação étnico-racial, respondeu pela quase nulidade de direitos políticos e de direitos civis diante da farta distribuição de direitos sociais, realizada por Getúlio Vargas entre 1930 e 1945 sob a influência dos positivistas ortodoxos brasileiros, notadamente os riograndenses do sul.
Vargas distribuiu direitos sociais assim como o rei de Portugal no Brasil, João VI, distribuía títulos de arbitrária nobreza a quem lhe prestava favores ou a quem lhe era credor: ainda hoje, sob o dogma romano de direitos e deveres, vivemos o entulhamento do conceito de direito e a destruição ou negligência do conceito de responsabilidade.
Entre parênteses, convém lembrar a estrita legalização jurídica da responsabilidade fiscal; o anteprojeto de lei de responsabilidade sanitária do ministro da saúde Humberto Costa, apresentado para consulta pública em julho de 2005, gerou ou fortaleceu a sua demissão.
Somara-se a tudo isso ou era expressão de tudo isso a sistemática biopolítica de eugenia, unindo Medicina e Estado brasileiro para intervenção e controle étnico-racial dos indivíduos e das populações; aliás, em 1932 foi realizado em Nova Iorque o 3o. Congresso Internacional de Eugenia, aonde pobreza e doença de determinadas etnias empobrecidas e adoecidas pela lógica nacional de produção de doenças foram colocadas como ameaça e obstáculo ao crescimento e desenvolvimento das nações.
O discurso médico e estatal eugênico utilizava-se dos conceitos de evolução, degeneração, normalidade, progresso e civilização, criando áreas de saber para disseminar políticas étnico-racialistas exclusoras de saúde pública, tais como: Maternologia (ciência do lar e da mãe), Eugenia matrimonial (controle "científico" da reprodução e da hereditariedade), Homicultura (estudo dos problemas da hereditariedade relacionados à reprodução humana) e suas divisões (patrimatricultura ou cultura dos pais, matrifeticultura ou cuidado da mãe grávida e do feto, a puericultura ou cuidado das crianças no pré e no pós-parto, a progonocultura ou cuidado das gônadas, a pós-genitocultura ou cuidado do indivíduo após o nascimento).[i]Tais áreas, desde os anos da década de 1920, serviam para que médicos e Estado prescrevessem uma forma de cultura, supostamente evoluída, não disgênica e civilizada para investigação médico-moral da vida das pessoas e das populações contra as doenças étnico-raciais, mais precisamente as supostas doenças dos negros e mulatos (tuberculose, varíola, doenças infecto-parasitárias): a visitadora da higiene, cuja versão atual são os agentes comunitários de saúde, e a enfermeira de saúde pública, cuja versão atual está na enfermagem domiciliar ou de famílias, eram os instrumentos promovedores daquela investigação da polícia sanitária.
A polícia sanitária, cujos maiores ícones nacionais foram Oswaldo Cruz e Carlos Chagas em seus combates aos ambientes perigosos, era a versão da polícia médica e a sua ideologia do suspeito, quer dizer, a sistemática perseguição e exclusão das consideradas classes sociais perigosas.
As classes de pessoas perigosas a partir da segunda metade do século XIX a serem excluídas para a prisão ou para os hospícios foram os imigrantes degenerados (particularmente os asiáticos e os italianos), os negros em geral e os recem-libertos desempregados, vadios ou indigentes, delinqüentes, desordeiros ou arruaceiros, alcoólatras, prostitutas, homossexuais, criminosos, jogadores, grevistas, os revolucionários ou anarquistas, os degenerados superiores (filhos da burguesia e das classes médias, artistas e intelectuais), pessoas de vida obscura e difícil![ii]
As práticas sociais das classes perigosas eram acalentadas em focos da degenerescência a serem identificados e combatidos: cortiços, habitações coletivas, locais de jogatina e de prazeres sexuais, ruas e becos.
Eterna reprodutora das políticas ideológicas do Estado brasileiro e consciente ou não das diferenças entre a eugenia anglo-saxônica, a nazista e a latino-americana, a Enfermagem Moderna (Brasileira) adotou e divulgou a Eugenia como movimento político-racial, científico-social: a Comissão Central Brasileira de Eugenia, criada em 1931 e erguida após 1o. Congresso Brasileiro de Eugenia realizado em 1929, tinha, direta ou indiretamente, uma aliança na Enfermagem, sobretudo representada pelo Serviço de Enfermeiras do Departamento Nacional de Saúde Pública e pela Escola de Enfermeiras Ana Néri.
O advento da Enfermagem Brasileira é um braço consecutor da política eugênica norteamericana de aprimoramento ou higienização racial, de base mendeliana, embora a política eugênica brasileira tenha melhor se espalhado pelo vínculo psiquiatria-estado-polícia. Talvez se possa até dizer que no Brasil se fundou, ao lado de largas concessões sociais, uma sistemática eugenia civil e política, mais evidente nos campos da Psiquiatria, da Medicina Legal e da Segurança Pública, enquanto que a eugenia norte-americana foi aqui agregada à agricultura e à pecuária. Esse é um forte argumento quando se revêem os discursos eugênicos das enfermeiras brasileiras, revestidos por apelos ao humanitarismo.
As enfermeiras ananéri, diplomadas e brasileiras, se auto-reconheciam como "aperfeiçoadoras da raça", divulgando e adotando a ideologia eugênica com a mesma convicção básica com que, hoje, adotam e divulgam a sua substituta nominal – a saúde.
Além da análise de conteúdo, realizada por Daher,[iii] a análise do discurso eugênico-sanitário da Enfermagem nos Annaes de 1932 a 1938 já foi realizada por Garcia:[iv]a autora enfoca a ideologia eugênica em doze artigos, de diferentes enfermeiras, onde a Higiene e o Sanitarismo se confundiam com a Eugenia para constituir o campo de ação da Saúde Pública.
No Editorial “Era Nova” de Raquel Haddock Lobo estão as bases do ideal da arte e da ciência da Enfermagem Moderna e Brasileira, abaixo sumarizadas, sob a ideologia da Higiene, do Sanitarismo e da Eugenia ou, se o quisermos, da Saúde[v]
-Alma da Enfermagem: auxílio mútuo.
-Espírito da enfermeira moderna: humanitarismo.
-A Enfermagem: a mais viva expressão do altruísmo feminino.
-A ideologia: tipo ideal de Enfermagem e da enfermeira.
-Essencial para atingir o tipo ideal: educação apropriada.
-Tipo inadequado: enfermeira curandeira, inculta e inconsciente, ofertadora de tratamentos de domicílio em domicílio.
-Tipos de enfermeira: a) enfermeira religiosa. Motivação: idealismo religioso; b) enfermeira mercenária. Motivação: ganho material; c) enfermeira nightingale para a qual Florence seria a encarnação do tipo ideal, reunindo em si mesma ideal humanitário, cultura intelectual, posição social.
-Exigência das escolas de enfermeiras a partir de Florence: esmerados níveis social e intelectual.
-Cultura feminina alicerçada no amor ao próximo e à pátria.
-Enfermeira moderna: síntese de psicóloga, filósofa e socióloga, capaz de ser a um só tempo companheira constante, mãe desvelada, técnica eficiente, observadora perspicaz, educadora dos lares, aperfeiçoadora da raça.
-Ideal da profissão de Enfermagem: objetivação da ação sobre o eu moral, o eu profissional e o eu físico da pessoa fragilizada ou adoecida.
-Virtudes da enfermeira brasileira: inteligência, sensibilidade, cultura, amor aos estudos, dedicação ao próximo, patriotismo, abnegação.
Pelos ideais de enfermeira moderna e brasileira, explicitados por Rachel H. Lobo e segundo os próprios ideais de formação da Escola Ana Néri, às enfermeiras cabiam ser a versão feminina dos interventores do governo federal.
Os leitores e leitoras devem considerar os seguintes fatos referentes a Rachel H. Lobo:
-é brasileira, católica e o Annaes por ela fundado é o órgão oficial da então denominada Associação Nacional de Enfermeiras Diplomadas Brasileiras;
-instituiu como figura cerimonial de formatura a personagem “Madrinha de Formatura” – uma antiga diplomada a ser homenageada por uma nova formanda;
-modificou para redondo o formato das toucas de bico usadas pelas alunas, desde o período da Missão Parsons no Brasil (1921 – 1931): para as norte-americanas, as enfermeiras diplomadas na Escola Ana Néri usavam toucas de bico e com frisos enquanto as alunas usavam toucas de bico sem frisos. Rachel Lobo manteve o uso das toucas com frisos para as enfermeiras diplomadas e instituiu o formato redondo para as alunas. A cerimônia solene de “Recepção de Toucas” era um rito de iniciação para as alunas que ingressavam na Escola Superior e para as que concluíam o curso. Tratava-se, pois, de um rito de passagem;
-utilizou-se, em sua profissão de enfermeira, de um véu claro ou escuro cobrindo-lhe os cabelos como acessório de vestimenta pessoal. Este acessório talvez se relacione com a sua religião católica;
-o início de sua gestão coincidiu com o fim da norte-americana Missão Parsons para a Enfermagem no Brasil, embora sua morte prematura reestabelecido a gestão norte-americana da Escola Ana Néri (1934 – 1938);
-em sua curta gestão interrompida por morte, formaram-se as turmas de enfermeiras de 1931 (... alunas diplomadas) e de 1932 (16 alunas diplomadas); três meses após a sua morte, formou-se a terceira turma de Enfermagem de sua gestão em 14 de dezembro de 1933 (18 enfermeiras);
-o triângulo ciência arte ideal condensava o ideal de todas as enfermeiras ananéri e expressava a teleologia da Enfermagem Brasileira desvinculada em tese das enfermeiras norte-americanas: a enfermeira Rachel H. Lobo era a expressão de poder constituído para a “Era Nova” da Enfermagem – um novo que quis instituir rupturas com o velho no qual se formou e se desenvolveu, incluindo-se a vontade, o ideal e a necessidade de crescer, de reviver o velho dando-lhe novos sentidos de perpetuidade.
Pós-Modernidade é a revivência da Modernidade com a (re)invenção de novos sentidos, tanto quanto a Modernidade é a revivência da Antiguidade reinventada de novos sentidos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
[i]STEPAN, Nancy Leys. Venenos raciais e a política da hereditariedade na América Latina na década de 1920. In: ________________ A Hora da Eugenia: raça, gênero e nação na América Latina. Rio de Janeiro: Fiocruz. 2005; p. 75-114.
[i]STEPAN, Nancy Leys. Venenos raciais e a política da hereditariedade na América Latina na década de 1920. In: ________________ A Hora da Eugenia: raça, gênero e nação na América Latina. Rio de Janeiro: Fiocruz. 2005; p. 75-114.
[ii]CUNHA, Maria Clementina Pereira, O Espelho do mundo: Juquery, a história de um asilo. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1986.
[iii]DAHER, Donizete Vago. As "Aperfeiçoadoras da raça": as enfermeiras brasileiras e o ideário Eugênio. [CD-ROM] Anais do 56o. Congresso Brasileiro de Enfermagem; 2004 Out 24-9; Gramado, Brasil. Rio Grande do Sul: ABEn – Seção RS; 2004.
[iv]GARCIA, Telma Ribeiro. Eugenia! In hoc signo vinces – um aspecto do discurso sanitário da enfermagem, 1932 a 1938. Rev Bras Enferm, Brasília (DF) 1993 jul/dez;46(3/4):189-198
[v]LOBO, Rachel Haddock. Era Nova. Annaes de Enfermagem. 1932 Mai; 1(1):5-6.